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Sexta-feira da cruz que nos pesa

Não sou professo de religião organizada. E considero que minhas atuais convicções a respeito da vida e do[s] mundo[s] que me cerca[m] não são produto de soberba ou de exagerada humildade: creio-me incapaz de construir a ideia de outras vidas, além desta nossa precariamente vivida por alguns anos, e de seres imensamente poderosos que eventualmente nos criaram e comandam nossos destinos.

Confesso-me igualmente incapaz até mesmo de entender um universo (ou mais de um) com um começo e talvez sem fim, mesmo com explicações plausíveis da mais moderna Física. Já tenho um universo dentro de mim, cada um de nós é um microcosmo pouco conhecido: por que pretender ir além, sem complicar ainda mais a barafunda religiosa que povoa a mente e os corações dos seres humanos?

Mas respeito os que têm fé, opondo-se à minha (des)crença com uma confiança inabalável em uma vida transcendental. Respeito-os porque também já assumi essa confiança, dentro dela fui educado e nela vivi até adotar outros paradigmas. Em minha realidade, prefiro valer-me mais da dúvida que da fé, uma vez que a incerteza abre portas maiores para o conhecimento.

Em anos anteriores, possivelmente ainda sensível a exercícios religiosos que impregnaram minha infância, publiquei poemas alusivos à fé cristã, em datas especiais como a semana da Páscoa, que ainda me traz saudades dos tempos em que acordávamos, eu e minha irmã menor, nos domingos pascais, para iniciar a caça às cestas de doces que nos encantariam por alguns dias. Essas publicações em nada contradizem meu posicionamento em relação às religiões organizadas. Quem quiser saber mais um pouco, leia poemas que publiquei (aqui e aqui), arriscando-me a tangenciar levemente os campos metafísicos da vida humana. O resto é o que restar. E o que resta, ninguém ainda sabe.

Brasilia_Planalto

 

Para não deixar de refletir – sob vários ângulos – sobre essas datas histórico-religiosas, busquei algo relacionado com a crença em um deus-esperança, sem refúgio na tragédia sanguinolenta da sexta-feira da paixão. E encontrei um belo poema de Antônio Gonçalves Dias, o nosso romântico indianista. Denomina-se Ideia de Deus . Deposito aqui somente a segunda metade do Canto I, que pareceu-me profética, por descrever um cenário associado à imagem atual de certo país pendurado ao sul do Equador. Fala, em meio à invocação desse deus-esperança, de corrupção, de comandantes ímpios, de vingança e roubos, de invasão de insetos, mas também da fé em “um povo que nasce, esperançoso e crente, do povo corrupto”. Quem adivinhar que país é esse, ganha um ovinho de chocolate. Mas para reclamar somente dentro de alguns anos, quando tivermos recuperado nossa economia. C. de A.


Ideia de Deus

Gonçalves Dias

À voz de Jeová infindos mundos
Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada,

Luziu no espaço a lua!
Sobre a terra
Rouqueja o mar raivoso,
E as esferas nos céus ergueram hinos

Ao Deus prodigioso.
Hino de amar a criação, que soa Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruído
Do dia cintilante!

A morte, as aflições, o espaço, o tempo,
O que é para o Senhor?
Eterno, imenso, que lh’importa a sanha
Do tempo roedor?

Como um raio de luz, percorre o espaço,
E tudo nota e vê –
O argueiro, os mundos, o universo, o justo;
E o homem que não crê.

E Ele que pode aniquilar os mundos,
Tão forte como Ele é,
E vê e passa, e não castiga o crime,
Nem o ímpio sem fé!

Porém quando corrupto um povo inteiro
O Nome seu maldiz,
Quando só vive de vingança e roubos,
Julgando-se feliz;

Quando o ímpio comanda, quando o justo
Sofre as penas do mal,
E as virgens sem pudor, e as mães sem honra.
E a justiça venal;

Ai da perversa, da nação maldita,
Cheia de ingratidão,
Que há de ela mesma sujeitar seu colo
A justa punição.

Ou já terrível peste expande as asas,
Bem lenta a esvoaçar;
Vai de uns a outros, dos festins conviva,
Hóspede em todo o lar!

Ou já torvo rugir da guerra acesa
Espalha a confusão;
E a esposa, e a filha, de tenor opresso,
Não sente o coração.

E o pai, e o esposo, no morrer cruento,
Vomita o fel raivoso;
– Milhões de insetos vis que um pé gigante
Enterra em chão lodoso.

E do povo corrupto um povo nasce
Esperançoso e crente.
Como do podre e carunchoso tronco
Hástea forte e virente.


Gonçalves_Dias

Antônio Gonçalves Dias nasceu em Caxias, Maranhão, a 10 de agosto de 1823, e morreu em Guimarães, no mesmo estado, a 3 de novembro de 1864, vítima de um naufrágio. Estudo em Portugal e em Coimbra relacionou-se com escritores lusos celebrados na época, como Almeida Garret e Alexandre Herculano. De volta ao Brasil, já diplomado em Direito, deu início à sua saga literária, marcada pela influência do romantismo português, mas que se voltaria ao elogio de valores nacionais, numa espécie de reação ao colonialismo, tornando-se um dos maiores expoentes do romantismo brasileiro e da corrente literária conhecida como “indianismo”. Sua famosa Canção do Exílio  foi escrita ainda nos tempos de estudante, em Portugal, e registrou a saudade do Brasil (“… não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá”…).  Mas foi na fase indianista que surgiu o poema épico I-Juca-Pirama  ( “…Meu canto de morte, /
Guerreiros, ouvi: / Sou filho das selvas, / Nas selvas cresci; / Guerreiros, descendo / Da tribo tupi. – [primeira estrofe do Canto IV]). Seu trabalho intelectual foi enriquecido  pelas pesquisas das línguas indígenas e do folclore brasileiro.

É o patrono da cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras. Essa cadeira foi fundada por Olavo Bilac e, na linha de sucessão, nela se assentaram Amadeu Amaral, Guilherme de Almeida, Odilo Costa Filho, Dom Marcos Barbosa e Padre Fernando Bastos de Ávila. O atual ocupante é Marco Lucchesi (Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1963), poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor.

Confissões de L. Rafael Nolli

O leão nosso de cada dia

L. Rafael Nolli, Araxá

Para Cássio Marcos Amaral

Hoje, sou exatamente aquilo que tenho:
centavos que não compravam felicidade alguma
uma úlcera metafísica,
que não me acompanhará ao infinito
dezenas de poemas sobre a exaltação do homem
………..e a felicidade tola dos desvairados.

Hoje, sou tudo que tenho:
um sonho de primavera
amadurecendo o coração dos brutos
um gosto de beijo nunca dado
uma iluminação repentina e irremediável,
………..que me levaria ao céu, se o quisesse.

Hoje, nada além dos meus pertences é o que sou:
uma dor de cabeça debutante
migalhas de pão presas à barba
um projeto de poesia
que me remediará de todo o mal do mundo —
depois de escrito me trairá covardemente,
por não saber nada além
………..do que suas palavras dizem.

Hoje, sou exatamente o que tenho:
………..mas é nu que espero o amanhã.

Araxá nos descobriu: Cássio Amaral também envia depósitos

Quem, em Araxá,
procurar da Poesia o Banco,
Axará?

O oeste mineiro nos descobriu. E nós estamos descobrindo a poesia do oeste de Minas.  Junto aos comentários sobre os poemas de Rafael Nolli, com L. antes, chegou mais uma proposta de abertura de conta no Banco da Poesia de Cássio Amaral. Também poeta jovem, professor e, como se vê nos seus trabalhos, em busca de novas linguagens, mesmo quando utiliza a antiga estrutura haicaiana. Saudamos o novo correntista, professor  de História, Filosofia e Sociologia no ensino médio. Ele nasceu e vive em Araxá, Minas Gerais. Autor dos livros Lua Insana Sol Demente (2001), Estrelas Cadentes (2003), Sem Nome (2006) e Sonnen (2008). Participou das coletâneas de autores blogueiros Corpo e Alma em Verso e Prosa (2006) e Trilhas (2008), organizadas por Euza Procópio Noronha. Tem poemas publicados nos endereços eletrônicos Diversos Afins, Germina Literatura, Revista Lasanha e site de Antonio Miranda.

Seu blog se chama enten katsudatsu . Nossas boas vindas a mais este araxaense e sua poesia.

Metafísica dos coiotes I

Rasgo o trago do imprevisto
que distrai o tempo que passa rápido.
Canto o cântico dos malditos que me cai.
Tudo vaza, tudo explode.
A noite é lenta quando lírios conspiram
contra a sorte perdida.
Lâminas que a incerteza jura fatiar para a salada
de nepotismo barato e regular da gargalhada da noite.
Bebo as estrelas virgens,
Como os meteoros platônicos,
latindo, uivando pra lua prostituta
que cavalga numa nuvem
o sexo santo dos devassos.

A Morte do Poeta


O poeta morreu
Balbuciando formigas em seus versos
Ficou obcecado por metáforas
Cuspiu pleonasmos pretéritos

O poeta morreu
Tentando achar seu caminho
Disse imperfeições nas metonímias
Atirou-se do nono  andar

O poeta morreu tentando desmontar a bomba atômica
Depois de ter punhetado Descartes buscando a verdade ao contrário
Verter-se em Paganini tocando seu violino diabólico
Esvoaçando flores carcomidas por aliterações fingidas

O poeta morreu
Nos precipícios lunáticos de toda a imperfeição
Uivando diante do absurdo da sua própria voz
Silenciada no êxtase da loucura.

Três Kai-kais

Hai-cães uivantes

um trovão instiga o uivo
a noite cai em mosaico
no verso latido de um pária

tirar leite das pedras
pisar na velocidade da luz
extrair a raiz sisuda do futuro.

Catador

catando palavras
desvirginando a métrica
endoidando a sintaxe.

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Ilustrações: C. de A.