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Manoel de Andrade em prece ao alvorecer

Aurora

Manoel de Andrade, Curitiba

Não direi que me encantas mais do que o silêncio
porque é assim que despertas as aves e os caminhos.
Meus olhos também nascem pelo parto da esperança
porque vivo na imortalidade renascendo em cada dia.

Deixa-me rever em prece tua face ressurgida
porque tua luz é sempre uma catarse.
Teu olhar estende as linhas do horizonte
e toda a paisagem é então uma ventura
e já não és mais nada
porque desfaleces no seio da beleza.

Repara como sou pequeno diante do teu rosto amanhecido
mas como é grande o que em mim te contempla.
Para renascer basta-me apenas teu momento
tua humilde majestade
tuas pétalas de fogo
e essa corola ardente
porque não peço nada mais que a tua luz
inaugurando o mundo em cada alvorecer
e que nunca me encontres cego ou vencido.

__________________
Curitiba, abril de 2004 – Em Cantares

Fogo sobre Cristal, de Frederico Füllgraf

Frederico Füllgraf

Na página  Crônicas, Manoel de Andrade faz uma resenha do filme Fogo sobre Cristal, um Diário Antártico, do escritor e cineasta paranaense Frederico Fullgraf. O filme retrata as paisagens geladas da Passagem de Drake, nas Ilhas Orçadas do Sul, Shettland do Sul  e do Mar de Weddel, no setor leste da Península Antártida. Leia aqui.

E chegamos ao dia 12 de março de 2010

Há exatamente um ano, apertei o comando publicar na área de administração do novo blog, nascido da vontade de colaborar com a divulgação da Poesia. Apresentado sob a forma de um poema, o Banco da Poesia partia de um capital em branco para tentar acumular, ao longo do tempo, em suas projeções de lucros, o tesouro inestimável da comunicação e da sensibilidade humana.

Por isso, caros senhores,
vamos fundar nosso banco:
não obrará em vermelho
mas ainda está em branco.
Trabalhará vanguardeiro
sem pensar só em dinheiro
neste tempo de consumo.
E terá como seu prumo
a palavra desprezada
pelos praxistas do dia.

Hoje, ao fazermos o nosso primeiro balanço anual, notamos que passamos todo o tempo da crise financeira mundial sem contabilizar prejuízos. Ao contrário, os correnstistas foram crescendo e, juntamente com nomes já consagrados na história da literatura, novos poetas foram se juntando, pouco a pouco, em torno da idéia de comemorar permanentemente a boa poesia. Que, em resumo, assume a gratíssima missão de fazer fluir os melhores ideais de busca da beleza e do contínuo aperfeiçoamento espiritual.

Seja a Poesia lapidada por pensamentos sublimes, seja fortemente talhada por dores e desilusões, o certo é que ela abre a alma das pessoas e aponta para a harmonia do espírito. Assim é a Arte, assim todas as artes.

Por sorte minha, de forma espontânea, o querido amigo e poeta Manoel de Andrade amenizou as minhas preocupações de prestador de contas obrigado a um balanço anual, mandando-me um artigo minucioso que mostra o panorama que se desenhou ao longos destes doze meses. Ver abaixo.

De minha parte, olhando para o que passou, concluo que valeu a pena. Sem alarde, divulgando o blog primeiramente entre os amigos, depois recebendo adesões espontâneas de outras cidades, estados e de outros países, alargamos o nosso círculo de amizades. Nos primeiros seis meses, contabilizamos uma média de 40 visitações diárias. Nos últimos seis meses, a média subiu para 100 e continua aumentando a cada dia que passa. Ainda é pouco, diante dos gigantecos números da Internet, mas consideremos que o tema escolhido não é dos mais populares. E é exatamente para isso que estamos a trabalhar: para fazer da Poesia um hábito rotineiro na vida das pessoas. Um dia a gente chega lá.

Para comemorar o primeiro ano, procurei reunir um bom grupo de colaboradores em uma página especial. Fiz a eles um simples convite: para você, O que é a Poesia? (clique nos links anteriores ou no título do menu à direita)

Quase todos os convidados mandaram suas colaborações ainda em tempo para podermos soprar a velinha. Outros se excusaram e prometeram enviar suas palavras em seguida, Como estamos em uma ambiente virtual, não há portas inteiramente fechadas e, assim, todas as colaborações poderão ser publicadas a qualquer tempo.

Agradeço aos amigos, colaboradores e visitantes  a confiança e o permanente incentivo a este trabalho. (C. de A.)

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Minha Aldeia

Manoel de Andrade/Curitibaxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Há um ano o Banco da Poesia abriu suas portas honrando-me com o crédito do primeiro depósito.  Quero pedir licença ao seu editor para chamar –  dramatizando meu enredo neste texto –, essa bela instituição pelo mágico nome de Aldeia da Poesia. Na verdade, é com essa imagem, poética e despojada, que eu sinto este site. E é pra esse recanto que  viajo todo dia.

É também minha Pasárgada, onde, literalmente, sou amigo do rei. Gosto de andar, pra cima e pra baixo, ao longo desse território virtual  de líricas alamedas,   galerias de arte,  parques e jardins construídos genialmente com formas e cores cletianas e densamente povoado de versos.

Ao longo deste ano quase uma centena de poetas ali chegaram para ficar. Pela leitura e pelos traços biográficos, já conheço a todos. Quero citar aqui os seus nomes e desde já peço perdão por minhas palavras não poderem  se referir a cada um, diante de tanta qualidade literária.

Minha renovada alegria é estar convivendo nessa aldeia com tantos amigos fraternos: Cleto, Vidal, Walmor, Marilda, Hélio, Simões, João Batista, Solivan, Débora O’Lins

Sob as luzes da memória, em seus caminhos   transitam  Neruda, Garcia Lorca, Fernando Pessoa e Benedetti e os  nossos  Castro Alves, Gregório de Matos, Vinícius, Drummond, Quintana, Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar. Mais adiante  me  surpreendo com a presença de Otávio PazEmily DickinsonAntonio Machado e, mais ao longe, vejo com tristeza Alfonsina Storni caminhando solitária para o mar.

Retomo outros caminhos dessa Aldeia, atravesso seus jardins  e vejo sob um caramanchão quatro poetas que falam e gesticulam. São eles e elas:  Verlaine e Cora Colalina e, no  banco em frente,  Helena Kolody e Baudelaire. A poucos metros,  numa tenda com bom vinho português,  confraternizam  Miguel Torga, Antonio GedeãoAgostinho da Silva, José Dias Egipto, Eugênio de Andrade e Sophia Andressen.

Detenho-me, aqui e ali, “ouço” seus versos e sigo adiante  porque quero conhecer a todos. Chego a um pequeno bosque, frondoso e perfumado  onde se reúnem tantas nacionalidades da poesia e ali ganho meu dia.  São os  que vieram de além mar: Vera lúcia Kalahari, amiga querida que só conheço na saudade e na distância de Angola e Portugal; o grande Mia Couto, de Mocambique;  Sarah Carrère, do Senegal, que conheci recentemente;  Crisódio Araujo, Fernando Sylvan, José Barros Duarte, Jorge Lanten, Ruy Cinatti e Sophia Andressen, essa pleiade de ótimos poetas que enriquecem a literatura do Timor; e, bem assim,  Armênio Vieira e Corsino Fortes de Cabo Verde; e também Emmelie Prophète e Rodney Saint-Eloi, do Haiti.

Vem da poética Espanha os cantos  de Francisco Cenamor e Artur Alonso. Da pátria de Goethe, de Schiller e de Hölderlin chegam os versos de Herman Hesse e da lendária Bagdá, a poesia de Dunya Mikail.

Os hispano-americanos estão chegando e aqui já estão  Vicente Gerbasi, da Venezuela, e Guadalupe Amor, do México,  Álvaro Miranda, da Colômbia e Tejada Gomez, da Argentina, além da quase mitica mexicana Sóror Juana de La Cruz.

Há, nessa aldeia,  um nicho construído pela  saudade e pela esperança de um soldado russo que partiu para a guerra. Espera-me,   escreveu comovido  Konstantin Simonov à  sua amada. Creio ser um dos mais belos poemas,  nesse rastro de belezas que encontro nessa aldeia, e que Hélio do Soveral genialmente imortalizou na língua portuguesa.

No fundo de um vale há uma pequena pedreira disposta de forma circular, formando, naturalmente,  um teatro de arena. Chego até lá e encontro poetas brasileiros de todas as partes do país para um grande  festival de poesia. Sou um dos convidados para partilhar meus versos com   Maurício Ferreira, Isaias de Faria, Rafael Nolli, Saramar Mendes de Souza, Anair Weirich, Raul Pough, Erly Welton, José Marins, Luiz Adolfo Pinheiro, Murilo Mendes, Domingos Pellegrini, Oswald de Andrade, Juca Zokner, Oscar Alves, Iriene Borges, Mauricio Ferreira, Cássio Amaral, Rafael Nolli e possivelmente mais alguns que ainda não encontrei por aqui.

Esta a Minha Aldeia, já global pela magia tecnológica, mas ainda acolhedora e solidária pela graça da Poesia.

Curitiba- março de 2010

Revista Hispanista divulga a obra de Manoel de Andrade

Suely Reis Pinheiro é professora, pesquisadora e escritora que vive em Niterói, de onde envia para o mundo a sua preciosa revista eletrônica Hispanista, já há dez anos. Doutora em Literatura Espanhola e Hispano-americana e especialista em Literaturas Hispânicas e Literatura Comparada, ela dá aulas na Universidade Federal Fluminense – UFF, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e na UNIGRANRIO.

Sua experiência pedagógica e a visão sobre o dinamismo da Internet no processo de comunicação social, levaram-na a criar a revista eletrônica. Ela explica melhor: “A idéia de criar uma revista eletrônica, que pudesse aglutinar a força dos hispanistas, surgiu daí; apostando numa revista que disponibilizasse espaço, na grande rede e que pudesse ser consultada e utilizada, não só pelos hispanistas do Brasil, mas também de outros países“. E mais: “Neste começo de século, quando queremos, cada vez mais, intercambiar conhecimentos e experiências, a revista Hispanista aproveita o inegável valor comunicativo da Internet e se abre ao diálogo, permitindo pensar, neste terceiro milênio, questões do hispanismo e seu vasto campo multidisciplinar“.

E por que o título Hispanista?

Porque ser um hispanista ― e o termo pode ser tomado no sentido amplo ― é estar enlaçado pelos estudos hispânicos. Hispanistas somos todos, quando nos debruçamos sobre a Língua Espanhola e as Literaturas Espanhola e Hispano-Americana… uma revista aberta a várias tendências e linhas de pesquisa da área hispânica, abarca, por ser uma revista virtual, um horizonte bem mais largo do que o das revistas nãovirtuais. Reúne, em viagem intelectual, pessoas envolvidas no processo de intensificação e de divulgação das ‘cosas hispánicas’, e promove, no âmbito da reflexão e da análise, uma
instigante troca de experiências, idéias e enfoques
“.

Ela informa, ainda, que a “revista abre espaço para divulgar o trabalho científico de estudiosos da hispanidade, possibilitando, também, ao sabor da intertextualidade, que pesquisadores de outras áreas atualizem a interdisciplinariedade, nas relações entre língua, literatura, história, artes plásticas, folclore, cinema, cultura… Com isso, um grande acervo comum, facilmente acessado por todos, vai sendo formado“.

Os trabalhos publicados passam por avaliação prévia de um conselho editorial formado por professores e especialistas em literatura, brasileiros e de outros países, como Argentina, Cuba, Venezuela e Espanha. Mantém correspondentes em vários estados brasileiros e no exterior.

Mas nem só de estudos acadêmicos vive Hispanista. Há pouco tempo Suely conheceu o trabalho poético do nosso Manoel de Andrade e, de quando em quando, os publica na revista virtual, além de outros textos. Para quem quiser ler os trabalhos de Manoel de Andrade já publicados na revista Hispanista, basta clicar nos ítulos abaixo. Alguns deles também foram postados aqui no Banco da Poesia.

Começamos pelo último número (Vol X I nº 40, correspondente ao trimestre de janeiro,  fevereiro e marçoo de 2010).

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Manoel de Andrade, o poeta que escreveu para toda a América Latina

Artigo do jornalista Julio Daio Borges, publicado na revista eletrônica Digestivo Cultural

Recado à mulher amada

Poema

Canção de amor à América

Poema

Por que cantamos

Poema

Véspera

Poema

Canção para os homens sem face

Poema

Poesía y Oralidad

Ensaio

Otto René Castillo: O sonho e o martírio de um poeta

Artigo

Manoel de Andrade e Ferreira Gullar: poetas da resistência

Entrevista concedida ao jornal A Tarde, de Salvador, Bahia

Parabéns à professora Suely, por seu importante trabalho e ao poeta Manoel de Andrade, pelo reconhecimento que sua obra vem obtendo em todas as partes.


Paz natalina

Hoje, domingo, 20 de dezembro de 2009, fez um belo domingo em Curitiba. Sol e cheiro do Natal que se aproxima.

O Banco da Poesia recebeu duas contribuições apropriadas à época natalina (ver abaixo). Manoel de Andrade relembra um poema de 2002, no qual dirige seus agradecimentos pelos presentes que a vida lhe reservou. Já Vera Lúcia Kalahari imagina, lá de Portugal, todo mundo reunido junto ao presépio cristão e faz um desafio inquietante. Aproveitei a onda e postei uma croniqueta, onde reflito sobre a possibilidade — utópica, é claro — de todos os dias poderem ser dias de Natal.

Tudo para reiterar nossos votos de um ótimo Natal e um ano de 2010 (gente, já estamos vencendo a décima parcela deste Século XXI!) bastante positivo para toda a sociedade humana e, evidentemente, para a grande Gaia que nos abriga.

Para ilustrar, uma foto do Natal do HSBC, tradição iniciada por seu antecessor Bamerindus, a nota máxima do Natal curitibano. Para quem não conhece o evento: imagine uma criança em cada janela do antigo Palácio Avenida, a compor um maravilhoso coral natalino. Cleto de Assis

Manoel de Andrade nos oferece sua prece natalina

Diz a história — ou histórias que se contam em volta dela — que Albrecht Dürer, pintor alemão (Nurembergue, 1471–1528), quando jovem, era bastante pobre, mas ansiava em se tornar um grande artista, assim como seu amigo, Franz Knigstein, com o qual dividia seus sonhos em direção à arte. Mas, para se sustentarem, tinham que trabalhar em tarefas mais rudes, incompatíveis com os estudos de pintura. Teriam chegado, então, a um acordo: lançariam a sorte e o perdedor continuaria trabalhando para financiar os estudos do outro.

Dürer ganhou e continuou a estudar, enquanto Knigstein permaneceu no trabalho. Um dia (toda história tem um dia importante) o pintor voltou à casa e encontrou-o rezando pelo sucesso do amigo, mesmo que ele, já com as mãos calejadas pelo trabalho bruto, não pudesse mais manipular os instrumentos de pintura. Albrecht Dürer, então, se comoveu com a cena e decidiu rapidamente gravá-la em um esboço que ficou conhecido como Mãos em Prece.

Na verdade, Dürer era filho de um abastado ourives e aprendeu com o pai o ofício, tornando-se também um exímio pintor, gravador e ilustrador. Com quinze anos tornou-se aprendiz do pintor e impressor alemão Michael Wolgemut (1434 – 1519), ao mesmo tempo em que ensaiava as técnicas de gravura em metal e em madeira. Com 31 anos de idade foi nomeado pintor da corte de Maximiliano I, da então Germânia. Após a morte do imperador, em 1520, partiu para a Holanda, onde conviveu com artistas e intelectuais do Renascimento, como Erasmo de Roterdam.

É bastante provável, portanto, que a história de sua obra Mãos em Prece não passe de uma lenda. Em verdade, o desenho é apenas um esboço de mãos, feito por Dürer quando ele recebeu uma encomenda de Jakob Heller (1460-1522), um rico comerciante, prefeito de Frankfurt e membro do conselho da cidade, para pintar um
retábulo com o tema da Assunção e Coroação da Virgem Maria.

Dürer terminou o projeto em detalhes, copiado exatamente pelos pintores encarregados da execução do retábulo. Apenas o painel central, representando a Assunção e Coroação da Virgem, foi executado pelo próprio
Dürer. Ele trabalhou durante 13 meses sobre a pintura final, determinado a torná-la “tão boa e bela, que continuará a ser brilhante e fresca durante quinhentos anos.”

Infelizmente, o painel central do retábulo foi vendido, um século mais tarde, pelos dominicanos ao duque Maximiliano da Baviera e, em 1729, foi destruído por um incêndio. Uma cópia de 1614 da obra, feita por Jobst Harrich de Nuremberg (1580-1617), sobreviveu. Também se salvaram dezoito esboços preliminares preparados por Dürer para a pintura final, entre os quais Mãos em Prece.

Mas, como dizem os italianos, se non é vero, é ben trovato. Afinal, uma oração, feita com boa intenção, só pode ter resultados positivos. Prece é meditação, é introspecção, é reflexão, é momento de concentração interior, é tentativa de contato com outras energias positivas. Assim, as mãos postas de Dürer, desenhadas apenas como um esboço, sem acurácia pictórica, tornaram-se mais conhecidas do que muitas de suas obras primas.

Lembrei-me delas quando li o poema de Manoel de Andrade, Prece da Criatura, um ato de reconhecimento e humildade ante a grandeza da vida, bastante apropriado para esta  época natalina. Ele nos envia seu trabalho como cumprimento a seus amigos e leitores do Banco da Poesia.

A Prece da Criatura

Manoel de Andrade

Eu te agradeço, Senhor,
ser filho do teu amor
e herdeiro do universo.
Ser cantor dessa beleza,
ter um lugar nessa mesa,
pelo sabor do meu verso

Ó Senhor, muito obrigado,
pelos  pais bons e honrados,
e a lição da pobreza.
Pelo café com farinha,
por tudo que eu não tinha,
e que fez minha riqueza

Pelo meu corpo perfeito,
a poesia em meu peito
e os anos da minha idade.
Por todo dever cumprido,
pelo amparo recebido
e pela imortalidade.

Eu te agradeço também
pela semente do bem
plantada no meu pomar.
Pela doçura desse fruto,
não ter me tornado um bruto
e ter aprendido a amar.

Pela água da minha fonte,
pela linha do horizonte
e um sonho de marinheiro.
Pelo meu mar de criança,
e o meu barco de esperança
percorrendo o mundo inteiro.

Pelo pão, pelo abrigo,
pela dádiva de um amigo,
e o abraço imperecível.
Te agradeço com veemência
esta paz na consciência
e a minha fé invencível.

Pela luz que me ilumina
desde a antiga Palestina
na alegria e na dor.
Por quem sou, pelo que sei,
por Moisés trazendo a lei,
por Jesus trazendo o amor.

Eu te agradeço, Senhor,
sobretudo pela dor
quando ensina uma lição.
Ninguém paga sem dever
e a lei obriga a colher
o efeito da nossa ação.

Pela sapiência contida
no pergaminho da vida
e pela civilização.
Te agradeço a minha parte,
pela ciência, pela  arte,
e pela Grécia de Platão.

Por Cabral no rumo certo,
pelo Brasil descoberto,
meu orgulho de cidadão.
Pelo herói da Inconfidência,
o grito da Independência
e a benção da Abolição.

Pelas lições da História,
pelo povo e a sua glória
na busca da liberdade.
E pela humanidade inteira,
quando erguer sua bandeira
pela paz e a verdade.

Grato sou por ter um sonho,
sonhar com um mundo risonho
numa paz contagiante.
Ver este Brasil fecundo
como o coração do mundo
em um porvir deslumbrante.

Te agradeço o bom combate,
e ter encarado esse embate
com o coração despojado.
Com tua luz nos meus passos,
a fraternidade em meus braços
e um sonho partilhado.

Contigo, Senhor, sou forte,
tenho um fanal, tenho um norte,
razão, sensibilidade.
Eu moro na melodia,
na música e na poesia
e no farol da verdade.

Muito obrigado Senhor
pelo trabalho e o suor,
pelo que dei e recebi.
Quando chegar meu momento,
se eu tiver merecimento.
me leva pra junto de ti.

Curitiba, dezembro de 2002

Perdoem-me, mas é preciso relembrar o pavor e a dor

Em 1945, eu tinha apenas quatro anos. Um menininho, um little boy, como se diz em inglês. Nos Estados Unidos da América do Norte, havia milhares de little boys iguais a mim. E lá no Japão, no outro lado da Terra, também existiam milhares de little boys e little girls. Todos, como eu, germinando para a vida e dispostos a crescer e fazer parte dessa imensa massa de gente a que chamamos humanidade.

Mas eis que alguns pais desses menininhos e menininhas daquele país e do Japão estavam brigando. E o pai de todos os estadunidenses mandou um avião até a Terra do Sol Nascente para jogar uma bomba ironicamente batizada de Little Boy e matar menininhos e menininhas e adultos e idosos de uma só vez. Era o 6 de agosto daquele ano.

Como se não bastasse a horrível carnificina, três dias depois, no dia 9 de agosto, o mesmo paizão mandou mais um avião jogar outra bomba em um cidade próxima à primeira destruída. Dessa vez o artefato bélico foi batizado com outro irônico nome, Fat Man. E matou e aleijou muitos homens gordos, homens magros, mulheres e mais menininhos e menininhas.

Aí os homens da época – que se diziam adultos, inteligentes e sérios – festejaram porque aquela imensa imolação fizera com que a guerra mundial finalmente acabasse, embora outros adultos, também considerados sérios e inteligentes, tenham dito que a guerra iria logo acabar, de qualquer jeito, mesmo que Little Boy e Fat Man não tivessem interpretado o papel sujo  naquela tragédia.

O que os meninos e meninas não conseguiam entender era o porquê daquela briga e de tantas mortes causadas. Os adultos não ensinavam que brigar era coisa feia? Então, por que faziam tanta coisa feia?

Eu, mesmo depois que deixei de ser menino, jamais consegui compreender.

………………………………..

Mas os poetas nos ajudam a não esquecer e a tentar entender. Por isso, pedimos a dois poetas brasileiros – Manoel de Andrade e Vinicius de Moraes – a energia poderosa de suas palavras para homenagear os que sentiram a dor e o pavor de Hiroshima e Nagasaki naqueles dias trágicos, de forma definitiva ou arrastados até os dias finais pelas sequelas físicas e espirituais. Ao final deste post, um dos poemas de Vinicius, musicado por João Apolinário e Gerson Conrad, do grupo Secos & Molhados, com a voz de Ney Matogrosso.

Hiroshima

xxxxxxxxxManoel de Andrade

Hiroshima, Hiroshima
rosa rubra do oriente
fragrância de cerejeira
céu de anil no sol nascente.

Farol de luz no estuário
remanso dos vendavais
porto e escala dos juncos
roteiro dos samurais.

Verão de quarenta e cinco
no dia seis de agosto.
Clareando as águas do delta
a aurora beija o teu rosto.

Surge o Sol, se abre o dia
na luz e no movimento.
Tudo era paz e alegria
e nenhum pressentimento.

Teus colibris revoavam
no fresco azul dos teus ares
eram os casais, eram os ninhos
carícias, trino e cantares.

O arroz na água e na espiga
talo e seiva a palpitar
os rosais desabrochando
e os girassóis a girar.

Vidas… teu rosto eram vidas
nos campos e nos quintais
nos jardins, na verde relva
na algazarra dos pardais.

Folguedos, danças, cantigas
tua infância sem receios
teus escolares em flor
correndo pelos recreios.

As horas cruzavam o dia
os pais e os filhos na praça
o povo cruzava as ruas
cruzava o céu a desgraça.

De repente nos teus ares
a águia do norte, o falcão
e num segundo, em teus lares,
gritos, fogo, turbilhão.

O beijo carbonizando
a luz devorando o dia
a carne viva queimando
na instantânea agonia.
Hiroshima
No céu… um avião se afasta
na voz… a missão cumprida
no chão… a dor que se arrasta
e a cidade destruída.

Quem eras tu, Hiroshima
naquele dia distante…?
Eras sonhos e esperanças
incendiados num instante…

Quantos projetos de vida
mil sonhos acalentados
quantas mil juras de amor
nos lábios dos namorados.

Eras filhote no ninho
eras fruto no pomar
canteiro de brancas rosas
e toda a vida a cantar.

Eras mãe, eras criança
e no útero eras semente
ontem eras a esperança
e agora o braseiro ardente

Por que Hiroshima, por quê…?
o punhal de fogo, a explosão…?
Por que cem mil corações
ardendo sem compaixão…?

Tua inocência cremada
na fogueira do delírio.
Tua imagem retratada
na estampa do martírio.

Teu sangue vive na história
nas cicatrizes ardentes
nas lágrimas, na memória
na dor dos sobreviventes.

Quem previu tua agonia?
Quem explodiu tua paz?
Quem tatuou nos teus lábios
as palavras: nunca mais!?

Comandantes, comandados…
quem são os donos da guerra…?
e em que tribunal se julgam,
os genocídios da Terra…?

Por tanta dor, rogo a Deus
na minha prece tardia
que guarde no seu amor
os mártires daquele dia.

Hiroshima, flor da vida,
semente, ressurreição.
Fênix, face renascida.
PAZ, santuário, canção.

xxxxCuritiba, Julho de 2005.
xxxxDo livro CANTARES, editado por Escrituras

A Bomba Atômica

xxxxxxxxxVinicius de Moraes

xxxxxxxxxxIxxxxx

xxxxxxxxxxxxxxxxxe=mc2xxx

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxEinstein

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
xxxxxxxxxxxxDeusa, visão dos céus que me domina
xxxxxxxxxxxxxx… tu que és mulher e nada mais!

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx “Deusa”, valsa carioca

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
xxxxxxDos céus descendo
xxxxxxMeu Deus eu vejo
xxxxxxDe paraquedas?
xxxxxxUma coisa branca
xxxxxxComo uma forma
xxxxxxDe estatuária
xxxxxxTalvez a forma
xxxxxxDo homem primitivo
xxxxxxA costela branca!
xxxxxxTalvez um seio
xxxxxxDespregado à lua
xxxxxxTalvez o anjo
xxxxxxTutelar cadente
xxxxxxTalvez a Vênus
xxxxxxNua, de clâmide
xxxxxxTalvez a inversa
xxxxxxBranca pirâmide
xxxxxxDo pensamento
xxxxxxTalvez o troço
xxxxxxDe uma coluna
xxxxxxDa eternidade
xxxxxxApaixonado
xxxxxxNão sei indago
xxxxxxDizem-me todos
xxxxxxÉ A BOMBA ATÔMICA.
CogumeloAtômico

xxxxxxVem-me uma angústia.

xxxxxxQuisera tanto
xxxxxxPor um momento
xxxxxxTê-la em meus braços
xxxxxxA coma ao vento
xxxxxxDescendo nua
xxxxxxPelos espaços
xxxxxxDescendo branca
xxxxxxBranca e serena
xxxxxxComo um espasmo
xxxxxxFria e corrupta
xxxxxxDo longo sêmen
xxxxxxDa Via-Láctea
xxxxxxDeusa impoluta
xxxxxxO sexo abrupto
xxxxxxCubo de prata
xxxxxxMulher ao cubo
xxxxxxCaindo aos súcubos
xxxxxxIntemerata
xxxxxxCarne tão rija
xxxxxxDe hormônios vivos
xxxxxxExacerbada
xxxxxxQue o simples toque
xxxxxxPode rompê-la
xxxxxxEm cada átomo
xxxxxxNuma explosão
xxxxxxMilhões de vezes
xxxxxxMaior que a força
xxxxxxContida no ato
xxxxxxOu que a energia
xxxxxxQue expulsa o feto
xxxxxxNa hora do parto.

xxxxxxxxxxII

xxxA bomba atômica é triste
xxxCoisa mais triste não há
xxxQuando cai, cai sem vontade
xxxVem caindo devagar
xxxTão devagar vem caindo
xxxQue dá tempo a um passarinho
xxxDe pousar nela e voar…
xxxCoitada da bomba atômica
xxxQue não gosta de matar!

xxxCoitada da bomba atômica
xxxQue não gosta de matar
xxxMas que ao matar mata tudo
xxxAnimal e vegetal
xxxQue mata a vida da terra
xxxE mata a vida do ar
xxxMas que também mata a guerra…
xxxBomba atômica que aterra!
xxxPomba atônita da paz!

xxxPomba tonta, bomba atômica
xxxTristeza, consolação
xxxFlor puríssima do urânio
xxxDesabrochada no chão
xxxDa cor pálida do hélium
xxxE odor de rádium fatal
xxxLoelia mineral carnívora
xxxRadiosa rosa radical.

xxxNunca mais, oh bomba atômica
xxxNunca, em tempo algum, jamais
xxxSeja preciso que mates
xxxOnde houver morte demais:
xxxFique apenas tua imagem
xxxAterradora miragem
xxxSobre as grandes catedrais:
xxxGuarda de uma nova era
xxxArcanjo insigne da paz!

xxxxxxxxxxIII

Bomba atômica, eu te amo! És pequenina
E branca como a estrela vespertina
E por branca eu te amo, e por donzela
De dois milhões mais bélica e mais bela
Que a donzela de Orleans; eu te amo, deusa
Atroz, visão dos céus que me domina
Da cabeleira loura de platina
E das formas aerodivinais
— Que és mulher, que és mulher e nada mais!
Eu te amo, bomba atômica, que trazes
Numa dança de fogo, envolta em gazes
A desagregação tremenda que espedaça
A matéria em energias materiais!
Oh energia, eu te amo, igual à massa
Pelo quadrado da velocidade
Da luz! Alta e violenta potestade
Serena! Meu amor, desce do espaço
Vem dormir, vem dormir no meu regaço
Para te proteger eu me encouraço
De canções e de estrofes magistrais!
Para te defender, levanto o braço
Paro as radiações espaciais
Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me
Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome
Para te defender, matéria dura
Que és mais linda, mais límpida e mais pura
Que a estrela matutina! Oh bomba atômica
Que emoção não me dá ver-te suspensa
Sobre a massa que vive e se condensa
Sob a luz! Anjo meu, fora preciso
Matar, com tua graça e teu sorriso
Para vencer? Tua enérgica poesia
Fora preciso, oh deslembrada e fria
Para a paz? Tua fragílima epiderme
Em cromáticas brancas de cristais
Rompendo? Oh átomo, oh neutrônio, oh germe
Da união que liberta da miséria!
Oh vida palpitando na matéria
Oh energia que és o que não eras
Quando o primeiro átomo incriado
Fecundou o silêncio das Esferas:
Um olhar de perdão para o passado
Uma anunciação de primaveras!

Rosa de Hiroshima

xxxxxxxxxVinicius de Moraes

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada

______________

Ilustrações: C. de A.

Indelével imagem do começo

Infância

por Manoel de Andrade

PaiA meu pai

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xxxxxLá vai a Dona Biloca levando uma corvina…
xxxxxLevei uma surra porque peguei um ovo no galinheiro dela
xxxxxe disse pra minha mãe que achei na rua…

Bilocaxxx

xxxxxLá vem a Odair e o Udinho…
xxxxxEu sei que eles querem brincar na piscina que eu fiz sooozinho…
xxxxx Ei Lelo, lá vem o Seu Badico lavar os cavalos na praia…
xxxxxEu sei, mas depois ele vai encher a carroça de tainhas,
xxxxxvai pôr folhas de bananeira em cima e vai vender lá em Medeiros.
xxxxx Paaaai!… deixa eu ir com o senhor lá em Medeiros???
xxxxxComo eu gosto de lavar o Sanho… ele é tão mansinho…
xxxxx Pai… o senhor já nadou até a ilha?
xxxxx Pai… depois o senhor me leva até o fundo?
xxxxx Pai… eles vão pôr de novo a rede hoje?
xxxxx Pai… depois vamos tomar garapa lá no Seu Bebé?

Infância… a indelével imagem da vida
o território mágico da alma
lembrança viva e peregrina que flutua pelo tempo.
Ah! Essa salgada saudade dos braços fortes de meu pai
a levar-me sobre os ombros entre as ondas.
O salto, o mergulho, o torvelinho das águas
minha festa, meu delírio.
Meu mar, meu céu, meu pão de liberdade
meus sete anos correndo atrás das gaivotas
perambulando entre as canoas que chegavam
meus pés vestidos com pantufas de espuma
a chutar seus densos flocos pelo ar.
As estrelas-do-mar semeadas ao longo dos meus passos
os siris entrando em seus buracos
os maçaricos andando ligeirinhos pela praia
as redes chegando lentamente com o cardume aprisionado
arraias, bagres, cações
espadas, águas-vivas, caranguejos
os pescadores repartindo os peixes agonizantes
os baiacus mortos na areia
os restos do arrastão espalhados sobre a praia
meu samburá repleto de peixinhos.

Ah, a canção intermitente das ondas
o poético itinerário das velas levadas pelo vento
o vôo vagabundo das aves litorâneas
o dorso escuro dos botos surgindo de quando em quando sobre as águas.
A maré alta da tarde apagando as marcas da manhã
a minha lagoinha lá perto da ponte
o meu mangue povoado de siris-goiá
meu pai tirando ostras
o rio desembocando lá na barra
a chegada das tainhas no inverno.

PesacaTainha

Ali morava minha infância
ali, e na imensurável morada do horizonte…
Meus olhos despertavam nas pálpebras entreabertas da aurora
e partiam com os mastros que sumiam na distância.
Vagavam no caminho melancólico do crepúsculo
no ocaso das tardes e na penumbra
na sedução da lua cheia sobre o mar.
Ah, Piçarras!… Piçarras!………………………
Não eras ainda esse moderno balneário
e a tua praia era somente minha o ano inteiro.

………………………………………………………………………………………………………………….
xxxxxAs velas da minha infância,
xxxxxarriadas pelo tempo, já não saem pra pescar.
xxxxxAs redes daqueles anos,
xxxxxabertas qual flor nas águas, chegam vazias do mar.
xxxxxOs cardumes de tainhas,
xxxxxligeiras como corisco, já não chegam pra invernar.
xxxxxAs águas vivas do rio,
xxxxxhoje carregam chorando, seu veneno para o mar.


Infancia
xxxxxMeu manguezal de menino,
xxxxxberçário de tantas vidas, foi inteiro loteado.
xxxxxMinhas canoas à vela,
xxxxxpoemas soltos ao vento, hoje navegam roncando.
xxxxxO lago era um ovário
xxxxxcujo canal dava ao rio, e tudo foi aterrado.
xxxxxProgresso… que desencanto!!!
xxxxxsou um estranho nesse ninho, sou uma infância chorando.

………………………………………………………………………………………………………………….

Ó mar, ó mar
procuro em vão meus rastros na areia
e por isso meus passos já não serão como um regresso…
Me restará, contudo, sempre a tua eterna imagem,
tua beleza amanhecida e retocada pelo sol e pela brisa,
tuas verdes planícies que espraiam o mundo.
Resta-me o teu sabor primordial
“o sal da vida”
linfa incorruptível
ventre profundo que dia a dia reinaugura a maternidade planetária.
Restam-me tuas noites pontilhadas pelos faróis do mundo
por Sírius, Antares, Aldebarã…
por todo o firmamento constelado
e pelo esplendor dos plenilúnios.

Volto, saudoso, a meus mares
porque sempre haverá um leste e um sul magnético no meu peito
apontando-me o encanto desses íntimos recantos.
Aqui, uma pequenina praia entre pedras e penhascos,
ali, a visão imensa da baía com seus barcos e canoas,
além, o grito alado das plumagens que voam lentamente sobre as ondas
ao longe, o pesqueiro solitário que demanda as águas fundas.
Relembro este molhe de pedra que avança sobre o mar
do farol da barra e desta paisagem soberana
e da minha adolescência, cruzando a nado esta corrente.
É o meu Itajaí-Açu desembocando calmamente no oceano
neste mar tão verde desta manhã de sol.
Meu olhar ancora ao longe, nos navios fundeados
e navega, mais além, pousado no mastro esbelto de um veleiro.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
FozdoItajaí
Mar, ó mar
restará sempre o teu murmúrio a embalar o mundo
a voz inaudível das profundidades orientando a rota dos cardumes
a tua gestação incessante de criaturas
a força imponderável das correntes
a pontualidade das marés
os teus ciclos arquétipos que sustentam a vida.

Mar, ó mar
basta-me hoje o que já me deste desde sempre…
a tua imensidão tatuada nos meus olhos,
verde enseada onde aportou meu lírico destino.
Esses teus encantos, as tuas extensões, essa totalidade…
todas as tuas medidas eu quisera ter na suprema síntese dos meus versos,
para dá-la ao mundo na expressão mais bela da poesia:
a face deslumbrante da esperança.

xxxxxxxxxxxxxxxxPiçarras – Itajaí, fevereiro de 2005.

Canção para Isabela, a pequenina

Recém-nascida

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxde Manoel da Andrade para Isabela

Isabela

Teus olhos,
abrem o mundo…
inauguram o destino…
Teu ser…
luz que escavou o ventre em busca do amanhecer,
é a véspera de toda ventura
o talvez de tudo
uma aurora retirada do mistério.

Passo a passo… e encantada…
ressurgiste na semente peregrina
caminhando como seiva palpitante.
Penetraste nos segredos da criatura
decifrando os idiomas do encanto.
Atravessaste as fronteiras do impasse
e de forma em forma, de reino em reino,
pelas fácies primordiais da vida,
gestada pelo código das espécies
pelo tempo imensurável dos enigmas
e por esse umbilical território da beleza… tu chegaste!

Retomas com o véu do esquecimento desterrando sombras
e anunciando a esperança.

E agora já és promessa e reencontro,
um botão se entreabrindo num parto de louvores
e assim… eis a rosa…
a rosa amanheci da
a flor… enfim…
a flor imprescindível.

Teus olhos
corolas cristalinas de ternura
âncoras da luz e do silêncio,
são retratos adormecidos de outras eras
sóis que acordarão novas primaveras
cantiga antecipada de lirismo
invadindo a aldeia da minha melancólica poesia.

Dádiva perfeita
viandante de todos os caminhos
filha milenar do tempo e das estrelas…
o meu amor apenas germinou teus passos
e construirá contigo um caminho para o sol.

Curitiba, esboçado em junho de 1980
e reescrito em junho de 2004
Do livro Cantares, Escrituras Editora, 2007
Ilustração: Cleto de Assis

Poemas encadeados

Manoel de Andrade costuma dizer que não existem coincidências. Tudo estaria mais ou menos encadeado e grande parte dos eventos deste mundo estão programados em outra parte, aguardando apenas que possamos confirmá-los ou modifícar o fado, segundo nosso livre arbítrio. Mas há coincidências significativas, como a que ocorreu hoje.

Ao fazer um comentário sobre o poema Espera-me, de Konstantin Simonov (ver abaixo),  Deborah O’Lins de Barros lembrou que ele combinaria com Unchained Melody (Melodia desencadeada ou desacorrentada) , música de Alex North e letra de Hy Zaret, cantada por Elvis Presley.

E onde está a coincidência? Diz sua biografia: “Em 16 de Agosto de 1977, Elvis chega a Graceland (a casa onde vivia) alguns minutos após a zero hora. No portão há vários fãs, um deles é Robert Call, que tira uma foto de Elvis. A última foto de Elvis em vida. Às 15:30 deste mesmo dia Elvis é declarado morto vitíma de um ataque cardíaco. A necrópsia revelou a ingestão de oito ou mais drogas (entre outras, morfina, valium e valmid), responsáveis por sua morte“.

Mas onde está a coincidência? Primeiro na letra, que se assemelha ao tema de Simonov: um homem apaixonado que se vê distante da amada e lamenta essa distância. Vejam a letra, no inglês original, encadeada à tradução em português.

Elvis

xxxxxxUnchained Melody

xxxxxxxOh, my love, my darling,
xxxxMeu amor, minha querida,
xxxxxxxI’ve hungered for your touch,
xxxxEu tenho ansiado por seu toque,
xxxxxxxA long lonely time.
xxxxUm longo tempo solitário.

xxxxxxxAnd time goes by so slowly,
xxxxE o tempo passa, tão lentamente,
xxxxxxxAnd time can do so much,
xxxxE o tempo pode fazer tanto,
xxxxxxxAre you still mine?
xxxxVocê ainda é minha?

xxxxxxxI need your love,
xxxxEu preciso do seu amor,
xxxxxxxI need your love.
xxxxEu preciso do seu amor.
xxxxxxxGod speed your love to me.
xxxxDeus, mande depressa seu amor para mim.

xxxxxxxLonely rivers flow to the sea, to the sea,
xxxxRios solitários seguem para o mar, para o mar,
xxxxxxxTo the open arms of the sea.
xxxxPara os braços abertos do mar.
xxxxxxxLonely rivers sigh,
xxxxRios solitários suspiram,
xxxxxxxWait for me, wait for me,
xxxxEspere por mim, espere por mim,
xxxxxxxI’ll be coming home, wait for me.
xxxxEstarei chegando em casa, espere por mim.

xxxxxxxOh, my love, my darling,
xxxxMeu amor, minha querida,
xxxxxxxI’ve hungered, hungered for your love,
xxxxEu tenho ansiado, ansiado por seu amor,
xxxxxxxA long lonely time.
xxxxUm longo tempo solitário.

xxxxxxxAnd time goes by, so slowly,
xxxxE o tempo passa, tão lentamente,
xxxxxxxAnd time can do so much,
xxxxE o tempo pode fazer tanto.
xxxxxxxAre you still mine?
xxxxVocê ainda é minha?

xxxxxxxI need your love,
xxxxEu preciso do seu amor,
xxxxxxxI need your love.
xxxx
Eu preciso do seu amor.
xxxxxxxGod speed your love to me.
xxxxDeus, mande depressa seu amor para mim.

Notaram a coincidência do espere por mim, por mim grifada? Segundo, porque foi uma das últimas músicas cantadas por Elvis Presley, em show realizado no dia 21 de junho de 1977. O que quer dizer que, no próximo domingo (21/06/2009), a última apresentação daquele concerto, com Unchained Melody – a mesma lembrada por Deborah – estará completando 22 anos.

Mas, ao contrário do que se divulga na Internet, aquele show não foi o último de Elvis. A última vez que ele pisou em um palco foi em Indianápolis,  no dia 26 de Junho de 1977, no Market Square Garden. Portanto, niver na próxima sexta-feira.

De qualquer maneira, junho é a grande coincidência. Não sei se Deborah lembrou a data (ele devia ser muito pequena, na ocasião), mas não deixa de ser significativa a lembrança da música tão próximo a esses aniversários. Abaixo, o vídeo daquela belíssima composição, que pode, de fato, como sugere Deborah, servir de fundo para Espera-me. A seguir, My Way, outra bela canção cantada por Elvis, também considerada a última apresentação do já mítico cantor. A maneira como Elvis encerra essa apresentação e se despede do público dá a impressão de que se trata, realmente, de uma last song. Vejam que ele repete o gesto de dar o seu cachecol branco para alguém do público. Parecia ser parte do roteiro, pois, na segunda música, um auxiliar de palco põe o cachecol no pescoço de Elvis, quando ele termina de cantar e se prepara para sair.

Convocamos os Sherloques da rede para irem atrás de mais informações.

Mas, como diz a televisão, vale a pena ver de novo, pois são duas belas e poéticas canções. Ah, é bom lembar que Unchained Melody foi composta por Alex North para um filme um tanto obscuro feito 1955 chamado também Unchained. E, em 1990, ressurgiu como tema de Ghost (Do Outro Lado da Vida), dirigido por Jerry Zucker e estrelado por Patrick Swayze, Demi Moore e Whoopi Goldberg.