Arquivo do mês: março 2016

Reflexões do C.A.R.A. na Sexta-feira Santa

Carlos-Alberto-Rodrigues-Al

C.A.R.A. são as iniciais de Carlos Alberto Rodrigues Alves. Mas a coincidência vem a calhar, pois ele é O Cara. Teólogo, pedagogo, Pastor evangélico e professor, porém sua profissão (de fé) verdadeira é ser amigo de muita gente. Quase sempre de bom humor, faz de versos de Vinicius sua máxima de vida: “a alegria é a melhor coisa que existe”. E também verseja, muitas vezes, embora sua melhor expressão artística esteja nas pontas do dedos, bom violonista que é. É casado com Luciana e tem três belos filhos: Giovani, Kauan e Giulia.

Hoje assume sua conta no Banco da Poesia, citando um de nossos poetas maiores, mas expondo uma visão da realidade que bem demonstra sua sensibilidade poética. Virão, em breve, versos seus.

Sobre Eriberto e seu cãozinho

Nesta semana santa, comovi-me diante de um catador de papel e morador de rua. Ele passa todos os dias em frente ao meu trabalho. Detalhe: sempre acompanhado de seu fiel e magérrimo cãozinho. Eriberto disse-me que não aceitou a oferta generosa de uma Ong que queria lhe dar um abrigo com maior dignidade. Razão de não ter aceito a generosidade: “ Eles me disseram que eu não poderia levar o Piloto para morar comigo”.

Vendo esta cumplicidade existencial entre o pequeno animal e seu dono entendi um pouco mais o poema do Drumond:
cao

Vamos, não chores.
A infância está perdida.
A mocidade está perdida
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis carro, navio, terra.
Mas ainda tens um cão…

Interpretei a cena que vi como mais uma lição de que nosso olhar não deve focar as nossas vias-sacras e sim as ressurreições constantes que a vida nos oferece. Noites que se transformam em manhãs, invernos que se tornam primaveras, lagartas que se metamorfoseiam em borboletas… Ou um cãozinho, com seu olhar de amigo, que nos comprova o valor da lealdade. C. A. R. A.

Sexta-feira da cruz que nos pesa

Não sou professo de religião organizada. E considero que minhas atuais convicções a respeito da vida e do[s] mundo[s] que me cerca[m] não são produto de soberba ou de exagerada humildade: creio-me incapaz de construir a ideia de outras vidas, além desta nossa precariamente vivida por alguns anos, e de seres imensamente poderosos que eventualmente nos criaram e comandam nossos destinos.

Confesso-me igualmente incapaz até mesmo de entender um universo (ou mais de um) com um começo e talvez sem fim, mesmo com explicações plausíveis da mais moderna Física. Já tenho um universo dentro de mim, cada um de nós é um microcosmo pouco conhecido: por que pretender ir além, sem complicar ainda mais a barafunda religiosa que povoa a mente e os corações dos seres humanos?

Mas respeito os que têm fé, opondo-se à minha (des)crença com uma confiança inabalável em uma vida transcendental. Respeito-os porque também já assumi essa confiança, dentro dela fui educado e nela vivi até adotar outros paradigmas. Em minha realidade, prefiro valer-me mais da dúvida que da fé, uma vez que a incerteza abre portas maiores para o conhecimento.

Em anos anteriores, possivelmente ainda sensível a exercícios religiosos que impregnaram minha infância, publiquei poemas alusivos à fé cristã, em datas especiais como a semana da Páscoa, que ainda me traz saudades dos tempos em que acordávamos, eu e minha irmã menor, nos domingos pascais, para iniciar a caça às cestas de doces que nos encantariam por alguns dias. Essas publicações em nada contradizem meu posicionamento em relação às religiões organizadas. Quem quiser saber mais um pouco, leia poemas que publiquei (aqui e aqui), arriscando-me a tangenciar levemente os campos metafísicos da vida humana. O resto é o que restar. E o que resta, ninguém ainda sabe.

Brasilia_Planalto

 

Para não deixar de refletir – sob vários ângulos – sobre essas datas histórico-religiosas, busquei algo relacionado com a crença em um deus-esperança, sem refúgio na tragédia sanguinolenta da sexta-feira da paixão. E encontrei um belo poema de Antônio Gonçalves Dias, o nosso romântico indianista. Denomina-se Ideia de Deus . Deposito aqui somente a segunda metade do Canto I, que pareceu-me profética, por descrever um cenário associado à imagem atual de certo país pendurado ao sul do Equador. Fala, em meio à invocação desse deus-esperança, de corrupção, de comandantes ímpios, de vingança e roubos, de invasão de insetos, mas também da fé em “um povo que nasce, esperançoso e crente, do povo corrupto”. Quem adivinhar que país é esse, ganha um ovinho de chocolate. Mas para reclamar somente dentro de alguns anos, quando tivermos recuperado nossa economia. C. de A.


Ideia de Deus

Gonçalves Dias

À voz de Jeová infindos mundos
Se formaram do nada;
Rasgou-se o horror das trevas, fez-se o dia,
E a noite foi criada,

Luziu no espaço a lua!
Sobre a terra
Rouqueja o mar raivoso,
E as esferas nos céus ergueram hinos

Ao Deus prodigioso.
Hino de amar a criação, que soa Eternal, incessante,
Da noite no remanso, no ruído
Do dia cintilante!

A morte, as aflições, o espaço, o tempo,
O que é para o Senhor?
Eterno, imenso, que lh’importa a sanha
Do tempo roedor?

Como um raio de luz, percorre o espaço,
E tudo nota e vê –
O argueiro, os mundos, o universo, o justo;
E o homem que não crê.

E Ele que pode aniquilar os mundos,
Tão forte como Ele é,
E vê e passa, e não castiga o crime,
Nem o ímpio sem fé!

Porém quando corrupto um povo inteiro
O Nome seu maldiz,
Quando só vive de vingança e roubos,
Julgando-se feliz;

Quando o ímpio comanda, quando o justo
Sofre as penas do mal,
E as virgens sem pudor, e as mães sem honra.
E a justiça venal;

Ai da perversa, da nação maldita,
Cheia de ingratidão,
Que há de ela mesma sujeitar seu colo
A justa punição.

Ou já terrível peste expande as asas,
Bem lenta a esvoaçar;
Vai de uns a outros, dos festins conviva,
Hóspede em todo o lar!

Ou já torvo rugir da guerra acesa
Espalha a confusão;
E a esposa, e a filha, de tenor opresso,
Não sente o coração.

E o pai, e o esposo, no morrer cruento,
Vomita o fel raivoso;
– Milhões de insetos vis que um pé gigante
Enterra em chão lodoso.

E do povo corrupto um povo nasce
Esperançoso e crente.
Como do podre e carunchoso tronco
Hástea forte e virente.


Gonçalves_Dias

Antônio Gonçalves Dias nasceu em Caxias, Maranhão, a 10 de agosto de 1823, e morreu em Guimarães, no mesmo estado, a 3 de novembro de 1864, vítima de um naufrágio. Estudo em Portugal e em Coimbra relacionou-se com escritores lusos celebrados na época, como Almeida Garret e Alexandre Herculano. De volta ao Brasil, já diplomado em Direito, deu início à sua saga literária, marcada pela influência do romantismo português, mas que se voltaria ao elogio de valores nacionais, numa espécie de reação ao colonialismo, tornando-se um dos maiores expoentes do romantismo brasileiro e da corrente literária conhecida como “indianismo”. Sua famosa Canção do Exílio  foi escrita ainda nos tempos de estudante, em Portugal, e registrou a saudade do Brasil (“… não permita Deus que eu morra / sem que eu volte para lá”…).  Mas foi na fase indianista que surgiu o poema épico I-Juca-Pirama  ( “…Meu canto de morte, /
Guerreiros, ouvi: / Sou filho das selvas, / Nas selvas cresci; / Guerreiros, descendo / Da tribo tupi. – [primeira estrofe do Canto IV]). Seu trabalho intelectual foi enriquecido  pelas pesquisas das línguas indígenas e do folclore brasileiro.

É o patrono da cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras. Essa cadeira foi fundada por Olavo Bilac e, na linha de sucessão, nela se assentaram Amadeu Amaral, Guilherme de Almeida, Odilo Costa Filho, Dom Marcos Barbosa e Padre Fernando Bastos de Ávila. O atual ocupante é Marco Lucchesi (Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1963), poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor.

Sensações outonais

Centenário do Caqui

caqui-full

 

        Nesta semana são comemorados muitos eventos. Ao Dia da Poesia já fiz homenagem especial. Mas há também o Dia Internacional da Síndrome de Down (21/03), ao qual também dedicamos especial atenção, há algum tempo, assim como ao Dia Mundial da Água (22/03). No dia 21 também se comemora o Dia Universal do Teatro, do qual poucos falaram.

Mas o início do Outono, tão lembrado no Banco da Poesia: em 2009, Mais Outonos franceses; em 2012, Saudação ao Outono e Nesses veludos pálidos de Outono; repeteco em 2014, com Bem vindo, Outono. E esta estação do ano, que carrega um pouco das outras três e se associa à vida humana como metáfora dos derradeiros anos, tem, para mim, além do sentido figurado da idade avançada, um imenso gosto de infância. Porque o Outono é também a estação das frutas, que amadurecem nas árvores enquanto as folhas secam. E uma das boas lembranças é o variado sabor dos caquis que aprendi a amar lá no começo de minha história.

Na pequena Mafra, em Santa Catarina, onde vivi os melhores anos (quem inventou a bobagem de que a velhice é a melhor idade?), saboreei as melhores peras, as melhores ameixas e os melhores caquis. Destes, havia várias espécies. O amargo, que só se podia comer quando bem maduro (quando pouco maduro, causa aquela sensação de “amarrar a boca”); o café ou chocolate, de doçura especial mesmo ainda verdolengo; o coração-de-boi, gigante que equivalia a uma refeição, já incluída a sobremesa. Nunca os tive no quintal de minha casa, mas era fácil encontrá-los nos pomares dos vizinhos e dos conhecidos de meus pais, sempre dispostos a dividir a colheita anual. Mais tarde, travei relações gastronômicas com outras espécies, já cultivadas pelos japoneses que se estabeleceram principalmente em São Paulo, na região de Mogi das cruzes. A produção em grande escala fixou espécies comerciais, como o Taubaté, Rama Forte e Fuyu e, de país receptor da fruta trazida pelos colonos japoneses, o Brasil já se torna exportador, ainda que em pequenos volumes.

O caqui maduro, quase gelatinoso, desmancha-se na boca de quem os consome quase voluptuosamente, devagarzinho, parcimoniosamente, diria até com certa avareza, que é para não degluti-lo rapidamente. Dá gosto permanecer com ele na boca, sentindo seus sabores, apesar de dispensar mastigação. Não é à toa que ele carrega em seu nome científico o gênero dióspyrus, que significa “alimento de Zeus”. Aliás, em Portugal ele conserva seu nome tradicional: lá não pergunte pelo caqui (do japonês kaki), mas pelo dióspiro.

Mas o que faz o caqui neste blog dedicado à Poesia? Em primeiro lugar, porque boa recordação da infância é poesia pura. Depois, porque amizade também é poesia e ganhei, na última semana, belos caquis produzidos na chácara de Neiva e Manoel de Andrade, diletos amigos. Também porque o bom alimento do corpo é também alimento prazeroso para a alma, o que também pode ser transmutado em poesia. E ainda guardo a imagem de uma grande plantação de caqui do interior de São Paulo, com os caquizeiros repletos de frutos alaranjados, sem vestígios de folhas, causando a impressão de um quadro vivo pintado por Van Gogh: também puríssima poesia. Finalmente, porque acabei de descobrir que o caqui veio para o Brasil em 1916, exatamente há cem anos. E caqui é fruta típica do outono brasileiro.

Notaram como o Outono é inspirador? Portanto, saudações ao Outono de 2016, com sabor de centenários caquis maduros.

Cleto de Assis – março de 2016

Mais um abraço para a Poesia, em seu dia

Banco da Poesia

Desencanto

Manuel Bandeira

Manuel Bandeira - 1986-1968 Manuel Bandeira – 1986-1968

Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

Ver o post original

Mais um abraço para a Poesia, em seu dia

Desencanto

Manuel Bandeira

Manuel Bandeira - 1986-1968

Manuel Bandeira – 1986-1968

Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

Ode à Cuia de Chimarrão

Ode_a_cuia

Vejo-te à minha frente,
sensualmente curvilínea,
ostentando a nudez campesina com que nasceste.
Ainda não te senti em minhas mãos,
mas sei que me aguardas,
quente e úmida
à espera de meu beijo pleno de apetite.
Vou a teu encontro e te agarro pelo pescoço
já a sentir teus aromas selvagens
a fluir de teu ventre esperançoso.
Avidamente, vou sorver-te até o fim,
até ouvir os ruídos finais de nosso conúbio.
Saciarei tua sede com mais calores líquidos
que libertarão novos perfumes.
Satisfeito, mas não saciado, passo-te a mãos alheias,
até a próxima rodada.

Cleto de Assis – 2015

Dia Mundial da Poesia

21 de março marca o Dia Mundial da Poesia,  criado na XXX Conferência Geral da Unesco, em 16 de novembro de 1999. O objetivo deste dia é promover a leitura, a escrita, a publicação e o ensino da Poesia em todo o mundo.

Salve, Poesia, mãe de todas as paixões,
misericordiosa para todos os males.
Salve, Rainha das Palavras
e maga toda poderosa das ternuras e das bem-aventuranças,
acalentadora de corações, artífice de piedades.
Saúdo-te em teu dia glorioso
embora tenha cometido o pecado do abandono provisório.
Mas de ti não desdenhei.

Desenhei teus encantos
nos traços de rotas várias de multicoloridas imagens: ut pictura poesis.
Salve, mimética e metafórica arte,
jubilosa Érato, desejável Euterpe,
mensageira de precisões e ambiguidades,
portadora de lamentos e devaneios,
incubadora de sonhos e tormentos,
arrimo dos nubívagos.

Em teu dia volto a abraçar-te
e em meus braços trago a promessa firme
de em ti permanecer,
pois em teu seio tenho o melhor alimento.
Eia ergo, carmina nostra,
illos tuos misericordes oculos
ad nos converte.
Porque nós precisamos de ti,
agora e sempre.

Cleto de Assis – março de 2016