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Dia Mundial da Poesia

Há cinco anos, fiz uma homenagem a José de Anchieta, o poeta que inaugurou a arte em terras brasileiras, anos após o descobrimento, com a publicação de seu longo poema dedicado à Virgem Maria, em Latim e Português. O passar do tempo permitiu-me outro encontro com educador jesuíta, por meio de meu trabalho no Conselho Estadual de Educação do Paraná, que abriga uma Sala José de Anchieta, onde se reúne o Conselho Pleno. Neste princípio de ano, já a despedir-me de minhas funções administrativas (continuo como Conselheiro Suplente), a mudança daquela sala para o primeiro andar do prédio ora ocupado pelo CEE/PR me fez tomar uma decisão, contada abaixo, em um texto remodelado e que serviu de base para uma palestra aos Conselheiros, no dia 19 de março de 2019, aniversário de José de Anchieta. Com a republicação, faço também minha homenagem ao Dia Mundial da Poesia, uma vez que o agora São José de Anchieta inaugurou a arte poética no Brasil. – C. de A.

José de Anchieta, por Cleto de Assis/2019

Alguns historiadores defendem que o missionário jesuíta que aqui viveu de 1553 a 1597 foi primeiro poeta brasileiro. Conta-se que ele escreveu um longo poema dedicado à mãe de Jesus nas areias da praia de Iperoig, nome antigo de Ubatuba, no litoral paulista. Diz a tradição, quase ou puramente lendária, que Anchieta teria escrito esse poema com o auxílio de um cajado ou caniço. Pelo menos é assim que o representam em pinturas, como a imaginada por Cândido Portinari, em pelo menos duas versões.

Quando ocorreu a transferência da sala do Conselho Pleno do Conselho Estadual de Educação do Paraná (CEE/PR) do segundo para o andar térreo, alguém colocou na parede frontal o retrato de Tiradentes, que faz parte de nosso acervo. Imediatamente imaginei que o lugar teria que ser ocupado pelo patrono da sala, José de Anchieta. E decidi pintar um quadro que significasse a homenagem física, uma vez que já havia estudado sua figura histórica, quando publiquei um ensaio em meu blog de poesia. Imaginei o Anchieta poeta, o Anchieta educador, o Anchieta desbravador, o Anchieta pacificador – todos estes mais humanos que o Anchieta taumaturgo, como grande parte da população brasileira o considera. Nas facetas descritas, admiro o Anchieta poeta, que desfiava as línguas aprendidas em imensos e sensíveis poemas. Talvez o primeiro poeta brasileiro, ou a desenvolver a arte da poesia sob o sol tropical de Pindorama.

José de Anchieta nasceu em San Cristobal de La Laguna, em Tenerife, uma das sete ilhas do arquipélago das Canárias, Espanha, em 19 de março de 1534, portanto há exatos 485 anos. José foi o nome escolhido por ter nascido no dia de São José, no calendário cristão.

Pertenceu a uma família nobre de 12 irmãos, um dos quais também seguiu o sacerdócio. Sua mãe era natural das Ilhas Canárias, filha de judeus cristãos-novos. Seu pai, um nobre basco. O avô materno, Sebastião de Llarena, era um judeu convertido do Reino de Castela. Mas José de Anchieta abandonou suas origens ao escolher uma vida missionária.

Em 1551 foi estudar em Coimbra, Portugal, local onde teve o primeiro contato com a Companhia de Jesus, por meio de Francisco Xavier, um dos fundadores da ordem. Já aos 17 anos definiu sua vida religiosa. Na Companhia fundada recentemente por Inácio de Loyola, com quem Anchieta tinha laços de parentesco, fez um noviciado exigente, e mesmo com a saúde frágil adotou seus votos de castidade, pobreza e obediência.

Em 1553, com apenas 19 anos, foi enviado para o Brasil com missão evangelizadora. Mas deveria continuar seus estudos, pois ainda não era sacerdote. Estudava Filosofia, Teologia, em meio a seu trabalho catequista, dando aulas e conhecendo melhor o povo indígena. Para melhor evangelizar, respeitava a cultura dos índios e procurou aprender a língua Tupi-Guarani. E foi além: estruturou gramaticalmente o idioma dos índios, ao escrever um vocabulário, uma gramática e diversos opúsculos para os evangelizadores. Conhecia muito bem o Latim, o Espanhol e o Português, o que lhe facilitou a abertura ao trabalho literário. Hoje é considerado o iniciador da poesia e da dramaturgia brasileiras, deixando cantos piedosos, poemas e autos e diálogos ao estilo de Gil Vicente, espalhados entre os primeiros colégios brasileiros fundados pelos Jesuítas, a partir de São Paulo.

Suas cartas, enviadas a Portugal, inclusive algumas endereçadas a Inácio de Loyola, se tornaram fonte preciosa para o registro da história brasileira daquela época, além de contribuições para o estudo da fauna, da flora e da ictiologia local e da coleta que fez sobre aspectos etnológicos e folclóricos.

Mas nem tudo era paz nas relações com os habitantes da nova terra. Mais ao interior viviam os Tamoios, povo bravio, que trariam dificuldades aos trabalhos de aproximação. Nesse sentido, foi fundamental a sua tarefa como intérprete de Manoel da Nóbrega, seu chefe provincial, que procurava salvar da destruição as primeiras colônias do litoral paulista.

Nessa ocasião, permaneceu vários meses preso, como refém dos indígenas, para facilitar o trabalho de Nóbrega. Foi nessa situação que teria escrito o seu poema A compaixão e o pranto da Virgem na morte do Filho, primeiro em Latim (De compassione et planctu virginis in morte filii), em plena praia, utilizando um bastão. Não se pode duvidar que ele possa ter utilizado a grande lousa de areia para ensinar os indígenas, escrevendo algo aqui e ali, ou mesmo para ensaiar versos.  Mas seria um ofício grandioso escrever 4172 versos – esta a medida de seu poema – na areia e guardá-los na memória para, mais tarde, transcrevê-los no papel e traduzi-lo ao Português. Milagre de um futuro santo?

Em 1566 foi enviado à Capitania da Bahia com o encargo de informar ao governador Mem de Sá sobre o andamento da guerra contra os franceses, possibilitando o envio de reforços portugueses ao Rio de Janeiro. Somente nesta época foi ordenado sacerdote, aos 32 anos de idade.

Sua admiração pelo Governador-geral, fundador do Rio de Janeiro, era grande e a ele dedicou outro enorme poema, considerado pelos exegetas como obra comparável aos poemas de Homero, por ele denominado De Gestis Mendi de Saa, ou Os feitos de Mem de Sá.

Após a expulsão dos franceses da Guanabara, Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam motivado Mem de Sá a prender, em 1559, um refugiado calvinista, o alfaiate Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”. Em 1567, Jacques Le Balleur foi preso e conduzido ao Rio de Janeiro para ser executado. Porém o carrasco teria se recusado a executá-lo ou teve dificuldades para fazê-lo prontamente. Diante do fato e talvez até movido por piedade, Anchieta o teria estrangulado com suas próprias mãos. Essa história foi bastante discutida durante o processo de canonização de Anchieta. O episódio é contestado como apócrifo pelo maior biógrafo de Anchieta, o padre jesuíta Hélio Viotti, com base em documentos que, segundo o autor, contradizem a versão. Investigações históricas, baseadas em documentos da época (correspondência de Anchieta e manuscritos de Goa) corroboram essa versão absolvedora de Anchieta, quando revelam que Balleur não morreu no Brasil. Teria sido conduzido a Salvador, na capitania da Bahia, e dali mandado a Portugal, onde teve o seu primeiro processo concluído em 1569. Em um segundo processo, no Estado Português da Índia, foi finalmente condenado pelo tribunal da Inquisição de Goa, em 1572.

Anchieta dirigiu o Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro por três anos, de 1570 a 1573. Em 1569, fundou a povoação de Reritiba (ou Iriritiba), atual Anchieta, no Espírito Santo. Outra ação memorável da vida de Anchieta é a fundação da cidade de São Paulo pelo grupo de jesuítas que ele comandava, ao lado de Manoel da Nóbrega, a 25 de janeiro de 1554. Com o objetivo de catequizar os índios que viviam na região, os jesuítas ergueram um barracão de taipa de pilão, em uma colina alta e plana, localizada entre os rios Tietê, Anhangabaú e Tamanduateí, com a anuência do cacique Tibiriçá, que comandava uma aldeia de guaianases nas proximidades.

Em 1577 José de Anchieta foi nomeado Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, função que exerceu por dez anos, até sua substituição, a pedido, em 1587. Retirou-se para Reritiba, mas teve ainda de dirigir o Colégio dos Jesuítas em Vitória, no Espírito Santo. Um equívoco histórico levou Anchieta a ser considerado o primeiro professor brasileiro. Mas esse mérito pertence a um colega seu, chegado ao Brasil antes dele, em 1549, com Tomé de Souza, que desembarcou na Bahia com a primeira missão jesuítica. Era Vicente Rijo, português, nascido no ano de 1528, em Sacavém, nas proximidades do rio Tejo, e falecido no Brasil, em 1600. Vicente rijo é historicamente considerado como o primeiro mestre-escola do Brasil, fundador de uma pequena escola na Bahia, por volta de 1549. Conviveu com Anchieta por algum tempo, quando se trasladou para a região hoje ocupada pelo Rio de Janeiro e o Espírito Santo.

Em 1595, José de Anchieta obteve dispensa das funções de Provincial e conseguiu retirar-se definitivamente para Reritiba, onde faleceu, em 1597. Seu corpo foi sepultado em Vitória. Beatificado em 1980 pelo papa João Paulo II e canonizado em 2014 pelo papa Francisco, é conhecido, no mundo católico, como o Apóstolo do Brasil.

Volto à reflexão inicial: Anchieta não foi o primeiro poeta brasileiro, mas o certamente o autor do primeiro poema aqui composto. Outros poetas ter-lhe-ão sucedido. A história registra, em primeiro lugar, somente o nome de Gregório de Matos Guerra, nascido em Salvador – BA, em 1636 e falecido no Recife – PE, em 1695.

A Presidente do do Conselho Estadual de Educação, Conselheira Maria das Graças Figueiredo Saad, e o ex-Presidente Oscar Alves, descerram quadro de Anchieta, com o autor, Cleto de Assis

E finalizo com uma pergunta decorrente: qual foi o primeiro livro escrito no Brasil? Muitos preferem entregar o mérito ao primeiro libro publicado no Brasil, que foi “Marília de Dirceu” escrito em Portugal, pelo poeta Tomás Antônio Gonzaga, luso-brasileiro nascido na cidade do Porto, em Portugal. Mas os versos de Gonzaga somente chegaram ao prelo em 1792, em Lisboa, quando o poeta já cumpria o exílio em Moçambique, por sua participação da Inconfidência Mineira. no Brasil. A bem da verdade, o primeiro livro escrito no Brasil, embora publicado na Europa, foi a gramática de José de Anchieta – “Arte da Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil” –  que, junto com uma versão da figura de Anchieta, entrego à Presidente Maria das Graças Figueiredo Saad. Não esperem ver um retrato clássico ou quase fotográfico do jesuíta luso-brasileiro, homenageado com seu nome nesta sala do Conselho Estadual de Educação do Paraná. Não existem registros iconográficos de sua pessoa física, apenas a imaginação de alguns pintores, que lhe deram a imagem de uma pessoa combalida, de cabelos grisalhos e já com a doença que o distanciou das praias brasileiras a tomar conta do corpo e do espírito. Pensei em Anchieta como o primeiro grande comunicador do solo brasileiro, mais importante até do que Pero Vaz e Caminha, escrivão do primeiro relatório sobre as terras de Santa Cruz. Pensei em Anchieta como educador, razão porque recebeu a homenagem do Conselho Estadual de Educação do Paraná. Pensei em Anchieta em sua visão humanizante dos índios brasileiros, em uma época em que se discutia se os indígenas tinham alma. Fui ao encontro de uma alegoria, baseado em um retrato pintado por Oscar Pereira da Silva, em 1920, e que pertence ao acervo do Museu Paulista da USP. Pensei em um Anchieta que cumpria o sonho registrado no último verso do poema dedicado a Maria, aqueles lendariamente escritos nas areias de Iperoig:

Vivere dulce dies, hic mihi dulce mori! Viver e morrer com prazer, este é o meu grande desejo.

Socorro!

Help!

“Help me if you can, I’m feeling down

And I do appreciate you being round

Help me, get my feet back on the ground

Won’t you please, please help me?”

 

Paul McCartney / John Lennon

Se quiser me ajudar…

…sussurre palavras suaves e doces em meus ouvidos.

Derrame sons de roçar de mãos na relva úmida de seu corpo.

Faça-me esquecer que vivemos no país da simulação

onde a mentira vira imediata verdade.

Se quiser me ajudar…

… brinque comigo com bolinhas de búrico.

Mas tem que ser búrico. Nada de búlica,

gude, fubeca, borroca, berlinde ou ximbra:

essas todas estrangeiras para minha infância.

Se quiser me ajudar…

… empine sua pandorga até as nuvens

e leve-me nela pendurado

para que eu conheça de perto

os rebanhos em constante dispersão.

PandorgaBR
Ilustração: C. de A.

Se quiser me ajudar…

… conte-me onde foi parar a minha coleção de pedras

que eu juntei com tanto carinho em uma mochila de lona,

e um dia foi-se de meus cuidados

levada pelos cuidados de alguém mais esperto.

Se quiser me ajudar…

… diga-me para onde seguiram meus amigos

cujos sonhos eram iguais aos meus

mas que se perderam em curvas inesperadas

sem olhar para trás e sem acenos de adeus.

Se quiser me ajudar…

…explique-me o que é essa tal liberdade

pela qual os homens prendem e matam

e inventam paraísos e nirvanas e outras utopias

e queimam vilas inocentes e sonhos de crianças.

Se quiser me ajudar…

… prove-me que este menino grande e pobre

chamado Brasil tem futuro e que a palavra

esperança ainda encontra sentido no presente

vilipendiado por tantos mal-eleitos.

Cleto de Assis

Curitiba/17.07.2018

Dia Internacional da Água

As águas sensuais de Neruda

Água, líquido incolor, inodoro e insípido – esta a definição que aprendemos na escola sobre o precioso elemento da natureza, um dos quatro fundamentais, segundo os antigos alquimistas – junto ao fogo, o ar e a terra. Se pensarmos bem, ela é o mais importante, pois sem ela não há vida. Dela nascemos, não do pó da terra, e sem ela morreremos. Ela oxigena o ar, alimenta a terra e ai do fogo que se intrometer, pois ela é capaz de extingui-lo.

Dizem que será mais preciosa que o petróleo, que o próprio ouro. E guerras já se fazem para disputá-la (atenção aos governadores Alckmin e Cabral, que ensaiam brigas pelas águas do rio Paraíba do Sul, face à seca que acomete a região Sudeste), principalmente em regiões onde ela escasseou e desertificou imensas áreas. Diz a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) que a cada 15 segundos uma criança morre, no mundo, de doenças relacionadas à falta de água potável, de saneamento e de condições de higiene. Mesmo o Brasil, rico em água potável, convive com a morte infantil causada por sua falta.

No dia 22 de março comemorou-se o Dia Mundial da Água, que se seguiu aos dias da Poesia e das Árvores/Florestas. Mas água também tem poesia e é indispensável para as plantas. Apesar das 24 horas de atraso, vamos lembrá-la com um belo poema de Neruda.

agua sexual

Pablo Neruda

Rodando a goterones solos,
a gotas como dientes,
a espesos goterones de mermelada y sangre,
rodando a goterones,
cae el agua,
como una espada en gotas,
como un desgarrador río de vidrio,
cae mordiendo,
golpeando el eje de la simetría, pegando en las costuras del
alma,
rompiendo cosas abandonadas, empapando lo oscuro.

Solamente es un soplo, más húmedo que el llanto,
un líquido, un sudor, un aceite sin nombre,
un movimiento agudo,
haciéndose, espesándose,
cae el agua,
a goterones lentos,
hacia su mar, hacia su seco océano,
hacia su ola sin agua.

Veo el verano extenso, y un estertor saliendo de un granero,
bodegas, cigarras,
poblaciones, estímulos,
habitaciones, niñas
durmiendo con las manos en el corazón,
soñando con bandidos, con incendios,
veo barcos,
veo árboles de médula
erizados como gatos rabiosos,
veo sangre, puñales y medias de mujer,
y pelos de hombre,
veo camas, veo corredores donde grita una virgen,
veo frazadas y órganos y hoteles.

Veo los sueños sigilosos,
admito los postreros días,
y también los orígenes, y también los recuerdos,
como un párpado atrozmente levantado a la fuerza
estoy mirando.

Y entonces hay este sonido:
un ruido rojo de huesos,
un pegarse de carne,
y piernas amarillas como espigas juntándose.
Yo escucho entre el disparo de los besos,
escucho, sacudido entre respiraciones y sollozos.

Estoy mirando, oyendo,
con la mitad del alma en el mar y la mitad del alma
en la tierra,
y con las dos mitades del alma miro al mundo.

y aunque cierre los ojos y me cubra el corazón enteramente,
veo caer un agua sorda,
a goterones sordos.
Es como un huracán de gelatina,
como una catarata de espermas y medusas.
Veo correr un arco iris turbio.
Veo pasar sus aguas a través de los huesos.

Dia Mundial da Água

ÁGUA SEXUAL

Rodando em solitárias goteiras,
em gotas como dentes,
em espessas goteiras de geleia e sangue,
rodando em goteiras,
cai a água,
como uma espada em gotas,
como um desgarrador rio de vidro,
cai mordendo,
golpeando o eixo da simetria, grudando nas costuras da alma,
rompendo coisas abandonadas, empapando o escuro.

Somente é um sopro, mais úmido que o pranto,
um líquido, um suor, um óleo sem nome,
um movimento agudo,
fazendo-se, espessando-se,
cai a água,
em goteiras lentas,
rumo a seu mar, até se seco oceano,
até sua onda sem água.

Vejo o verão extenso, e um estertor saindo de um silo,
adegas, cigarras,
populações, estímulos,
habitações, meninas
dormindo com as manos no coração,
sonhando com bandidos, com incêndios,
vejo barcos,
vejo árvores de medula
eriçados como gatos raivosos,
vejo sangue, punhais e meias de mulher,
e cabelos de homem,
vejo camas, vejo corredores onde grita uma virgem,
vejo cobertores e órgãos e hotéis.

Vejo os sonhos sigilosos,
admito os pósteros dias,
e também as origens, e também as lembranças,
como uma pálpebra atrozmente levantada a força
estou olhando.

E então há este som:
um ruído escarlate de ossos,
um grudar-se de carne,
e pernas amarelas como espigas a se juntar.
Eu escuto entre o disparo dos beijos,
escuto, sacudido entre respirações e soluços.

Estou olhando, ouvindo,
com a metade da alma no mar e a metade da alma
na terra,
e com as duas metades da alma olho o mundo.

E ainda que feche os olhos e me cubra o coração inteiramente,
vejo cair uma água surda,
em goteiras surdas.
É como um furacão de gelatina,
como uma catarata de espermas e medusas.
Vejo correr um arco íris turvo.
Vejo passar suas águas através dos ossos.

Tradução e ilustração de Cleto de Assis

Nos Rastros da Utopia

Lançamento do novo livro de Manoel de Andrade

Capa2Na Livrarias Curitiba do Shopping Estação, em Curitiba, como anunciamos há dias, ocorreu o lançamento do livro “Nos Rastros da Utopia” (Editora Escrituras, 910 págs.), produto de vários anos de aventurosa peregrinação por terras americanas. Como ele mesmo diz, com “este livro entrego o testemunho de um longo caminhar. Ao deixar o Brasil em março de 1969, meus passos cruzaram 16 países num prolongado auto-exílio pelo continente” … “Este livro é, sobretudo, o relato de um poeta itinerante, de um bardo errante, profundamente identificado com seu tempo e com sua condição de latino-americano. Um confidente solitário, comprometido com o resgate de uma América povoada de utopias e com a saga lendária daqueles que ousaram sonhar com um ‘admirável mundo novo’ “.

Ex-aluno de História, Manoel de Andrade relata, abundantemente, uma parte da história de sua vida, imbricada com as origens, as batalhas, as injustiças, os dramas e os sonhos de sua América – a nossa América – com jeito de livro de contos de fadas, onde os muitos personagens que conheceu surgem ali e acolá como protagonistas e coadjuvantes de uma história sem fim, acalantados por seus trabalhos de utopia poética.  Além do sabor literário, Maneco nos coloca nas mãos e em nossa reflexão um valioso documento de um tempo não tão longínquo, que ainda se reflete na vida dos países de nossa região continental.

Manoel de Andrade e Cleto de Assis na noite do lançamento de "Nos Rastros da Utopia"

Manoel de Andrade e Cleto de Assis na noite do lançamento de “Nos Rastros da Utopia”

Novo livro de Manoel de Andrade

Depois de longa caminhada pelo chão da América Latina, Manoel de Andrade completa a não menos extensa jornada literária sobre a sua aventura em busca da utopia

Finalmente, a  editora Escrituras lança uma empreitada de mais de 900 páginas que condensam os vários anos do errante percurso do poeta Manoel de Andrade pelas veias abertas da América Latina — como metaforizou Eduardo Galeano — há mais de quatro décadas, quando todo o continente buscava portos seguros para suas contradições sociais e políticas. Mas Manoel de Andrade não fez de seu livro um mero relato autobiográfico e nem uma narrativa que desculpasse sua saída do Brasil para desfraldar sua poesia em defesa de ideais utópicos. Em verdade, Nos rastros da Utopia tenta redescobrir a América por meio dos personagens que o autor encontrou e conheceu, com quem dialogou e conviveu por tempos breves, mas absolutamente enriquecedores. 

Endosso o convite feito pela editora e por Livrarias Curitiba. E principalmente o convite do próprio escritor: “convido-o a viajar comigo por caminhos e por um tempo fascinante, em que o sonho e a esperança comandavam os rumos da História. Ventura e desventura, encanto e desencanto são os sabores com que estão temperados os fatos que passarei a relatar“.

Novo_convite_2

Um texto antigo sobre “Nos Rastros da Utopia”

Cleto de Assis

Já repeti, ali e acolá, que minha amizade com Manoel de Andrade ultrapassa as fronteiras do trivial e localiza-se no que há de melhor em uma relação fraterna. Para repetir um clichê, afirmo que, mais que irmão consanguíneo, Maneco é o mano escolhido, selecionado durante a jornada da vida.

Mas isso não nos torna irmãos corsos: temos as nossas diferenças de pensamento, adotamos crenças distintas em matéria política e religiosa. O que não nos transforma em inimigos ou adversários, como requer o saudável convívio democrático, que admite positivamente a multiplicidade de opiniões e a boa convivência entre os contrários. E não é bom assim? Chatice seria o consenso absoluto, que não nos permitiria sequer perseguir objetivos vitais e construir as mais variadas utopias.

Na narrativa de Manoel de Andrade, sempre com máximo respeito às ideias que o levaram a formular sua utopia, venero mais o entusiasmo do cavaleiro andante a percorrer as pátrias latino-americanas, em um tempo coberto por sombras e indefinições políticas, como tem sido, desde tempos imemoriais, a história deste continente. Sempre reunido a grupos que se acercavam à sua alma de artista sonhador, naquela idade vintaneira: estudantes idealistas e expressões culturais de cada local visitado. Muitas dessas expressões eram nascentes, ainda jovens como ele. Cresceram e firmaram conceitos de credibilidade intelectual e não deixaram de lembrar-se do brasileiro que os visitou e, quase sempre, recebia toque de retirada das cornetas governamentais dos países pelos quais passava. Na bolsa da memória do viajante foram acumulados, passo a passo, tesouros de bom relacionamento (com o povo que o recebia, não com os donos eventuais do poder) e de comunhão de utopias, que agora migram para o papel do escritor e poeta.

Passados tantos anos – mais de 40 – Manoel de Andrade fez um natural upgrade em suas utopias (para usar um termo atual, sem qualquer intenção irônica), mas continua em busca de sonhos, para poder continuar o caminho, como define Fernando Bini, citado em seu texto. Novas buscas na espiritualidade, novos sonhos no campo da justiça social. As velhas utopias – algumas desmanteladas por quedas de muros e pelo desânimo de descobrir que a ambição humana, o apego ao poder e o extremismo da corrupção e da deslealdade não têm cor política, mas estão sempre de tocaia no cérebro límbico do homem, prontas a aflorar à superfície, se as circunstâncias facilitarem – foram remodeladas, mas o escritor de agora permanece leal à alma condutora do jovem errante de ontem.

Já declarei, também, que seu livro “Nos Rastros da Utopia” será, quando publicado (e o está sendo agora), um marco para a história dos anos 60 em nosso continente. Depois de quatro décadas, diante de confessa perplexidade com este início de século, Manoel de Andrade pode dizer-se dono de uma certeza: somente os bons carregam à sua frente, continuadamente, as incertezas das utopias. Os maus têm projetos ambiciosos, preferencialmente para o presente ou futuro bem próximo, sem se importar com o que acontecerá para a sociedade que nos é comum. E é nos rumos dessas incertezas que se vão colhendo resultados positivos e se estabelecem as conexões corretas para ampliar a justiça e a harmonia sociais. Como seu leitor, vejo claramente que sua melhor utopia se chama Fraternidade.

8 de maio de 2012

Finalmente, a casa predileta

A casa … Não sei quando nasceu… Era a meio da tarde, chegamos a cavalo por aquelas solidões … Don Eladio ia adiante, vadeando o banhado de Córdoba que havia aumentado… Pela primeira vez senti como uma pontada este cheiro de inverno marinho, mescla de boldo e areia salgada, algas e cardos… Aqui, disse don Eladio Sobrino (navegante) e ali ficamos. Logo a casa foi crescendo, como a gente, como as árvores.

Manuscrito_isla_negra

Em 1937, de volta ao Chile, obrigado a sair da Espanha pela ocorrência da Guerra Civil Espanhola, Neruda procurava um lugar onde pudesse se dedicar a um novo projeto literário, uma obra portentosa que viria a se chamar Canto General (Canto Geral), na qual o poeta reuniu os mais diversos temas, usando vários gêneros e técnicas para contar e cantar a sua América Latina, no princípio – como na gênesis bíblica – puro paraíso, sem nomes e sem homens. Depois, revive a história humana da América Latina, que começa nos pináculos de Machu Pichu e se espraia pelo continente, primeiro em sua origem indígena, depois atropelada pelos conquistadores.

A sonhada tarefa, porém, somente foi concluída mais tarde, depois de longa peregrinação do poeta pelas rotas políticas de seu país. Na década seguinte ao início de construção da casa de Isla Negra, eleito senador e envolvido em intensa discussão política, que lhe valeram a cassação da função senatorial, Neruda sofreria grande perseguição política do governo do então presidente González Videla e foi obrigado até mesmo a sair do país, refugiando-se na Argentina.

Sua amada Matilde Urrutia, nas memórias que deixou (Minha vida com Pablo Neruda) relata que ele “havia sonhado e lutado toda a vida pela erradicação da pobreza; queria que em seu país houvesse justiça social, um pouco de igualdade. Colocou sua pena e sua vida a serviço desta causa nobre. Muitas vezes arriscou sua integridade física perseguido por González Videla, que considerávamos um tirano. É que não conhecíamos a tirania de fato. (…) Sempre animado, entusiasta, alegre, falando às massas, tentando despertar a consciência adormecida e fatalista dos pobres que se contentam com as esmolas do nada!” O poeta sofre com o que chamava de opressão dos povos latino-americanos e sua altissonância poética o leva a concluir a obra quase enciclopédica, formada por 15 seções e 231 poemas, finalmente publicada em 1950, no México.

Apesar de se voltar quase que inteiramente à saga dos povos latino-americanos, no final de seu Canto Geral Neruda assina a extensa obra falando sobre sua morte e deixa dois testamentos e disposições gerais, à guisa de um estatuto da América nerudiana.

Adquirida a casa do marinheiro espanhol, entre 1943 e 1945, e com a ajuda do arquiteto catalão Germán Rodríguez Arias, Neruda fez no novo refúgio uma série de ampliações. Quis domesticar o Pacífico, mas não conseguiu. Como já registrei em outro texto, ele um dia escreveu: “Não sei que fazer com ele, ele saía do mapa. Não sabia onde colocá-lo. Era tão grande, desordenado e azul que não cabia em nenhuma parte. Por isso o deixaram frente a minha janela”. Para não se desmentir, Neruda colocou janelas em quase todas as paredes que olham para o mar. Janelas que dominam todo o Pacífico que, por sua vez, domina a casa predileta do poeta.

mascaron-isla-negra

O início da construção da residência de Isla Negra foi acompanhada por Delia del Carril, que desfrutou-a intensamente. Já casado com Matilde Urrutia, Neruda fez ampliações na casa, em 1965, que tornaram ainda mais fantástico o poema de pedra e madeira que continuamente rearranjava.  Já na sala de estar foram colocadas carrancas, ou figuras de proa, adquiridas em várias do mundo. Duas medusas estão voltadas permanentemente para o Pacífico e, ainda, um grande chefe comanche, uma sereia e outras tantas figuras emblemáticas. Todas as figuras contam suas histórias, carregadas de amores e de enfrentamento de naufrágios e de lutas oceânicas. Quadros e mais quadros, alguns trecos que se transformaram em relíquias.

Living_isla_negra

Mascarones

Da sala de estar passamos aos demais ambientes, construídos à maneira do arquiteto de sonhos e de casas sonhadoras. Em meio à infinidade de objetos reunidos pelo colecionista descobrimos relíquias folclóricas doadas pelo amigo Jorge Amado, como a coleção de garrafas com areias coloridas das praias do Nordeste brasileiro e pequenas esculturas religiosas também engarrafadas. Coleções de cachimbos, de aparelhos náuticos, de esculturas da Ilha de Páscoa, o telescópio doado pela Embaixada da França que chegou a Isla Negra depois da morte do poeta, os bares, as louças, uma profusão de máscaras africanas e fotografias de seus ídolos, entre os quais Whitmann e Rimbaud.

Cama de Neruda, onde ele passou seus últimos dias de Isla Negra. Sobre a cabeceira, a ovelhinha de pano comprada na França, que lhe recordava a infância

Cama de Neruda, onde ele passou seus últimos dias de Isla Negra. Sobre a cabeceira, a ovelhinha de pano comprada na França, que lhe recordava a infância

Na parte íntima da casa, conservam-se roupas e objetos pessoais de Pablo e Matilde. A cama, de onde ditou os seus últimos textos. E, na extremidade da construção, que se alonga como o mapa do Chile, o seu escritório, onde guardava uma escrivaninha de madeira – única recordação que conseguiu conservar de seu pai. Em uma pequena sala contígua, o cavalo em tamanho natural, admirado pelo menino de Temuco e adquirido, anos mais tarde, quando o poeta recebeu a notícia de que o armazém que o mantinha como objeto de propaganda tinha se incendiado. (Neruda o levou, ainda chamuscado, para Isla Negra, e providenciou uma festa, na qual exigiu que os convidados levassem presentes para o cavalo, o que possibilitou uma completa restauração.) Ao final do conjunto, uma sala com a coleção do malacólogo amador Pablo Neruda – conchas recolhidas em várias partes do mundo e que foram classificadas, mais tarde, por especialistas.

O cavalo de Temuco, restaurado por presentes de amigos do poeta. Neruda dizia que era o único cavalo do mundo com rabo de três cores. A porta à esquerda, acima, é de um pequeno banheiro "só para homens" e decorado com postais eróticos antigos.

O cavalo de Temuco, restaurado por presentes de amigos do poeta. Neruda dizia que era o único cavalo do mundo com rabo de três cores. A porta à esquerda é de um pequeno banheiro “só para homens”, decorado com postais eróticos antigos.

Calcula-se que são mais de três mil e 500 objetos, ou coisas, como dizia o poeta, cobrindo todas os recintos da residência. Mas a variedade das coleções sempre tem cheiro de mar: “Eu sou um amador do mar, e há muito tempo coleciono conhecimentos que não me servem muito porque navego sobre a terra”.  Perguntado sobre sua especialização como colecionista, ele respondeu: “Sou ‘coisista’, gosto de colecionar coisas”…

No extremo sul da casa de Isla Negra, o escritório de Neruda. A mesa foi feita com uma porta de navio encontrada no mar. Sobre ela, utensílios de trabalho do poeta e a réplica da mão de Matilde, em bronze. Na parede à esquerda, uma escrivaninha que pertenceu a seu pai - único objeto paterno que conseguiu recuperar - e onde teria escrito o seu primeiro poema, dedicado a sua mãe.

No extremo sul da casa de Isla Negra, o escritório de Neruda. A mesa foi feita com uma porta de navio encontrada no mar. Sobre ela, utensílios de trabalho do poeta e a réplica da mão de Matilde, em bronze. Na parede à esquerda, uma escrivaninha que pertenceu a seu pai – único objeto paterno que conseguiu recuperar – e onde teria escrito seu primeiro poema, dedicado a sua mãe.

O escritório, visto da parte externa. Conta-se que foi por esta janela que o poeta teria avistado, boiando nas ondas, a porta de um navio que seria convertida em mesa de trabalho.

O escritório, visto da parte externa. Conta-se que foi por esta janela que o poeta teria avistado, boiando nas ondas, a porta de um navio que seria convertida em mesa de trabalho.

As maiores emoções são recolhidas no exterior, hoje transformado em santuário, desde que foram atendidas as disposições gerais do poeta: “Enterrai-me em Isla Negra…”. Numa espécie de castelo de proa natural, voltado para o oceano, foi construído um jardim onde repousam Pablo e Matilde, após o estranho trânsito de seu corpo por diversos cemitérios e laboratórios.

Neruda em um banco de pedra, voltado para o mar. Naquele momento ele não podia imaginar que bem à frente daquele banco seria colocado seu próprio túmulo, no qual a ele se juntaria, mais tarde, o corpo de Matilde.

Neruda em um banco de pedra, voltado para o mar. Naquele momento ele não podia imaginar que bem à frente daquele banco seria plantado seu próprio túmulo, no qual a ele se juntaria, mais tarde, o corpo de Matilde.

Túmulo de Pablo e Matilde, em Isla Negra

Túmulo de Pablo e Matilde, em Isla Negra

Da tumba do poeta e sua amada avista-se, altaneira, a casa idílica, a primeira a ser construída, a preferida, a que lhe recebeu em seus últimos dias e onde repousa com Matilde e o Oceano Pacífico.

Da tumba do poeta e sua amada avista-se, altaneira, a casa idílica, a primeira a ser construída, a preferida, a que lhe recebeu em seus últimos dias e perto da qual repousa com Matilde e o Oceano Pacífico.

Resta ao visitante menos preguiçoso uma visita às pedras e areias de Isla Negra, já fora dos limites da residência, hoje toda cercada por um muro de madeira. Como sei que o Oceano Pacífico não mudará sua forma nem sua força em razão de minha iconoclastia ambiental, guardei dois bons punhados de areia da praia do poeta para levar ao Brasil, com certeza de que tenho licença e a benção de Pablo Neruda. Uma troca justa, pois já contei que, na casa de Isla Negra, existem várias garrafas com areias de praias brasileiras.

Pelo portão de madeira Neruda tinha acesso à praia e às pedras que o protegiam do furor oceânico e, simultaneamente, emolduravam o mundo líquido que tanto amou. simultaneamente o l

Pelo portão de madeira Neruda tinha acesso à praia e às pedras que o protegiam do furor oceânico e, simultaneamente, emolduravam o mundo líquido que tanto amou. 

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El hombre en el océano

*****

PoR QUE ISLA NEGRA?

Continua Neruda em sua narrativa do libro “Una casa en la arena”: “Don Eladio morreu, mais tarde. Era andaluz o capitão Sobrino. A última vez que veio nos ver cantou durante toda a tarde canções serranas e marinhas. No mesmo dia que deixou de cantar e navegar para sempre, subi em uma escada e, na grande escuna veleira pendurada sobre a lareira, escrevi seu nome em letras maiúsculas. Assim se chama ‘Eladio Sobrino’(…) sobre a lareira de pedra de Isla Negra navega ‘Don Eladio’. Que bem denominada foi!”

Eladio Sobrino, o primeiro proprietário de Isla Negra

Eladio Sobrino, o primeiro proprietário de Isla Negra

Antes de comprar uma pequena casa de pedra que havia sido construída por Eladio Sobrino, o marinheiro espanhol que, um dia, chegou ao sul do Chile, subiu por sua costa e estacionou seus sonhos de navegador em uma região ao sul de Valparaíso, mais propriamente na província de San Antonio, comuna, ou município de El Quisco. Ali montou residência e família, comprou terras e, em um de suas extensões, colocou o nome de Córdoba, em homenagem à cidade onde nascera. Mais tarde, construiu casinhas de veraneio e foi por uma delas que Neruda o procurou, quando o acesso à costa acidentada da região ainda era difícil.

A praia onde estava a casinha original se chamava Las Gaviotas (Gaivotas), mas a criatividade do poeta logo divisou uma grande pedra escura e passou a chamar o local de Isla Negra, que, de fato, não é ilha nem é negra. O meio ambiente não foi alterado. Ao contrário, o desenvolvimento da residência da Isla Negra deu paisagem mais encantadora ao terreno, uma elevação a poucos metros da praia cheia de pedras que retém os sargaços vindos do mar e com povoação permanente de ruidosas gaivotas. Sua areia é grossa e forma uma pequena praia, ao sul da residência. Em frente à casa, uma muralha de pedras a protege, como um dique natural que tenta acalmar o agitado mar do Pacífico.

Eladio Sobrino também passou a fazer parte da história local. Seus descendentes criaram uma fundação, com seu nome, destinada a trabalhar pela cultura da região. A partir da restauração da casa de Neruda, nos anos 80, todo o município teve rápido desenvolvimento, em razão de ter sido transformado em rota obrigatória dos turistas. E as iniciativas culturais se multiplicam, como foi o caso das bordadeiras protegidas por Neruda, que tiveram uma das filhas de Eladio Sobrino como principal articuladora de suas atividades.

_________________

El Mar

(de Memorial de Isla Negra)

Memorial_islanegra

Necesito del mar porque me enseña:
no sé si aprendo música o conciencia:
no sé si es ola sola o ser profundo
o sólo ronca voz o deslumbrante
suposición de peces y navios.
El hecho es que hasta cuando estoy dormido
de algún modo magnético circulo
en la universidad del oleaje.
No son sólo las conchas trituradas
como si algún planeta tembloroso
participara paulatina muerte,
no, del fragmento reconstruyo el día,
de una racha de sal la estalactita
y de una cucharada el dios inmenso.

Lo que antes me enseñó lo guardo! Es aire,
incesante viento, agua y arena.

Parece poco para el hombre joven
que aquí llegó a vivir con sus incendios,
y sin embargo el pulso que subía
y bajaba a su abismo,
el frío del azul que crepitaba,
el desmoronamiento de la estrella,
el tierno desplegarse de la ola
despilfarrando nieve con la espuma,
el poder quieto, allí, determinado
como un trono de piedra en lo profundo,
substituyó el recinto en que crecían
tristeza terca, amontonando olvido,
y cambió bruscamente mi existencia:
di mi adhesión al puro movimiento.

O Mar

Necessito do mar porque me ensina:
não sei se aprendo música ou consciência:
não sei se é onda só ou ser profundo
ou somente rouca voz ou deslumbrante
suposição de peixes e navios.
O fato é que até quando estou dormido
de algum modo magnético círculo
na universidade da ondulação.
Não são somente as conchas trituradas
como se algum trêmulo planeta
participara paulatina morte,
não, do fragmento reconstruo o dia,
de uma rajada de sal a estalactite
e de uma colherada o deus imenso.

O que antes me ensinou o guardo! É ar,
incessante vento, água e areia.

Parece pouco para o homem jovem
que aqui chegou a viver com seus incêndios,
e no entanto a pulsação que subia
e baixava a seu abismo,
o frio do azul que crepitava,
o desmoronamento da estrela,
o terno desdobra-se da onda
desperdiçando neve com a espuma,
o poder quieto, ali, determinado
como um trono de pedra no profundo,
substituiu o recinto em que cresciam
tristeza teimosa, amontoando esquecimento,
e mudou bruscamente minha existência:
de minha adesão ao puro movimento.

De Canto General

Capa_Canto_general

XXIII

LA MUERTE

He renacido muchas veces, desde el fondo
de estrellas derrotadas, reconstruyendo el hilo
de las eternidades que poblé con mis manos,
y ahora voy a morir, sin nada más, con tierra
sobre mi cuerpo, destinado a ser tierra.

No compré una parcela del cielo que vendían
los sacerdotes, ni acepté tinieblas
que el metafísico manufacturaba
para despreocupados poderosos.

Quiero estar en la muerte con los pobres
que no tuvieron tiempo de estudiarla,
mientras los apaleaban los que tienen
el cielo dividido y arreglado.

Tengo lista mi muerte, como un traje
que me espera, del color que amo,
de la extensión que busqué inútilmente,
de la profundidad que necesito.

Cuando el amor gastó su materia evidente
y la lucha desgrana sus martillos
en otras manos de agregada fuerza,
viene a borrar la muerte las señales
que fueron construyendo tus fronteras.

XXIII

A MORTE

Renasci muitas vezes, do fundo
de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com terra
sobre meu corpo, destinado a ser terra.

Não comprei una parcela do céu que vendiam
os sacerdotes, nem aceitei trevas
que o metafísico manufaturava
para despreocupados poderosos.

Quero estar na morte com os pobres
que não tiveram tempo para estudá-la,
enquanto os golpeavam os que têm
o céu dividido e arrumado.

Tenho pronta minha morte, como um traje
que me espera, da cor que amo,
da extensão que busquei inutilmente,
da profundidade que necessito.

Quando o amor gastou sua matéria evidente
e a luta descaroça seus martelos
em outras mãos de agregada força,
vem apagar a morte os sinais
que foram construindo tuas fronteiras.

XXIII

TESTAMENTO
(1)

Dejo a los sindicatos
del cobre, del carbón y del salitre
mi casa junto al mar de Isla Negra.
Quiero que allí reposen los maltratados hijos
de mi patria, saqueada por hachas y traidores,
desbaratada en su sagrada sangre,
consumida en volcánicos harapos.

Quiero que al limpio amor que recorriera
mi dominio, descansen los cansados,
se sienten a mi mesa los oscuros,
duerman sobre mi cama los heridos.

Hermano, ésta es mi casa, entra en el mundo
de flor marina y piedra constelada
que levanté luchando en mi pobreza.
Aquí nació el sonido en mi ventana
como en una creciente caracola
y luego estableció sus latitudes
en mi desordenada geología.

Tu vienes de abrasados corredores,
de túneles mordidos por el odio,
por el salto sulfúrico del viento:
aquí tienes la paz que te destino,
agua y espacio de mi oceanía.

XXIII

TESTAMENTO
(1)

Deixo aos sindicatos
do cobre, do carvão e do salitre
minha casa junto ao mar de Isla Negra.
Quero que ali repousem os maltratados filhos
de minha pátria, saqueada por achas e traidores,
desbaratada em seu sagrado sangue,
consumida em vulcânicos farrapos.

Quero que ao limpo amor que recorrera
meu domínio, descansem os cansados,
sentem-se a minha mesa os obscuros,
durmam sobre minha cama os feridos.

Irmão, esta é minha casa, entra no mundo
de flor marinha e pedra constelada
que levantei lutando em minha pobreza.
Aqui nasceu o som em minha janela
como em um crescente caracol
e logo estabeleceu suas latitudes
em minha desordenada geologia.

Tu vens de abrasados corredores,
de túneis mordidos pelo ódio,
pelo salto sulfúrico do vento:
aqui tens a paz que te destino,
água e espaço de minha oceania.

XXIV

TESTAMENTO
(2)

Dejo mis viejos libros, recogidos
en rincones del mundo, venerados
en su tipografía majestuosa,
a los nuevos poetas de América,
a los que un día
hilarán en el ronco telar interrumpido
las significaciones de mañana.

Ellos habrán nacido cuando el agreste puño
de leñadores muertos y mineros
haya dado una vida innumerable
para limpiar la catedral torcida,
el grano desquiciado, el filamento
que enredó nuestras ávidas llanuras.
Toquen ellos infierno, este pasado
que aplastó los diamantes, y defiendan
los mundos cereales de su canto,
lo que nació en el árbol del martirio.

Sobre los huesos de caciques, lejos
de nuestra herencia traicionada, en pleno
aire de pueblos que caminan solos,
ellos van a poblar el estatuto
de un largo sufrimiento victorioso.

Que amen como yo amé mi Manrique, mi Góngora,
mi Garcilaso, mi Quevedo:
fueron
titánicos guardianes, armaduras
de platino y nevada transparencia,
que me enseñaron el rigor, y busquen
en mi Lautréamont viejos lamentos
entre pestilenciales agonías.
Que en Maiakovsky vean cómo ascendió la estrella
y cómo de sus rayos nacieron las espigas.

XXIV

TESTAMENTO
(2)

Deixo meus velhos livros, recolhidos
em rincões do mundo, venerados
em sua tipografia majestosa,
aos novos poetas da América,
aos que um dia
fiarão no roufenho tear interrompido
os significados da amanhã.

Eles terão nascido quando o agreste punho
de lenhadores mortos e mineiros
tenha dado uma vida inumerável
para limpar a catedral torcida,
o grão descomposto, o filamento
que enredou nossas ávidas planícies.
Toquem eles inferno, este passado
que aplastou os diamantes, e defendam
os mundos cereais de seu canto,
o que nasceu na árvore do martírio.

Sobre os ossos de caciques, distante
de nossa herança atraiçoada, em pleno
ar de povos que caminham sozinhos,
eles vão povoar o estatuto
de um longo sofrimento vitorioso.

Que amem como eu amei meu Manrique, meu Góngora,
meu Garcilaso, meu Quevedo:
foram
titânicos guardiões, armaduras
de platina e nevada transparência,
que me ensinaram o rigor, e busquem
em meu Lautréamont velhos lamentos
entre pestilenciais agonias.
Que em Maiakovsky vejam como ascendeu a estrela
e como de seus raios nasceram as espigas.

 XXIV

DISPOSICIONES

Compañeros, enterradme en Isla Negra,
frente al mar que conozco, a cada área rugosa
de piedras y de olas que mis ojos perdidos
no volverán a ver.
Cada día de océano
me trajo niebla o puros derrumbes de
turquesa,
o simple extensión, agua rectilínea, invariable,
lo que pedí, el espacio que devoró mi frente.

Cada paso enlutado de cormorán, el vuelo
de grandes aves grises que amaban el
invierno,
y cada tenebroso círculo de sargazo
y cada grave ola que sacude su frío,
y más aún, la tierra que un escondido herbario
secreto, hijo de brumas y de sales, roído
por el ácido viento, minúsculas corolas
de la costa pegadas a la infinita arena:
todas las llaves húmedas de la tierra marina
conocen cada estado de mi alegría,
saben
que allí quiero dormir entre los párpados
del mar y de la tierra . . .
Quiero ser arrastrado
hacia abajo en las lluvias que el salvaje
viento del mar combate y desmenuza,
y luego por los cauces subterráneos, seguir
hacia la primavera profunda que renace.

Abrid junto a mí el hueco de la que amo, y
un día
dajadla que otra vez me acompañe en la
tierra.

 XXIV

DISPOSIçõES

Companheiros, enterrai-me em Isla Negra,
frente ao mar que conheço, a cada área rugosa
de pedras e de ondas que meus olhos perdidos
não voltarão a ver.
Cada dia de oceano
trouxe-me névoa ou puros desmoronamentos de
turquesa,
ou simples extensão, água retilínea, invariável,
o que pedi, o espaço que devorou minha fronte.

Cada passo enlutado de cormorão, o voo
de grandes aves cinzentas que amavam o
inverno,
e cada tenebroso círculo de sargaço
e cada grave onda que sacode seu frio,
e mais ainda, a terra que um oculto herbário
secreto, filho de brumas y de sais, roído
pelo ácido vento, minúsculas corolas
da costa coladas à infinita areia:
todas as chaves úmidas da terra marinha
conhecem cada estado de minha alegria,
sabem
que ali quero dormir entre as pálpebras
do mar e da terra …
Quero ser arrastado
para baixo nas chuvas que o selvagem
vento do mar combate e esmiúça,
e logo pelos leitos subterrâneos, seguir
até a primavera profunda que renasce.

Abri junto a mim a cova da que amo, e
um dia
deixai-a que outra vez me acompanhe na
terra.

Neruda_matilde_islanegra

*****

Versões ao Português de Ceto de Assis

Bom dia, Ano Novo!

Meu mantra

Nas várias religiões que cobrem o mundo há discussões infindas sobre o valor das orações repetidas. Fosse eu sacerdote (ou ainda melhor, um bispo) de uma delas, defenderia a repetição como a reiteração do desejo não alcançado, a insistência, a persistência, a reprodução e a multiplicação da vontade. “Ah, mas Mateus ensinou que não devemos multiplicar as palavras, como fazem os pagãos, que usam a força das palavras para serem ouvidos.” Segundo o apóstolo cristão, Deus sabe o que necessitamos, antes mesmo que peçamos a ele. Porém, prevenindo-se contra as dúvidas, ele ensinou a seus discípulos a rezar o Pai Nosso, tantas vezes repetido ao longo de todos os dias.

Mas entre nós, míseros mortais, a força da palavra deve ser usada à exaustão, já que os ouvidos dos poderosos são moucos, mesmo quando sabem, também à exaustão, o que necessitamos.

A oração, para mim, é um ato íntimo (como pregava Mateus), uma busca pelas forças recônditas de nosso próprio ser. Não é prova de abandono, mas de apego à vida, até em momentos em que a esperança é ínfima. Sobretudo, a oração utiliza a energia da palavra para também multiplicá-la em nosso interior. Desse modo, não é preciso ser religioso, no sentido de pertencer a uma determinada organização mística, para fazer uma oração. Noel Rosa fez uma canção em louvor a uma mulher amada e lhe deu um nome adequado: “Feitio de Oração”. E era (é) realmente uma oração, sem necessariamente ser dirigida a um ser supremo. Os pintores também rezam quando produzem seus quadros, porque retiram de dentro de si a energia da criação. Os poetas literalmente oram e predicam em seus poemas, construídos com a força da palavra.

Os budistas e outros religiosos orientais vão além das palavras para proferir suas orações, sempre em busca de um caminho energético. Fixam-se, em seus mantras, nos sons de palavras antigas, algumas incompreensíveis, cuja repetição e, possivelmente, a vibração ou onda sonora com que são produzidos criam vários efeitos sobre a pessoa que as emite ou, como creem os seus adeptos, entre o emissor e aquelas que são alcançadas por tais sons.

Repetir um mantra abre portais para o akasha, que seria, no nosso limitado entendimento ocidental, uma espécie de substrato espiritual, o cosmos, a quintessência universal.

Por isso, retomo um recado ao ano de 2010, publicado em dezembro de 2029 no Banco da Poesia, e dedico-o ao novo ano que abre agora suas portas. A releitura serviu para convencer-me que pouco mudou, nos limites da pátria amada, nem em 2010, nem em 2011. Os poucos avanços que conquistamos foram quase todos inerciais, produtos da energia social que não necessita de apoios oficiais para mover-se, ou de empurrões do mundo globalizado, que nos obriga a acompanhar ou copiar ações de outros países. Continuamos a ser meros exportadores de produtos primários (ou de commodities, como dizem os mais sofisticados) e de alguns semimanufaturados, sem agregar valor às nossas riquezas naturais. Temos pouco desenvolvimento tecnológico, porque nos faltam Educação e pesquisa científica. Recebemos afagos da vaidade quando anunciam que nos tornamos a oitava economia mundial e logo seremos a sétima, passando pelo Reino Unido e pela França, o que só nos distrai de outra verdade mais contundente: o Brasil ainda está na 84ª posição no índice de Desenvolvimento Humano, atrás de muitos países da América Latina, como Argentina, Chile, México, Uruguai, Cuba, Costa Rica, Panamá, Peru, Equador  e Venezuela. A cada novo governo, a cada novo ano, ecoam as promessas mântricas de prioridade para a Educação, combate à fome e à miséria (como se fossem coisas separadas), faxina para os malfeitos (mas nunca para todos os malfeitores). Continuam a ser mantras sem reverberações.

Eis-nos, pois, nascente ano de 2012, novamente embasbacados diante de ti, um novo ano aventuroso, cujas venturas podem se confundir apenas com leves ventos de esperanças. Arrepiados, por exemplo, quando se anuncia, já para janeiro, a troca do roto pelo esfarrapado na pasta da Educação, que deveria ser o ministério mais importante para qualquer governo. Temerosos, novamente, quando ainda perduram as estruturas políticas viciadas e os estratagemas indecentes para manter o poder de determinados partidos. Assombrados porque, diante de um novo ano eleitoral, quando iremos escolher novos prefeitos e vereadores, nada mais existe, em matéria política, que a mera vontade de se ganhar eleições, sob qualquer condição, com qualquer indivíduo, seja ele preparado para o trabalho público ou um virtual aproveitador do dinheiro público.

É hora, portanto, de repetir meu mantra, certo de que, em um ano qualquer mais radiante, conseguiremos fazer com que nossa sociedade nacional cresça e apareça –  mais séria, mais respeitosa e respeitada.

E não custa também repetir, apesar disto ser um velho clichê: Feliz Ano Novo para todos! (Cleto de Assis)

 Oração a 2012

2012,  que estás a chegar
tão cheio de esperanças, tal como teus irmãos passados,
venha até nós com certezas e realizações.
Faze-nos atingir o caminho da Justiça, em todas as suas direções
e realiza o milagre da multiplicação dos pães
sem o auxílio mesquinho de astuciosas dádivas politicóides,
mas alcançado por meio do Trabalho digno e recompensador.
Faze com que a Saúde seja também imperadora em todos os lares
e afasta principalmente as crianças das caliginosas névoas da tristeza
e da fome e da doença.
Acende a chama pentecostal do conhecimento
sobre todas as cabeças, por meio da nobreza da Educação e da alegria do Saber.
Livra-nos das promessas vazias dos homens e das mulheres que querem nos liderar
e encaminha-os ao cometimento de ações sérias e consequentes
com total respeito ao imposto nosso de cada dia.
Não os deixes cair nas tentações das propinas
e não lhes perdoes as suas ofensas, nem lhes dês a benção espúria da impunidade.
Unge-nos com o bálsamo da paciência
para que possamos suportar as falsidades, as descaradas mentiras,
os impropérios gramaticais dos horários eleitorais
e as ladainhas sem sentido dos salvadores da Pátria.

Amigo 2012, tu que vens com data certa para um novo exercício de Democracia,
faze com que ela permaneça entre nós,
senhora que é da Liberdade e da Justiça Social.
Ajuda-a a não ser usada para a prosperidade dos demagogos
ou para o gozo dos déspotas.
Mostra aos pretensos donos do poder que só ela salva
e pode nos garantir o direito de opinião e de expressão
sem termos que nos submeter à censura dos donos das verdades
ou ao estulto absolutismo de um único partido.
No período eleitoral, faze que, quando houver ódio,
possamos também falar de amor sem nos envergonharmos;
quando houver ofensa, que ela seja sucedida pela pacificação;
quando houver discórdia, que possamos remar a favor da união;
quando houver dúvida, que tenhamos de pronto o esclarecimento;
quando houver erro, que possamos chegar rápido à verdade;
quando houver desespero, ajuda-nos a manter a esperança;
quando houver tristeza, que se eleve a alegria;
quando houver trevas, que se faça a luz.

Sobretudo, aguardado 2012,
faze com que finalmente compreendamos o valor da Paz e do Trabalho
para que não precisemos mais suplicar por felizes novos anos .

Cleto de Assis – dezembro de 2009, renovado em dezembro de 2011.

Domingos Pellegrini lança novo livro em Curitiba

A história da mãe do escritor Domingos Pellegrini

Jaime Cimenti

O consagrado e premiado escritor Domingos Pellegrini estreou na literatura em 1977, com o livro de contos O Homem Vermelho, premiado com o Prêmio Jabuti. Com o romance O Caso da Chácara Chão, de 2001, recebeu outro Jabuti. Com outros romances e livros de poesia, recebeu mais quatro Prêmios Jabuti. Há quinze anos o autor vive de literatura, depois de ter se mudado para uma chácara na cidade onde nasceu, Londrina. Herança de Maria é uma alentada narrativa de 416 páginas que retrata a vida da mãe do escritor, uma mulher forte, que nasceu menina humilde no interior do Paraná, tornou-se dona de pensão, engravidou sem saber direito o que era um parto, desafiou um soldado da ditadura com tapa na cara para proteger o filho e viveu separada do marido na época em que isso era uma vergonha. Era mulher com resposta para tudo. As primeiras páginas do romance iniciam com Maria, aos 80 anos, em coma. As mãos fortes, que no passado bateram o pilão, estão, agora, imóveis, repousando sobre seu peito. Este romance é a estreia de Pellegrini na Editora LeYa Brasil. A narrativa é intensa, comovente e envolve lembranças, cartas antigas encontradas em caixas de sapato, memórias e conversas com quem conheceu Maria ao longo da vida. Descrevendo a trajetória de Maria, o protagonista e alterego do autor fica ao seu lado no quarto, observando-a e acabando por reconstruir  momentos da vida de nosso Brasil destas últimas décadas, através de suas ideologias e mudanças. O filho não sabe se Maria, com o corpo inerte, vai durar dias, meses ou anos. A decisão sobre o final da vida da mãe cabe a Deus, mas a ele também. Que morte deveria ter aquela Maria especial? O que poderia ser feito depois de tantas décadas de luta? Como lembrar dos caminhos de  tantos homens, mulheres, civis, militares, jovens e crianças, envoltos num período marcante da História do Brasil? O protagonista lembra, relembra, imagina e vai construindo o possível. Ele decide que aquela mulher extraordinária, forte, íntegra, corajosa, capaz de operar verdadeiros “milagres”, merece algo mais grandioso do que simplesmente viver na inércia de um vegetal.  Editora LeYa, 416 páginas, R$ 44,90, www.leya.com.br.

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Conheci Maria, a real, apenas de raspão. Mais precisamente, ao atender dois telefonemas que ela fez à redação do Novo Jornal, em Londrina  – lá pelos idos de 1970 – cujo redator-chefe era o jovem e talentoso jornalista Domingos Pellegrini,  seu filho. Mãe zelosa, reclamava do fato de o “menino” estar trabalhando até altas horas, quando deveria estar em casa. Anos mais tarde, quando conversamos, em um de nossos reencontros, ele descreveu a tragédia de ver sua mãe padecer, à beira da morte. Era, talvez, um rápido trailer do livro que agora expõe ao público, numa primorosa edição da LeYa, de editores portugueses que, novamente, estão descobrindo o Brasil, sem muito alarde, mas com um catálogo já bem fornido. Obras como Uma Patada com Carinho, da cartunista Fabiane Bento Langona (Chiquinha);A Bossa do Lobo, na qual Denilson Monteiro conta a vida de Ronaldo Bôscoli; Historietas assombradas, de Victor-Hugo Borges; O fim da guerra, de Denis Russo Burgierman, e Escritos em verbal de aves, do poeta Manoel de Barros.

A editora LeYa também investe, agora, na reedição do livro do curitibano Leandro Narloch, o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, um best-seller que já vendeu 200 mil exemplares, desde seu lançamento, em 2009.  Desta vez ele será vendido em uma caixa, associado ao Guia Politicamente Incorreto da América Latina, que Narloch escreveu em parceria com seu colega de Veja, Duda Teixeira. Anuncia-se que a tiragem da dupla será de 70 mil exemplares, um número realmente expressivo no mercado editorial do Brasil.

Pellegrini lançou seu novo livro em Curitiba no último dia 25 de novembro, no bar Quintana. Como sempre, reuniu amigos e admiradores de sua literatura, mostrando mais uma história bem contada, que pode ser a história de milhões de brasileiros que vivem simplesmente em pacatas cidades do interior, com raízes na roça. Uma história de amor filial e amor materno, sem ser melodramática. Uma história como essas que a gente guarda na memória da criança que todos fomos e que muitos esquecem. A intimidade familiar e a onipresença de Maria, a simples, a batalhadora, a sofredora, mais heroína do que o próprio filho que queria ser herói para salvar o Brasil de todas as suas desgraças. Pelo menos até onde já fui, na leitura de A Herança de Maria, deu para perceber que Domingos Pellegrini alia as suas qualidades de excelente narrador, poeta e historiador da simplicidade ao sentimento de gratidão pelo que recebeu de sua mãe, nas contínuas heranças de dedicação. Seu livro é uma grande herança ao revés, que dela não recebeu, mas que entrega carinhosamente após sua morte.

Este novo reencontro com Domingos Pellegrini também me deu a oportunidade para rever velhos amigos londrinenses, como os que aparecem na foto. Faltou Nilson Monteiro, também amigo e colaborador do Novo Jornal, que já havia saído na hora do “instantâneo”. Obrigado, Dinho, por mais esta jóia literária. Cleto de Assis

Claret de Rezende, Cleto de Assis, Ricardo Sampaio e Domingos Pellegrini, colegas nos tempos áureos da Folha de Londrina. Embeleza a foto Dalva, esposa de Pellegrini

Frederico Füllgraf & Lili Marleen, a repercussão

O escritor, tradutor e roteirista Frederico Füllgraf, que felizmente habita entre nós, fez longa pesquisa sobre o mito de Lili Marleen, mais conhecida entre nós, na segunda guerra Mundial, como Lili Marlene, título de uma canção nazista que contagiou os soldados de todas as nações – amigas e inimigas – envolvidas naquele conflito, inclusive os brasileiros. Seu trabalho foi ricamente comentado pelo também nosso amigo Manoel de Andrade, merecidamente reproduzido no blog do jornalista Luiz Nassif. Vamos igualmente reproduzir a análise de Manoel, na qual ele realça a grande ironia criada por aquela canção: descobriu-se, mais tarde, que a musa que a inspirou era judia… Se você gostar do aperitivo de Manoel de Andrade, beba a água na fonte: acesse o Fulfrafianas e leia o trabalho de Frederico, dividido em três partes – (1-3), (2-3) e (3-3). Vale a pena. E após degiustar o apweritivo e o prato principal, veja e ecute, como sobremesa, as versões de Lili Marleen, em Alemão e Inglês, cantadas por Marlene Dietrich.

Sobre a Lilli Marleen de Frederico

Por Manoel de Andrade, poeta e ensaísta

Eu já tinha ouvido “Lilli Marleen” na voz de Marlene Dietrich, mas não imaginava que aquele poema, transformado em música, tivesse uma trajetória tão fantástica e nem que Hans Leip tivesse sido um escritor tão fecundo. Quantos vultos famosos da história europeia estiveram, direta ou indiretamente, relacionados com essa célebre canção!!! A  interculturalidade com que o texto é escrito leva-nos a caminhar pelos fronts históricos e geográficos da Segunda Grande Guerra, bem como pelos seus bastidores,  chocando-nos com o terror da censura nazista sobre a cultura. Era a ironia da própria guerra trazendo, depois do bombardeiro alemão de Belgrado, o som radiofônico de uma canção ouvida e apreciada, a despeito da proibição de Goebbels, pelo prestígio do General  Rommel e seus soldados nas areias da África. Como um rastilho de pólvora a parceria poético-musical Leip&Shultze começa correndo acesa, no idioma de Goethe, pelas trincheiras nazistas e aliadas, mas seu encantamento vai explodir também nos ouvidos dos soldados russos.

O rigor intelectual com que Frederico Füllgraf vasculhou e constatou, pela crítica documental de suas fontes, a autenticidade dos fatos, conduz o leitor pelos estranhos atalhos desse fantástico fenômeno musical, para nos apresentar uma admirável pesquisa sobre quase um século de vida do tão discutido poema-musical alemão. Seu ensaio envolve-nos com a história do um jovem soldado, saudoso da namorada, que lhe inspira, no campo de batalha, seus primeiros versos. Esse romântico enredo de guerra lembra o grande poema “Espera-me” que o poeta e dramaturgo russo Konstantin Simonov, escreveu, em 1941, no front de guerra contra os alemães à sua querida Valentina Serova. Traduzido para muitos idiomas, e para o português, com incomparável beleza lírica, por Hélio do  Soveral, Espera-me  ou Espera por mim é um dos mais conhecidos poemas da Rússia. A sensibilidade de Cleto de Assis escreveu a essência comovente dessa história no seu site Banco da Poesia:

https://cdeassis.wordpress.com/2009/06/19/poema-de-amor-e-guerra/

Abro aqui um parêntesis, fugindo do estrito significado musical do texto, para considerar as grandes motivações que o fenômeno da guerra tem trazido à criação poética e musical, propiciando produções ou veiculando versos de infinita beleza. Por certo a Ilíada e a Odisseia não existiriam sem a Guerra de Troia, nem a Itália teria seu grande poema épico se o início das Cruzadas não inspirasse Torquato Tasso a escrever Jerusalém Libertada. A Chanson d’Automne, de Paul  Verlaine, não seria tão conhecida se não fosse  enviada também por rádio, como uma senha, à Resistência Francesa anunciando o desembarque aliado na  Normandia e determinando o fim do Terceiro Reich, que pretendia durar mil anos. Que honra maior poderia ter um poema, abrindo com o lirismo e o suave encanto dos seus versos, as portas da liberdade do continente europeu dominado pelo nazismo?  E neste contexto as comparações se derivam para as canções que inspiraram a resistência revolucionária nas guerras civis que abalaram o mundo e se celebrizaram com o nome Marselhesa, na França revolucionária e como  Le chant des Partisans, entoado pela Resistência, na França invadida pelos exército alemão. Com o mesmo ardor  se cantava Se me quieres escribir e Viva la Quinta Brigada, na Guerra Civil Espanhola. E assim foi, ao som da Bandiera  Rossa e Bella Ciao na Itália,  Nicaragua Nicaraguita, cantada pelos sandinista, Venceremos, no Chile socialista, onde Viva Chile Mierda, de Fernando Alegria, foi o poema mais declamado durante o governo de Salvador Allende.  Aqui, no Brasil, a canção Caminhando, de Geraldo Vandré, foi o hino revolucionário com que a nação inteira  protestou, cantando, contra a ditadura militar.

Voltando à história sentimental do soldado Hans Leip e seu poema, e considerando a amplitude do texto, creio ser interessante repicar, neste comentário, alguns aspectos marcantes no longo artigo de Frederico Füllgraf.  Primeiramente o encanto musical das emissões diárias da “canção de um jovem sentinela” pela rádio de Belgrado, polarizando a longínqua atenção dos soldados alemães no norte da África. A transmissão, captada também na região pelos soldados britânicos, levou o orgulho militar inglês, sob o comando de Montgomery,  a criar uma sarcástica versão política de “Lilli Marleen” ironizando Hitler  e o partido nazista. O autor nos fala da canção na voz radiofônica da BBC e de meio milhão de discos vendidos, em 1944, na Inglaterra e sua versão adaptada para 50 idiomas. Detalha a biografia conturbada e trágica de Lale Andersen e depois sua turnê pela Coréia e Indochina.  A segunda grande intérprete da canção é Lucie Mannnheim, chegando enfim a Marlene Dietrich, que foi a mascote musical dos aliados correndo os Estados Unidos e a Europa com “Lilli Marleen” nos lábios e as grandes platéias aos seus pés. Os intérpretes da famosa canção se sucedem, no incrível caleidoscópio de informações – que transpiram normalmente por todos os neurônios do Frederico que conhecemos, – passando por Edith Piaf e Bing Crosby, e por interpretações contemporâneas  na voz da cantora francesa   Patrícia Kaas, comemorando, em 2005, os 60 anos do Dia “D”.

O texto, entre outras tantas revelações e curiosidades, traz uma passagem pitoresca envolvendo Winston Churchill e seu pesadelo com o General Rommel, em torno da sua preferência pela canção. Refere-se também a uma misteriosa versão judaica feita por Stefan Zweig. O ponto alto do texto é a referência a uma edição de 2006 do livro em que a autora, Lilly Freud Marlé,  sobrinha de Freud, revela ser a pessoa que inspirou Hans Leip a escrever o poema que gerou a composição musical “Lilli Marleen”, versão reiterada por outros descendentes de Freud.

Finalmente é surpreendente constatar que as sementes lançadas há noventa e cinco anos por um simples poema que se tornou canção, tenha se aberto em tantas flores musicais pelos idiomas do mundo inteiro, inclusive uma versão judaica de nome Lili, em homenagem à pára-quedista  Hannah Senesh, morta em Budapeste pela Gestapo,  e geram ainda, ano a ano, tantos frutos “saborosos” para a viúva de Leip e mantenham repletos os celeiros amoedados do compositor Norbert Schultze.

Parabenizando o autor pela dimensão crítica e historiográfica do seu trabalho,  ressalto as duas ironias genialmente bem colocadas: a primeira que “Lilli Marleen” foi a única contribuição dos nazistas para o mundo”. E a segunda ironizando a primeira: que uma musa judia seria a inspiradora da mais célebre canção nazista.

Lil Marleen – original em Alemão

Lili Marleen – versão em Inglês

Perda, busca e achamento em seis tempos

Amarras do Tempo

Cleto de Assis, Curitiba


Tempo I

Da surpresa


Entre os sabores de mar e uva
e palavras jorradas
como a compensar tantos anos de silêncio mútuo:
será a insinuante menina
ou a grave senhora que conta causos
e esconjura trevas
com a mesma afinação de voz do tempo anterior?
Convencionam-se distâncias medidas
com toques suaves de receio e apreensão
em busca de espelhos tardios – quem os perceberá?
Remembranças de morte, conchegos de vida,
juventudes distraídas, sonhos entrecortados,
futuros desconstruídos.
Presente: quem o sabe?

Tempo II

Da reflexão


Destinos não exigem rotas precisas
e súbitos ventos causam desvios,
naufrágios, descobertas inesperadas,
encontro de ilhas remotas e desabitadas.
Quem saberá a distância
entre o benquerer e o sem querer?
Quem poderá medir o certo e o errado
nas escolhas e  nos escolhos?
Quem, afinal, determina
esta estranha geometria
traçada sem esquadros ou compassos
a preencher com maestria
todos os tempos e espaços?

Será a memória um mata-borrão da vida
sem direito a correções, a novas direções?
E as dimensões da mancha impressa,
que limites terão elas?
Abrirão novas janelas ou fecharão esta porta?
Ou a incerteza está certa, ou a certeza está morta.

Eis lá no fundo o passado
que não passa. Tudo é vivo.
O tempo ressuscitado
já não é tempo afetivo.
Beijos, abraços, carinhos,
se perderam co’a esperança
de eternizar a lembrança
daqueles belos caminhos.
O soturno Saturno noturno
soube desviar as rotas
e criar novas veredas labirínticas
para o homem taciturno.

Tempo III

Da súbita rebeldia


Ah! À distância rimas e ritmos
e métricas e metáforas!
Não há qualquer simbolismo
neste funil que se estreita
à medida que nos aproximamos do finito.

Mas somos melhores, diz a voz,
do que no tempo em que tudo era infinito.
Temos, então, direito a novas auroras
Nesta hora crepuscular?

Terá o sonho solução?
Será o devaneio adolescente desmensurável plano
no tempo mínimo de nossa juventude?
O sonho é apenas um corte fugidio do presente
que não acumula certezas
e vive de ouro de tolo garimpado no passado.
Um dia, quando menos esperamos,
ou dolorosamente aguardamos,
damos de cara com o futuro
vestido em andrajos de Filho da Noite
a cuidar da porta que leva a parte nenhuma.
Apenas nos será permitido olhar mais vez para trás
sem direito a lamentações sonoras
ou pedidos de reconsideração.
Somente mais um último olhar no vazio do que passou
e de todos os presentes perdidos:
eis o Homem diante de seu Futuro.

Tempo IV

Da constatação


Pois há muito esquecemos
que um sorriso não tem devir,
ele existe para aquele momento em que se abre
e eterniza sentimentos.
Nem a flor, em sua efemeridade,
anuncia tempos vindouros
mas doura apenas os dias em que vive
e terá em suas irmãs e filhas
o contínuo refazer de presentes coloridos e perfumados.
Mais transitória ainda,
a borboleta, intensa flor flutuante,
não faz de seus passados de lagarta e crisálida
prisões de lamentações.
Só voa em suas visitas de flor em flor
a enfeitar preciosos e rápidos presentes.
E nisto está o mistério da vida, como queria Pessoa:
não haver nela qualquer mistério, só transitoriedade.
Somente nós, os reis da natureza,
queremos que ela pareça eterna
para celebrar o enganoso reinado perene
que impera sobre tudo o que é apenas passageiro,
a começar pela própria vida.
Aí inventamos a vaidade, a prepotência
e todas as demais formas de violência
que nada têm a ver com a lei maior da efêmera sobrevivência.
E insistimos em não ver o que é transitório
porque gostamos de alargar a sensação do infindo
imaginando tempos cósmicos de quinze mil anos solares
que criam um deus à nossa imagem e semelhança.
Não conseguimos aceitar que, no pórtico do silêncio vital,
há avisos claros sobre o que não deveríamos ter feito.

Não fale e siga,
diga e não diga
até a próxima curva
que não existe.
Depois prossiga
direto ao limite
do próximo passo.
Pare, olhe, escute:
se ouvir o silvo
ou o apito
esconda o grito
recolha o espanto.
Escolha o canto,
engula o pranto,
negue o infinito.

É dos segundos, minutos e horas que perdemos a pensar,
esperançosos,
na felicidade que ainda não veio
que formamos nossos futuros vazios,
sem perceber que a distância entre nós e as estrelas
é a ligação de muitos pontinhos sem luz bem próximos um do outro.
Basta olhar ao céu para consignar essa verdade.

Tempo V

Da remissão dos pecados


Eu, pecador, confesso:
deixei de colher pequenas vitórias passageiras
porque busquei glórias definitivas.
Abandonei faces que cativei e me cativaram
em troca de ilusórias paixões imorredouras.
Fui sempre infiel à vida
porque não a percebi nem a recebi
em sua infinda misericórdia e compaixão,
mas me acreditei superior à ela,
e contra ela blasfemei ao criar um deus, deuses e santos
para livrar-me da condenação eterna
por meio de breves arrependimentos
e esconsas meae culpae.
Deixei a balançar mãos solitárias
porque  me neguei a estender as minhas,
pretensamente  solidárias.
Fundei religiões que me impediram
de ver em mim e diante de mim a maravilha da criação
e imaginei paraísos e nirvanas distantes
que turvaram a visão da verdadeira vida.
Por não saber ter olhos para ver,
me reinventei em visionário,
pensando em luzes e cores
muito além de meu já mágico poder de visão.

Tempo VI

Dos encontros, desencontros e reencontros


E eis-me a abraçar a grande curva do universo
que gera encontros e desencontros e novos encontros
todos em seu momento exato, porque escritos na vontade.
Não a vontade da esperança
mas a decisão de ver e estar dinamicamente atento
a tudo que nos rodeia, sem juízos premonitórios.
E eis-me aqui disposto a entender a teia do tempo
que nos torna diferentes a todo momento
e preserva a memória que constrói todos os novos momentos.
Eis-me aqui porque talvez ainda haja mãos estendidas.
Eis-me aqui porque minhas mãos ainda podem operar milagres.
Eis-me aqui porque nego a fuga à retaguarda ou à vanguarda
e sou soldado de meu momento,
de meus momentos encadeados,
perfeitos elos de minha história sagrada e única.
Recolho nos ainda intatos escaninhos da memória
as horas consagradas
e trago-as ao presente, pois presentes estão
e têm o poder de fazer ressurgir o agora
e fazem o milagre da multiplicação de todos os agoras.

Subitamente, sem marcar encontro com o fado,
a voz sussurrou palavras meigas
capazes de cicatrizar feridas ainda abertas.
Uma suave carícia sobre os cabelos já a encanecer
completou a fórmula balsâmica
ontem e nesta nova hora.
E foram mais alguns anos solares à frente
a anunciar o quase esquecimento.
Novas curvas, novas retas
a insinuar-me geômetra para domá-las.
E eu, apenas um mero compositor de linhas toscas
em perigo iminente de fazer enorme maçaroca
de memória e tempo em helicoidais tropeços,
devo tentar recompô-las em devida trajetória
porque não há finais, só recomeços
e cada recomeço uma nova história.

Curitiba, junho de 2010.

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Ilustrações: C. de A.