Além do incêndio de Notre Dame

Recebi um significativo texto sobre o lamentável incêndio da catedral de Notre Dame de Paris, escrito por uma ex-professora da Universidade dos Andes, de Bogotá, Colômbia, que merece ser lido por todos. Sabemos que a ereção daquela igreja, assim como de todas as que foram erguidas no período gótico da história da arte, foi motivada por grandes transformações sociais, religiosas, políticas e econômicas da Europa, onde, até então, dominava a política medieval, com estreita aliança entre reis e a igreja de Roma. As Cruzadas perdiam os seus objetivos religiosos e se transformaram no aprofundamento do fosso existente, até hoje, entre a igreja ocidental e a igreja oriental. Jerusalém – foco dos cruzados que se sucederam durante mais de mil anos, e de seus orientadores, para uma presumível consolidação da religião cristã romana e considerada durante todo o tempo como Terra Santa por várias crenças – tornou-se a eterna Terra de Conflitos, talvez o local onde mais se derramou sangue, sempre em nome de Deus.

Abade Suger

A história dá crédito ao abade francês Suger (1081-1151) como pioneiro do estilo gótico. Pároco da igreja de Saint Denis, ele lutava com um grande problema. O religioso registrou que, nos dias festivos, sua igreja ficava repleta de fiéis. Escreveu que “a multidão… empenhada em se reunir para adorar e beijar as santas relíquias, ninguém em meio à intensa densidade de milhares de pessoas podia mover um pé”. Claro que a solução era óbvia: aumentar o espaço. Naquela época, em que a arquitetura religiosa era inspirada nos ideais artísticos românicos, as construções eram pesadas, com paredes amplas e janelas diminutas, talvez por intenções defensivas, o que deixava o ambiente eclesial escuro e soturno. Consta que, durante a reforma de sua igreja, Suger teve uma inspiração, como se divina fosse. Imaginou um ambiente literalmente iluminado (símbolo da presença de Deus), cercado de paredes finas e sem divisões. Tudo isso unido à inspiração dos artistas e da também intensa reforma feita na arte contemporânea, foi também adotado um desenho que simbolizava a elevação espiritual: linhas ascendentes.

Paredes mais leves permitiram um verdadeiro desafio às leis da gravidade, pois era possível elevá-las quase sem limites, culminando nas agulhas que   coroavam as torres. A partir de Notre Dame, uma das primeiras igrejas monumentais erguida nesse estilo, houve uma evolução para um feitio mais rebuscado, conhecido como gótico flamejante (flamboyant), que em Portugal teve uma variação muito própria, batizada como Estilo Manuelino. Também em Portugal floresceu o Gótico Mendicante, exemplificado nas igrejas de Batalha e de São Francisco do Porto.


Interior da abadia de Saint-Denis

Foi erguida, então, a Abadia de Saint Denis, entre 1135 e 1144, (a partir de 1966 denominada Catedral Basílica) e fundado o Estilo Gótico. A arquitetura deu um salto técnico, com a utilização da ogiva na criação de abóbodas mais leves, com peso distribuído uniformemente. As paredes deixam de ser um elemento destinado exclusivamente ao suporte de cargas. Isso permitiu a abertura de janelas mais amplas, com belos vitrais colorido que filtram a luz para o interior.

Autorretrato de Giorgio Vasari

Mas coube ao pintor e arquiteto italiano Giorgio Vasari, (1511-1574), também consagrado como fundador da História da Arte, cunhar o termo Estilo Gótico, até então, a partir de Surge, conhecido como Estilo Francês (Opus Francigenum). Vasari criticava a arte medieval, em especial no campo da arquitetura, que, segundo ele, era obscura e negativa, o oposto da perfeição. Relacionou-a com a ação beligerante dos godos, que, no Séc. IV, invadiram a Europa e tiveram vários enfrentamentos com os romanos, chegando a saquear Roma, no Séc. V.

Essas contradições já abriam o caminho para o Renascimento da arte clássica e para o surgimento de pensamento mais aberto ao mundo e distanciamento de filosofias puramente religiosas. Redescobriam-se os filósofos gregos. Traçava-se a senda para o iluminismo e o mundo moderno.

Mas o que tudo isso tem a ver com um blog de Poesia? Tudo a ver, pois tudo, de certa maneira, quando encarado positivamente, é poesia. Lembremo-nos que o estilo Gótico acrescentou poesia e reflexões filosóficas nas construções religiosas, que seguiam as vertentes da arquitetura dos castelos fortificados, quando o que interessava era a segurança de seus ocupantes. Poesia no pensamento dos cientistas da época, os alquimistas, que sonhavam transformar a matéria bruta em riqueza, por meio de seus crisóis. Poesia na utilização da matemática para tornar mais bela a arquitetura. Poesia nas palavras de poetas, como o português Mário de Sá Carneiro (Lisboa, 1890 – Paris, 1916), contemporâneo e amigo de Fernando Pessoa, que deixou seu elogio a Nossa Senhora de Paris. Notem que, entre os versos, há quase previsões místicas (“Mas o Ouro não perdura / E a noite cresce agora a desabar catedrais… / Fico sepulto sob círios – / Escureço-me em delírios, / Mas ressurjo de Ideais…”)

Mário de Sá Carneiro: profético?

Teria Sá Carneiro, morto em Paris por vontade própria, pouco antes de completar 26 anos de idade, imaginado o que sucederia naquela cidade, um século depois?

Nossa Senhora de Paris

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir… Onde acoitar-me?
Os braços duma cruz.
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar…
Um cheiro a maresia
Vem-me refrescar,
Longínqua melodia
Toda saudosa a Mar…
Mirtos e tamarindos
Odoram a lonjura;
Resvalam sonhos lindos…
Mas o Oiro não perdura
E a noite cresce agora a desabar catedrais…
Fico sepulto sob círios —
Escureço-me em delírios,
Mas ressurjo de Ideais…
– Os meus sentidos a escoarem-se…
Altares e velas…
Orgulho… Estrelas…
Vitrais! Vitrais!
Flores de lis…
Manchas de cor a ogivarem-se…
As grandes naves a sagrarem-se…
– Nossa Senhora de Paris!…

            (do livro Indícios de Oiro, publicado em 1937 pelas Edições Presença)

Mas vamos ao texto a que me refiro no início deste post.

O que hoje se queimou e, em parte, desmoronou em Paris, não é simplesmente um “templo católico”. É um dos testemunhos vivos de que houve um tempo – a  baixa Idade Média – no qual o conhecimento, a arte, o trabalho (individual e coletivo) e a educação foram concebidos de uma forma mais abrangente e, talvez, menos ingênua que hoje. As catedrais góticas respondiam ao desejo universal de fazer um livro vivo para mostrar que o universo é habitável e cognoscível (ainda hoje essa é a base de todo esforço científico e de toda vaidade política, em última instância). As catedrais góticas eram – são – edifícios legíveis que ligam a vida curta e frágil do homem com o extenso, porém finito tempo do mundo (com a história e as gerações) e com a eternidade de Deus. Na construção de uma catedral gótica, todas as disciplinas de conhecimento e do quefazer estavam envolvidas. A construção não culminava em uma geração, nem em duas: quem terminava de erguer a catedral (se é que uma catedral se termina de fazer) eram homens os quais os iniciadores não tinham conhecido ou concebido. Com isso, a catedral era construída pela cidade inteira: por seu passado, seu presente e seu futuro. Os vitrais, as esculturas, a pintura, a arquitetura procuravam transmitir a história da humanidade, e, ao mesmo tempo, formular as perguntas corretas para chegar a entender como estava estruturada a realidade. Um público que, na época, era iletrado, em sua maioria, poderia adquirir conhecimento (alguns explícitos, outros mais sutis, herméticos, espirituais) observando a catedral, vivendo-a e compartilhando-a. A catedral tinha uma aspiração universal, que talvez não tenha tido nenhum outro empreendimento educacional até hoje (talvez a internet seja seu correlato mais exato). Hoje o incêndio de Notre Dame, um lugar onde passei horas desejando entender e, por vezes, recebendo a promessa de que um dia entenderei algo, recordou-me que tudo é efêmero. Mais do que os esforços do homem e de todos os seus amores pode o fogo do sol. Dias após de vermos a foto do buraco negro, eu também leio este incêndio como um convite para voltar os olhos para o saber das catedrais (às vezes as coisas são destruídas para se tornarem mais visíveis): para lembrar que os arquitetos e maçons góticos (e os autores de enormes livros de contos inseridos, que eram catedrais escritas) também se aproximaram (não menos do que nossa ciência empírica, que, entre outras coisas, é um desenvolvimento da alquimia e dos cálculos de medievais) para ver além; imaginar mais e mais longe. As torres e a espiral de Notre Dame, e todos os seus altos relevos, suas esculturas e vitrais, clamam apenas uma coisa: o ser humano pode conhecer e elevar-se. Hoje a fumaça, que sobe mais que a espiral, afirma o mesmo. Tudo no mundo é finito e tudo ascende.
Carolina Sanin / 15 de abril de 2019

Carolina Sanín Paz (Bogotá, 28 de abril de 1973) é escritora e docente colombiana, licenciada em Filosofia e Letras da Universidade dos Andes e PhD em literatura espanhola e portuguesa pela Universidade de Yale. É sobrinha da política colombiana Noemí Sanín e neta do escritor Jaime Sanín Echeverri. Foi professora do Purchase College da Universidade de Nova Iorque e da Universidade dos Andes, instituição que deixou em dezembro de 2016. Tem sido colunista o jornal El Espectador, da revista Semana, do portal La silla vacía e da revista Arcadia. Recentemente, sua novela Los niños foi traduzida para o inglês e publicada pela editora inglesa MacLehose Press.

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