Arquivo da categoria: Poemas

Ora, pois!




EntradaIsaías

Dizem os deuses oniscientes
        (e os há muitos por aí, a predicar seus conhecimentos
        sobre a eternidade e o efêmero)
que orar faz bem, acalma o espírito angustiado
e traz paz à alma.

Mas o que entendem eles de espíritos e de almas
se não conheceram os corpos de suas criaturas,
celas osseocarnais em que somos obrigados a viver?
Ou então, se às suas imagens e semelhanças fomos talhados
terão eles elementos sensoriais que simulam
a dor que deveras sentimos?
E por que inventaram a dor, os artesãos astrais?
Não poderiam ter-nos feito com matéria quintessenciada
e tênue, sutil e indolor?
 
Pedem os deuses oniscientes
que os adoremos e ocupemos seus templos e nosso tempo com orações.
Mas, na sua omnisciência, não sabem o que desejamos
e reiteramos nas preces e nas súplicas?
 
Afirmam os deuses oniscientes,
por meio de seus tradutores e supostos representantes,
que temos livre arbítrio, mas nos ameaçam com punições
se seguimos rotas inexistentes nos manuais celestes. 
 
Afirmam os deuses oniscientes que vaidade é egolatria
e egolatria é soberba, e soberba é pecado capital.
Mas porque aceitam as idolatrias a si dirigidas,
algumas desperdiçadas em custosos altares?
 
Recomendam os deuses oniscientes
permanentes prédicas para lembrá-los,
deuses e santos onissapientes e talvez desmemoriados,
que existimos aqui embaixo,
em estado de permanente de aflição.
 
Mas o que é oração, senão um evento unidirecional,
com respostas desprezadas, equivocadas e incompletas?
Deploro a vossa insegurança, senhores dos recônditos abissais,
ao sustentar vosso poder na ameaça às vossas frágeis criaturas
com castigos junto a Hades ou Belzebu
per saecula saeculorum.
 
Ora, pois, senhores deuses que tudo sabem,
cansei do meu silêncio
e me apresento em completo estado de nudez de alma,
sem artifícios literários ou de pretensa santidade,
pois santo não quero ser.
Sou o homem simples da terra esfarelada
do barro da primeira cerâmica factum in caelo
que recolheu, em uma quase completa existência,
todos os impostos a mim impostos sem maiores explicações,
a não ser o fato de que fui depositado no círculo vital
sob as condições de respirar manentemente,
alimentar-me de quando em quando,
trabalhar para patrões políticos,
multiplicar-me algumas vezes
e, diante de dúvidas filosóficas,
 
Ora, pois, aqui estou.
Nem recuo, nem avanço:
balanço na ponte entre o nada e o não sei onde.
Pergunto a vós: irei aonde?
 
        Mas de resposta somente o silêncio atroz.
 
Tudo atribuo a este meu ranço
de coisa antiga, sempre queixosa e inútil,
de coisa fútil e malcheirosa.
Quero ser ímpar, mas sou par de todos os homens
e das mulheres sem soluções,
sem o consolo baldado de orações.
 
O andar trôpego dos beberrões
marca meus passos. Não sinto abraços
ou o puro carinho das crianças
nessas andanças sem roteiro e horizonte.
Sou poeira universal, menos que um grão cortado ao meio
crendo-me montanha imortal.
Melhor cumpriria tal fado secreto
se filho fosse de Lethe,
sem a sede pelas águas do Mnemósine.
 
Ora, pois, ó deuses que tudo sabem,
não me impeçam mais o prazer do agora
sem a fantasia daquele que ora
pelo deleite nubívago do depois.
 
Curitiba, 06/02/2020
 

Além do incêndio de Notre Dame

Recebi um significativo texto sobre o lamentável incêndio da catedral de Notre Dame de Paris, escrito por uma ex-professora da Universidade dos Andes, de Bogotá, Colômbia, que merece ser lido por todos. Sabemos que a ereção daquela igreja, assim como de todas as que foram erguidas no período gótico da história da arte, foi motivada por grandes transformações sociais, religiosas, políticas e econômicas da Europa, onde, até então, dominava a política medieval, com estreita aliança entre reis e a igreja de Roma. As Cruzadas perdiam os seus objetivos religiosos e se transformaram no aprofundamento do fosso existente, até hoje, entre a igreja ocidental e a igreja oriental. Jerusalém – foco dos cruzados que se sucederam durante mais de mil anos, e de seus orientadores, para uma presumível consolidação da religião cristã romana e considerada durante todo o tempo como Terra Santa por várias crenças – tornou-se a eterna Terra de Conflitos, talvez o local onde mais se derramou sangue, sempre em nome de Deus.

Abade Suger

A história dá crédito ao abade francês Suger (1081-1151) como pioneiro do estilo gótico. Pároco da igreja de Saint Denis, ele lutava com um grande problema. O religioso registrou que, nos dias festivos, sua igreja ficava repleta de fiéis. Escreveu que “a multidão… empenhada em se reunir para adorar e beijar as santas relíquias, ninguém em meio à intensa densidade de milhares de pessoas podia mover um pé”. Claro que a solução era óbvia: aumentar o espaço. Naquela época, em que a arquitetura religiosa era inspirada nos ideais artísticos românicos, as construções eram pesadas, com paredes amplas e janelas diminutas, talvez por intenções defensivas, o que deixava o ambiente eclesial escuro e soturno. Consta que, durante a reforma de sua igreja, Suger teve uma inspiração, como se divina fosse. Imaginou um ambiente literalmente iluminado (símbolo da presença de Deus), cercado de paredes finas e sem divisões. Tudo isso unido à inspiração dos artistas e da também intensa reforma feita na arte contemporânea, foi também adotado um desenho que simbolizava a elevação espiritual: linhas ascendentes.

Paredes mais leves permitiram um verdadeiro desafio às leis da gravidade, pois era possível elevá-las quase sem limites, culminando nas agulhas que   coroavam as torres. A partir de Notre Dame, uma das primeiras igrejas monumentais erguida nesse estilo, houve uma evolução para um feitio mais rebuscado, conhecido como gótico flamejante (flamboyant), que em Portugal teve uma variação muito própria, batizada como Estilo Manuelino. Também em Portugal floresceu o Gótico Mendicante, exemplificado nas igrejas de Batalha e de São Francisco do Porto.


Interior da abadia de Saint-Denis

Foi erguida, então, a Abadia de Saint Denis, entre 1135 e 1144, (a partir de 1966 denominada Catedral Basílica) e fundado o Estilo Gótico. A arquitetura deu um salto técnico, com a utilização da ogiva na criação de abóbodas mais leves, com peso distribuído uniformemente. As paredes deixam de ser um elemento destinado exclusivamente ao suporte de cargas. Isso permitiu a abertura de janelas mais amplas, com belos vitrais colorido que filtram a luz para o interior.

Autorretrato de Giorgio Vasari

Mas coube ao pintor e arquiteto italiano Giorgio Vasari, (1511-1574), também consagrado como fundador da História da Arte, cunhar o termo Estilo Gótico, até então, a partir de Surge, conhecido como Estilo Francês (Opus Francigenum). Vasari criticava a arte medieval, em especial no campo da arquitetura, que, segundo ele, era obscura e negativa, o oposto da perfeição. Relacionou-a com a ação beligerante dos godos, que, no Séc. IV, invadiram a Europa e tiveram vários enfrentamentos com os romanos, chegando a saquear Roma, no Séc. V.

Essas contradições já abriam o caminho para o Renascimento da arte clássica e para o surgimento de pensamento mais aberto ao mundo e distanciamento de filosofias puramente religiosas. Redescobriam-se os filósofos gregos. Traçava-se a senda para o iluminismo e o mundo moderno.

Mas o que tudo isso tem a ver com um blog de Poesia? Tudo a ver, pois tudo, de certa maneira, quando encarado positivamente, é poesia. Lembremo-nos que o estilo Gótico acrescentou poesia e reflexões filosóficas nas construções religiosas, que seguiam as vertentes da arquitetura dos castelos fortificados, quando o que interessava era a segurança de seus ocupantes. Poesia no pensamento dos cientistas da época, os alquimistas, que sonhavam transformar a matéria bruta em riqueza, por meio de seus crisóis. Poesia na utilização da matemática para tornar mais bela a arquitetura. Poesia nas palavras de poetas, como o português Mário de Sá Carneiro (Lisboa, 1890 – Paris, 1916), contemporâneo e amigo de Fernando Pessoa, que deixou seu elogio a Nossa Senhora de Paris. Notem que, entre os versos, há quase previsões místicas (“Mas o Ouro não perdura / E a noite cresce agora a desabar catedrais… / Fico sepulto sob círios – / Escureço-me em delírios, / Mas ressurjo de Ideais…”)

Mário de Sá Carneiro: profético?

Teria Sá Carneiro, morto em Paris por vontade própria, pouco antes de completar 26 anos de idade, imaginado o que sucederia naquela cidade, um século depois?

Nossa Senhora de Paris

Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir… Onde acoitar-me?
Os braços duma cruz.
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar…
Um cheiro a maresia
Vem-me refrescar,
Longínqua melodia
Toda saudosa a Mar…
Mirtos e tamarindos
Odoram a lonjura;
Resvalam sonhos lindos…
Mas o Oiro não perdura
E a noite cresce agora a desabar catedrais…
Fico sepulto sob círios —
Escureço-me em delírios,
Mas ressurjo de Ideais…
– Os meus sentidos a escoarem-se…
Altares e velas…
Orgulho… Estrelas…
Vitrais! Vitrais!
Flores de lis…
Manchas de cor a ogivarem-se…
As grandes naves a sagrarem-se…
– Nossa Senhora de Paris!…

            (do livro Indícios de Oiro, publicado em 1937 pelas Edições Presença)

Mas vamos ao texto a que me refiro no início deste post.

O que hoje se queimou e, em parte, desmoronou em Paris, não é simplesmente um “templo católico”. É um dos testemunhos vivos de que houve um tempo – a  baixa Idade Média – no qual o conhecimento, a arte, o trabalho (individual e coletivo) e a educação foram concebidos de uma forma mais abrangente e, talvez, menos ingênua que hoje. As catedrais góticas respondiam ao desejo universal de fazer um livro vivo para mostrar que o universo é habitável e cognoscível (ainda hoje essa é a base de todo esforço científico e de toda vaidade política, em última instância). As catedrais góticas eram – são – edifícios legíveis que ligam a vida curta e frágil do homem com o extenso, porém finito tempo do mundo (com a história e as gerações) e com a eternidade de Deus. Na construção de uma catedral gótica, todas as disciplinas de conhecimento e do quefazer estavam envolvidas. A construção não culminava em uma geração, nem em duas: quem terminava de erguer a catedral (se é que uma catedral se termina de fazer) eram homens os quais os iniciadores não tinham conhecido ou concebido. Com isso, a catedral era construída pela cidade inteira: por seu passado, seu presente e seu futuro. Os vitrais, as esculturas, a pintura, a arquitetura procuravam transmitir a história da humanidade, e, ao mesmo tempo, formular as perguntas corretas para chegar a entender como estava estruturada a realidade. Um público que, na época, era iletrado, em sua maioria, poderia adquirir conhecimento (alguns explícitos, outros mais sutis, herméticos, espirituais) observando a catedral, vivendo-a e compartilhando-a. A catedral tinha uma aspiração universal, que talvez não tenha tido nenhum outro empreendimento educacional até hoje (talvez a internet seja seu correlato mais exato). Hoje o incêndio de Notre Dame, um lugar onde passei horas desejando entender e, por vezes, recebendo a promessa de que um dia entenderei algo, recordou-me que tudo é efêmero. Mais do que os esforços do homem e de todos os seus amores pode o fogo do sol. Dias após de vermos a foto do buraco negro, eu também leio este incêndio como um convite para voltar os olhos para o saber das catedrais (às vezes as coisas são destruídas para se tornarem mais visíveis): para lembrar que os arquitetos e maçons góticos (e os autores de enormes livros de contos inseridos, que eram catedrais escritas) também se aproximaram (não menos do que nossa ciência empírica, que, entre outras coisas, é um desenvolvimento da alquimia e dos cálculos de medievais) para ver além; imaginar mais e mais longe. As torres e a espiral de Notre Dame, e todos os seus altos relevos, suas esculturas e vitrais, clamam apenas uma coisa: o ser humano pode conhecer e elevar-se. Hoje a fumaça, que sobe mais que a espiral, afirma o mesmo. Tudo no mundo é finito e tudo ascende.
Carolina Sanin / 15 de abril de 2019

Carolina Sanín Paz (Bogotá, 28 de abril de 1973) é escritora e docente colombiana, licenciada em Filosofia e Letras da Universidade dos Andes e PhD em literatura espanhola e portuguesa pela Universidade de Yale. É sobrinha da política colombiana Noemí Sanín e neta do escritor Jaime Sanín Echeverri. Foi professora do Purchase College da Universidade de Nova Iorque e da Universidade dos Andes, instituição que deixou em dezembro de 2016. Tem sido colunista o jornal El Espectador, da revista Semana, do portal La silla vacía e da revista Arcadia. Recentemente, sua novela Los niños foi traduzida para o inglês e publicada pela editora inglesa MacLehose Press.

Socorro!

Help!

“Help me if you can, I’m feeling down

And I do appreciate you being round

Help me, get my feet back on the ground

Won’t you please, please help me?”

 

Paul McCartney / John Lennon

Se quiser me ajudar…

…sussurre palavras suaves e doces em meus ouvidos.

Derrame sons de roçar de mãos na relva úmida de seu corpo.

Faça-me esquecer que vivemos no país da simulação

onde a mentira vira imediata verdade.

Se quiser me ajudar…

… brinque comigo com bolinhas de búrico.

Mas tem que ser búrico. Nada de búlica,

gude, fubeca, borroca, berlinde ou ximbra:

essas todas estrangeiras para minha infância.

Se quiser me ajudar…

… empine sua pandorga até as nuvens

e leve-me nela pendurado

para que eu conheça de perto

os rebanhos em constante dispersão.

PandorgaBR
Ilustração: C. de A.

Se quiser me ajudar…

… conte-me onde foi parar a minha coleção de pedras

que eu juntei com tanto carinho em uma mochila de lona,

e um dia foi-se de meus cuidados

levada pelos cuidados de alguém mais esperto.

Se quiser me ajudar…

… diga-me para onde seguiram meus amigos

cujos sonhos eram iguais aos meus

mas que se perderam em curvas inesperadas

sem olhar para trás e sem acenos de adeus.

Se quiser me ajudar…

…explique-me o que é essa tal liberdade

pela qual os homens prendem e matam

e inventam paraísos e nirvanas e outras utopias

e queimam vilas inocentes e sonhos de crianças.

Se quiser me ajudar…

… prove-me que este menino grande e pobre

chamado Brasil tem futuro e que a palavra

esperança ainda encontra sentido no presente

vilipendiado por tantos mal-eleitos.

Cleto de Assis

Curitiba/17.07.2018

Reflexões do C.A.R.A. na Sexta-feira Santa

Carlos-Alberto-Rodrigues-Al

C.A.R.A. são as iniciais de Carlos Alberto Rodrigues Alves. Mas a coincidência vem a calhar, pois ele é O Cara. Teólogo, pedagogo, Pastor evangélico e professor, porém sua profissão (de fé) verdadeira é ser amigo de muita gente. Quase sempre de bom humor, faz de versos de Vinicius sua máxima de vida: “a alegria é a melhor coisa que existe”. E também verseja, muitas vezes, embora sua melhor expressão artística esteja nas pontas do dedos, bom violonista que é. É casado com Luciana e tem três belos filhos: Giovani, Kauan e Giulia.

Hoje assume sua conta no Banco da Poesia, citando um de nossos poetas maiores, mas expondo uma visão da realidade que bem demonstra sua sensibilidade poética. Virão, em breve, versos seus.

Sobre Eriberto e seu cãozinho

Nesta semana santa, comovi-me diante de um catador de papel e morador de rua. Ele passa todos os dias em frente ao meu trabalho. Detalhe: sempre acompanhado de seu fiel e magérrimo cãozinho. Eriberto disse-me que não aceitou a oferta generosa de uma Ong que queria lhe dar um abrigo com maior dignidade. Razão de não ter aceito a generosidade: “ Eles me disseram que eu não poderia levar o Piloto para morar comigo”.

Vendo esta cumplicidade existencial entre o pequeno animal e seu dono entendi um pouco mais o poema do Drumond:
cao

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas ainda tens um cão…

Interpretei a cena que vi como mais uma lição de que nosso olhar não deve focar as nossas vias-sacras e sim as ressurreições constantes que a vida nos oferece. Noites que se transformam em manhãs, invernos que se tornam primaveras, lagartas que se metamorfoseiam em borboletas… Ou um cãozinho, com seu olhar de amigo, que nos comprova o valor da lealdade. C. A. R. A.

Sexta-feira da cruz que nos pesa

Não sou professo de religião organizada. E considero que minhas atuais convicções a respeito da vida e do[s] mundo[s] que me cerca[m] não são produto de soberba ou de exagerada humildade: creio-me incapaz de construir a ideia de outras vidas, além desta nossa precariamente vivida por alguns anos, e de seres imensamente poderosos que eventualmente nos criaram e comandam nossos destinos.

Confesso-me igualmente incapaz até mesmo de entender um universo (ou mais de um) com um começo e talvez sem fim, mesmo com explicações plausíveis da mais moderna Física. Já tenho um universo dentro de mim, cada um de nós é um microcosmo pouco conhecido: por que pretender ir além, sem complicar ainda mais a barafunda religiosa que povoa a mente e os corações dos seres humanos?

Mas respeito os que têm fé, opondo-se à minha (des)crença com uma confiança inabalável em uma vida transcendental. Respeito-os porque também já assumi essa confiança, dentro dela fui educado e nela vivi até adotar outros paradigmas. Em minha realidade, prefiro valer-me mais da dúvida que da fé, uma vez que a incerteza abre portas maiores para o conhecimento.

Em anos anteriores, possivelmente ainda sensível a exercícios religiosos que impregnaram minha infância, publiquei poemas alusivos à fé cristã, em datas especiais como a semana da Páscoa, que ainda me traz saudades dos tempos em que acordávamos, eu e minha irmã menor, nos domingos pascais, para iniciar a caça às cestas de doces que nos encantariam por alguns dias. Essas publicações em nada contradizem meu posicionamento em relação às religiões organizadas. Quem quiser saber mais um pouco, leia poemas que publiquei (aqui e aqui), arriscando-me a tangenciar levemente os campos metafísicos da vida humana. O resto é o que restar. E o que resta, ninguém ainda sabe.

Brasilia_Planalto

 

Para não deixar de refletir – sob vários ângulos – sobre essas datas histórico-religiosas, busquei algo relacionado com a crença em um deus-esperança, sem refúgio na tragédia sanguinolenta da sexta-feira da paixão. E encontrei um belo poema de Antônio Gonçalves Dias, o nosso romântico indianista. Denomina-se Ideia de Deus . Deposito aqui somente a segunda metade do Canto I, que pareceu-me profética, por descrever um cenário associado à imagem atual de certo país pendurado ao sul do Equador. Fala, em meio à invocação desse deus-esperança, de corrupção, de comandantes ímpios, de vingança e roubos, de invasão de insetos, mas também da fé em “um povo que nasce, esperançoso e crente, do povo corrupto”. Quem adivinhar que país é esse, ganha um ovinho de chocolate. Mas para reclamar somente dentro de alguns anos, quando tivermos recuperado nossa economia. C. de A.


Ideia de Deus

Gonçalves Dias

À voz de Jeová infindos mundos
Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada,

Luziu no espaço a lua!
Sobre a terra
Rouqueja o mar raivoso,
E as esferas nos céus ergueram hinos

Ao Deus prodigioso.
Hino de amar a criação, que soa Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruído
Do dia cintilante!

A morte, as aflições, o espaço, o tempo,
O que é para o Senhor?
Eterno, imenso, que lh’importa a sanha
Do tempo roedor?

Como um raio de luz, percorre o espaço,
E tudo nota e vê –
O argueiro, os mundos, o universo, o justo;
E o homem que não crê.

E Ele que pode aniquilar os mundos,
Tão forte como Ele é,
E vê e passa, e não castiga o crime,
Nem o ímpio sem fé!

Porém quando corrupto um povo inteiro
O Nome seu maldiz,
Quando só vive de vingança e roubos,
Julgando-se feliz;

Quando o ímpio comanda, quando o justo
Sofre as penas do mal,
E as virgens sem pudor, e as mães sem honra.
E a justiça venal;

Ai da perversa, da nação maldita,
Cheia de ingratidão,
Que há de ela mesma sujeitar seu colo
A justa punição.

Ou já terrível peste expande as asas,
Bem lenta a esvoaçar;
Vai de uns a outros, dos festins conviva,
Hóspede em todo o lar!

Ou já torvo rugir da guerra acesa
Espalha a confusão;
E a esposa, e a filha, de tenor opresso,
Não sente o coração.

E o pai, e o esposo, no morrer cruento,
Vomita o fel raivoso;
– Milhões de insetos vis que um pé gigante
Enterra em chão lodoso.

E do povo corrupto um povo nasce
Esperançoso e crente.
Como do podre e carunchoso tronco
Hástea forte e virente.


Gonçalves_Dias

Antônio Gonçalves Dias nasceu em Caxias, Maranhão, a 10 de agosto de 1823, e morreu em Guimarães, no mesmo estado, a 3 de novembro de 1864, vítima de um naufrágio. Estudo em Portugal e em Coimbra relacionou-se com escritores lusos celebrados na época, como Almeida Garret e Alexandre Herculano. De volta ao Brasil, já diplomado em Direito, deu início à sua saga literária, marcada pela influência do romantismo português, mas que se voltaria ao elogio de valores nacionais, numa espécie de reação ao colonialismo, tornando-se um dos maiores expoentes do romantismo brasileiro e da corrente literária conhecida como “indianismo”. Sua famosa Canção do Exílio  foi escrita ainda nos tempos de estudante, em Portugal, e registrou a saudade do Brasil (“… não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá”…).  Mas foi na fase indianista que surgiu o poema épico I-Juca-Pirama  ( “…Meu canto de morte, /
Guerreiros, ouvi: / Sou filho das selvas, / Nas selvas cresci; / Guerreiros, descendo / Da tribo tupi. – [primeira estrofe do Canto IV]). Seu trabalho intelectual foi enriquecido  pelas pesquisas das línguas indígenas e do folclore brasileiro.

É o patrono da cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras. Essa cadeira foi fundada por Olavo Bilac e, na linha de sucessão, nela se assentaram Amadeu Amaral, Guilherme de Almeida, Odilo Costa Filho, Dom Marcos Barbosa e Padre Fernando Bastos de Ávila. O atual ocupante é Marco Lucchesi (Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1963), poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor.

Mais um abraço para a Poesia, em seu dia

Desencanto

Manuel Bandeira

Manuel Bandeira - 1986-1968

Manuel Bandeira – 1986-1968

Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

Ode à Cuia de Chimarrão

Ode_a_cuia

Vejo-te à minha frente,
sensualmente curvilínea,
ostentando a nudez campesina com que nasceste.
Ainda não te senti em minhas mãos,
mas sei que me aguardas,
quente e úmida
à espera de meu beijo pleno de apetite.
Vou a teu encontro e te agarro pelo pescoço
já a sentir teus aromas selvagens
a fluir de teu ventre esperançoso.
Avidamente, vou sorver-te até o fim,
até ouvir os ruídos finais de nosso conúbio.
Saciarei tua sede com mais calores líquidos
que libertarão novos perfumes.
Satisfeito, mas não saciado, passo-te a mãos alheias,
até a próxima rodada.

Cleto de Assis – 2015

Dia Mundial da Poesia

21 de março marca o Dia Mundial da Poesia,  criado na XXX Conferência Geral da Unesco, em 16 de novembro de 1999. O objetivo deste dia é promover a leitura, a escrita, a publicação e o ensino da Poesia em todo o mundo.

Salve, Poesia, mãe de todas as paixões,
misericordiosa para todos os males.
Salve, Rainha das Palavras
e maga toda poderosa das ternuras e das bem-aventuranças,
acalentadora de corações, artífice de piedades.
Saúdo-te em teu dia glorioso
embora tenha cometido o pecado do abandono provisório.
Mas de ti não desdenhei.

Desenhei teus encantos
nos traços de rotas várias de multicoloridas imagens: ut pictura poesis.
Salve, mimética e metafórica arte,
jubilosa Érato, desejável Euterpe,
mensageira de precisões e ambiguidades,
portadora de lamentos e devaneios,
incubadora de sonhos e tormentos,
arrimo dos nubívagos.

Em teu dia volto a abraçar-te
e em meus braços trago a promessa firme
de em ti permanecer,
pois em teu seio tenho o melhor alimento.
Eia ergo, carmina nostra,
illos tuos misericordes oculos
ad nos converte.
Porque nós precisamos de ti,
agora e sempre.

Cleto de Assis – março de 2016

 

Axé, Olorum!

Paulo Valente, do frio curitibano ao calor baiano

Paulo_ValenteConheci Paulo Valente ainda bem jovem, ao lado de seu homônimo pai, um senhor de excelente bom gosto que manteve, durante muitos anos, em Curitiba, uma galeria de arte e de objetos de decoração. Com minhas andanças brasilianas, perdi contato com ele e nos cruzamos recentemente em diálogos feicebuquianos, dentro do natural amontoado de amigos comuns. E o redescobri como criativo fotógrafo, que utiliza sua visão plástica para reinventar a poesia. No clique fotográfico nasce o clique poético, que tem que ser instantâneo, minimalista. Algumas de suas produções são tão concisas que dispensam palavras, a poesia verte nas pequenas imagens. Faz brincadeiras com tachinhas e luz que se tornam sérias cenas de palco, algumas a lembrar dançarinas de balé.

Ele nasceu em Curitiba, em 1947, e desde jovem se dedicou às artes plásticas. Adotou a fotografia como ferramenta para o desenvolvimento de suas atividades artísticas, sempre acompanhando as diversas fases do artista. Ainda em sua cidade, participou de diversos concursos e salões. Mudou-se para Salvador em 1977, onde, paralelamente ao ofício de designer de interiores, continuou a desenvolver sua arte e a participar de salões e coletivas. Entre os anos de 1990 e 1993 suas obras estiveram presentes no acervo da Belanthi Gallery, de Nova Iorque, em exposições individuais e coletivas.

Em seus trabalhos mais recentes a fotografia é utilizada como mídia plástica e poética. Segundo ele, adota “o pseudônimo Olorum Piancóski menos para resguardar-me do que para acentuar o hibridismo cultural que pretendo revelar nesses rápidos e despretensiosos fotopoemas”.

Rápidos, talvez. Despretensiosos, nunca.

Saudamos o nosso Piancóski curitibano e o Olorum soteropolitano: Powitanie! Axé!

Paulo_Valente11-2-14

 _____________________________________

Paulo_Valente10-3-14

_____________________________________

Paulo_Valente11-3-14

_____________________________________

Paulo_Valente14-3-14

_____________________________________

Paulo_Valente12-3-14

_____________________________________

Continua em próximos capítulos.

Imagem

Reflexões pluviosas

Depois da chuva