Arquivo do mês: março 2019

Dia Mundial da Poesia

Há cinco anos, fiz uma homenagem a José de Anchieta, o poeta que inaugurou a arte em terras brasileiras, anos após o descobrimento, com a publicação de seu longo poema dedicado à Virgem Maria, em Latim e Português. O passar do tempo permitiu-me outro encontro com educador jesuíta, por meio de meu trabalho no Conselho Estadual de Educação do Paraná, que abriga uma Sala José de Anchieta, onde se reúne o Conselho Pleno. Neste princípio de ano, já a despedir-me de minhas funções administrativas (continuo como Conselheiro Suplente), a mudança daquela sala para o primeiro andar do prédio ora ocupado pelo CEE/PR me fez tomar uma decisão, contada abaixo, em um texto remodelado e que serviu de base para uma palestra aos Conselheiros, no dia 19 de março de 2019, aniversário de José de Anchieta. Com a republicação, faço também minha homenagem ao Dia Mundial da Poesia, uma vez que o agora São José de Anchieta inaugurou a arte poética no Brasil. – C. de A.

José de Anchieta, por Cleto de Assis/2019

Alguns historiadores defendem que o missionário jesuíta que aqui viveu de 1553 a 1597 foi primeiro poeta brasileiro. Conta-se que ele escreveu um longo poema dedicado à mãe de Jesus nas areias da praia de Iperoig, nome antigo de Ubatuba, no litoral paulista. Diz a tradição, quase ou puramente lendária, que Anchieta teria escrito esse poema com o auxílio de um cajado ou caniço. Pelo menos é assim que o representam em pinturas, como a imaginada por Cândido Portinari, em pelo menos duas versões.

Quando ocorreu a transferência da sala do Conselho Pleno do Conselho Estadual de Educação do Paraná (CEE/PR) do segundo para o andar térreo, alguém colocou na parede frontal o retrato de Tiradentes, que faz parte de nosso acervo. Imediatamente imaginei que o lugar teria que ser ocupado pelo patrono da sala, José de Anchieta. E decidi pintar um quadro que significasse a homenagem física, uma vez que já havia estudado sua figura histórica, quando publiquei um ensaio em meu blog de poesia. Imaginei o Anchieta poeta, o Anchieta educador, o Anchieta desbravador, o Anchieta pacificador – todos estes mais humanos que o Anchieta taumaturgo, como grande parte da população brasileira o considera. Nas facetas descritas, admiro o Anchieta poeta, que desfiava as línguas aprendidas em imensos e sensíveis poemas. Talvez o primeiro poeta brasileiro, ou a desenvolver a arte da poesia sob o sol tropical de Pindorama.

José de Anchieta nasceu em San Cristobal de La Laguna, em Tenerife, uma das sete ilhas do arquipélago das Canárias, Espanha, em 19 de março de 1534, portanto há exatos 485 anos. José foi o nome escolhido por ter nascido no dia de São José, no calendário cristão.

Pertenceu a uma família nobre de 12 irmãos, um dos quais também seguiu o sacerdócio. Sua mãe era natural das Ilhas Canárias, filha de judeus cristãos-novos. Seu pai, um nobre basco. O avô materno, Sebastião de Llarena, era um judeu convertido do Reino de Castela. Mas José de Anchieta abandonou suas origens ao escolher uma vida missionária.

Em 1551 foi estudar em Coimbra, Portugal, local onde teve o primeiro contato com a Companhia de Jesus, por meio de Francisco Xavier, um dos fundadores da ordem. Já aos 17 anos definiu sua vida religiosa. Na Companhia fundada recentemente por Inácio de Loyola, com quem Anchieta tinha laços de parentesco, fez um noviciado exigente, e mesmo com a saúde frágil adotou seus votos de castidade, pobreza e obediência.

Em 1553, com apenas 19 anos, foi enviado para o Brasil com missão evangelizadora. Mas deveria continuar seus estudos, pois ainda não era sacerdote. Estudava Filosofia, Teologia, em meio a seu trabalho catequista, dando aulas e conhecendo melhor o povo indígena. Para melhor evangelizar, respeitava a cultura dos índios e procurou aprender a língua Tupi-Guarani. E foi além: estruturou gramaticalmente o idioma dos índios, ao escrever um vocabulário, uma gramática e diversos opúsculos para os evangelizadores. Conhecia muito bem o Latim, o Espanhol e o Português, o que lhe facilitou a abertura ao trabalho literário. Hoje é considerado o iniciador da poesia e da dramaturgia brasileiras, deixando cantos piedosos, poemas e autos e diálogos ao estilo de Gil Vicente, espalhados entre os primeiros colégios brasileiros fundados pelos Jesuítas, a partir de São Paulo.

Suas cartas, enviadas a Portugal, inclusive algumas endereçadas a Inácio de Loyola, se tornaram fonte preciosa para o registro da história brasileira daquela época, além de contribuições para o estudo da fauna, da flora e da ictiologia local e da coleta que fez sobre aspectos etnológicos e folclóricos.

Mas nem tudo era paz nas relações com os habitantes da nova terra. Mais ao interior viviam os Tamoios, povo bravio, que trariam dificuldades aos trabalhos de aproximação. Nesse sentido, foi fundamental a sua tarefa como intérprete de Manoel da Nóbrega, seu chefe provincial, que procurava salvar da destruição as primeiras colônias do litoral paulista.

Nessa ocasião, permaneceu vários meses preso, como refém dos indígenas, para facilitar o trabalho de Nóbrega. Foi nessa situação que teria escrito o seu poema A compaixão e o pranto da Virgem na morte do Filho, primeiro em Latim (De compassione et planctu virginis in morte filii), em plena praia, utilizando um bastão. Não se pode duvidar que ele possa ter utilizado a grande lousa de areia para ensinar os indígenas, escrevendo algo aqui e ali, ou mesmo para ensaiar versos.  Mas seria um ofício grandioso escrever 4172 versos – esta a medida de seu poema – na areia e guardá-los na memória para, mais tarde, transcrevê-los no papel e traduzi-lo ao Português. Milagre de um futuro santo?

Em 1566 foi enviado à Capitania da Bahia com o encargo de informar ao governador Mem de Sá sobre o andamento da guerra contra os franceses, possibilitando o envio de reforços portugueses ao Rio de Janeiro. Somente nesta época foi ordenado sacerdote, aos 32 anos de idade.

Sua admiração pelo Governador-geral, fundador do Rio de Janeiro, era grande e a ele dedicou outro enorme poema, considerado pelos exegetas como obra comparável aos poemas de Homero, por ele denominado De Gestis Mendi de Saa, ou Os feitos de Mem de Sá.

Após a expulsão dos franceses da Guanabara, Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam motivado Mem de Sá a prender, em 1559, um refugiado calvinista, o alfaiate Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”. Em 1567, Jacques Le Balleur foi preso e conduzido ao Rio de Janeiro para ser executado. Porém o carrasco teria se recusado a executá-lo ou teve dificuldades para fazê-lo prontamente. Diante do fato e talvez até movido por piedade, Anchieta o teria estrangulado com suas próprias mãos. Essa história foi bastante discutida durante o processo de canonização de Anchieta. O episódio é contestado como apócrifo pelo maior biógrafo de Anchieta, o padre jesuíta Hélio Viotti, com base em documentos que, segundo o autor, contradizem a versão. Investigações históricas, baseadas em documentos da época (correspondência de Anchieta e manuscritos de Goa) corroboram essa versão absolvedora de Anchieta, quando revelam que Balleur não morreu no Brasil. Teria sido conduzido a Salvador, na capitania da Bahia, e dali mandado a Portugal, onde teve o seu primeiro processo concluído em 1569. Em um segundo processo, no Estado Português da Índia, foi finalmente condenado pelo tribunal da Inquisição de Goa, em 1572.

Anchieta dirigiu o Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro por três anos, de 1570 a 1573. Em 1569, fundou a povoação de Reritiba (ou Iriritiba), atual Anchieta, no Espírito Santo. Outra ação memorável da vida de Anchieta é a fundação da cidade de São Paulo pelo grupo de jesuítas que ele comandava, ao lado de Manoel da Nóbrega, a 25 de janeiro de 1554. Com o objetivo de catequizar os índios que viviam na região, os jesuítas ergueram um barracão de taipa de pilão, em uma colina alta e plana, localizada entre os rios Tietê, Anhangabaú e Tamanduateí, com a anuência do cacique Tibiriçá, que comandava uma aldeia de guaianases nas proximidades.

Em 1577 José de Anchieta foi nomeado Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, função que exerceu por dez anos, até sua substituição, a pedido, em 1587. Retirou-se para Reritiba, mas teve ainda de dirigir o Colégio dos Jesuítas em Vitória, no Espírito Santo. Um equívoco histórico levou Anchieta a ser considerado o primeiro professor brasileiro. Mas esse mérito pertence a um colega seu, chegado ao Brasil antes dele, em 1549, com Tomé de Souza, que desembarcou na Bahia com a primeira missão jesuítica. Era Vicente Rijo, português, nascido no ano de 1528, em Sacavém, nas proximidades do rio Tejo, e falecido no Brasil, em 1600. Vicente rijo é historicamente considerado como o primeiro mestre-escola do Brasil, fundador de uma pequena escola na Bahia, por volta de 1549. Conviveu com Anchieta por algum tempo, quando se trasladou para a região hoje ocupada pelo Rio de Janeiro e o Espírito Santo.

Em 1595, José de Anchieta obteve dispensa das funções de Provincial e conseguiu retirar-se definitivamente para Reritiba, onde faleceu, em 1597. Seu corpo foi sepultado em Vitória. Beatificado em 1980 pelo papa João Paulo II e canonizado em 2014 pelo papa Francisco, é conhecido, no mundo católico, como o Apóstolo do Brasil.

Volto à reflexão inicial: Anchieta não foi o primeiro poeta brasileiro, mas o certamente o autor do primeiro poema aqui composto. Outros poetas ter-lhe-ão sucedido. A história registra, em primeiro lugar, somente o nome de Gregório de Matos Guerra, nascido em Salvador – BA, em 1636 e falecido no Recife – PE, em 1695.

A Presidente do do Conselho Estadual de Educação, Conselheira Maria das Graças Figueiredo Saad, e o ex-Presidente Oscar Alves, descerram quadro de Anchieta, com o autor, Cleto de Assis

E finalizo com uma pergunta decorrente: qual foi o primeiro livro escrito no Brasil? Muitos preferem entregar o mérito ao primeiro libro publicado no Brasil, que foi “Marília de Dirceu” escrito em Portugal, pelo poeta Tomás Antônio Gonzaga, luso-brasileiro nascido na cidade do Porto, em Portugal. Mas os versos de Gonzaga somente chegaram ao prelo em 1792, em Lisboa, quando o poeta já cumpria o exílio em Moçambique, por sua participação da Inconfidência Mineira. no Brasil. A bem da verdade, o primeiro livro escrito no Brasil, embora publicado na Europa, foi a gramática de José de Anchieta – “Arte da Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil” –  que, junto com uma versão da figura de Anchieta, entrego à Presidente Maria das Graças Figueiredo Saad. Não esperem ver um retrato clássico ou quase fotográfico do jesuíta luso-brasileiro, homenageado com seu nome nesta sala do Conselho Estadual de Educação do Paraná. Não existem registros iconográficos de sua pessoa física, apenas a imaginação de alguns pintores, que lhe deram a imagem de uma pessoa combalida, de cabelos grisalhos e já com a doença que o distanciou das praias brasileiras a tomar conta do corpo e do espírito. Pensei em Anchieta como o primeiro grande comunicador do solo brasileiro, mais importante até do que Pero Vaz e Caminha, escrivão do primeiro relatório sobre as terras de Santa Cruz. Pensei em Anchieta como educador, razão porque recebeu a homenagem do Conselho Estadual de Educação do Paraná. Pensei em Anchieta em sua visão humanizante dos índios brasileiros, em uma época em que se discutia se os indígenas tinham alma. Fui ao encontro de uma alegoria, baseado em um retrato pintado por Oscar Pereira da Silva, em 1920, e que pertence ao acervo do Museu Paulista da USP. Pensei em um Anchieta que cumpria o sonho registrado no último verso do poema dedicado a Maria, aqueles lendariamente escritos nas areias de Iperoig:

Vivere dulce dies, hic mihi dulce mori! Viver e morrer com prazer, este é o meu grande desejo.