Vicente Gerbasi, o Poeta de Canoabo

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O poeta Francisco Pérez Perdomo (Prêmio Nacional de Literatura da Venezuela em 1980), escreveu que “Vicente Gerbasi é considerado, unanimemente, pela crítica venezuelana, como uma das máximas figuras de nossa poesia. E, de fato, o é. Assim o expressam e o avalizam os valores intrínsecos e específicos de sua obra e a projeção inusitada da mesma dentro e fora das fronteiras do país, nos últimos anos. Este amplo conhecimento se tem traduzido e recolhido em um balanço crítico também extenso e esclarecedor de sua grande obra poética… Em Los Espacios Cálidos (1952) Vicente Gerbasi alcança, como nunca até então, uma poesia impregnada de um severo ascetismo em relação à elaboração de suas imagens. Poesia desnuda e encantada. Ao leitor, este livro se impõe com uma aparente facilidade que não deixa de desconcertá-lo um pouco. Tal economia de meios é também uma dura e terrível prova para o poeta. Com sua aparente facilidade, Gerbasi alcançou uma singeleza muito difícil de atingir e à qual somente podem chegar poucos escritores”.

Vicente Gerbasi, além de consagrado autor venezuelano, teve, durante vinte e cinco anos de sua vida, uma intensa carreira diplomática e não menos prodigiosa aventura poética, da qual resultaram quase vinte livros, alguns dos quais traduzidos em diversos idiomas.

No final da década de 80, quando eu residia em Brasília, conheci seu filho, Fernando Gerbasi, então embaixador da Venezuela no Brasil. Coincidentemente, na Embaixada da Colômbia também havia um diplomata filho de poeta, o ministro-conselheiro Ramiro Carranza. Seu pai, Eduardo Carranza, era também considerado um dos luminares da poesia de seu país. Com base nesse encontro de semelhanças, organizamos a Fundação Cultural Nossamérica, com o objetivo de divulgar a literatura de línguas espanhola e portuguesa, especialmente no campo da poesia, e promover o intercâmbio e a difusão cultural entre os países da chamada cultura iberoamericana. Foram publicados dois livros, o primeiro uma antologia de Eduardo Carranza, e o segundo, um dos mais famosos livros de Gerbasi, “Los Espacios Cálidos”. Fiz a versão em português do último, lançado em 1988, com a presença do autor. Foi à época do governo de José Sarney, que esteve presente no evento, realizado na embaixada da Venezuela.
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Vicente Gerbasi com o presidente Sarney e o tradutor de Los Espacios Cálidos, Cleto de Assis

Mas a Fundação foi apenas mais uma experiência cultural com dois frutos. O entusiasmo inicial não nos havia alertado que vida de diplomata é vida de cigano, com acampamentos efêmeros. Fernando Gerbasi foi transferido, logo depois, para Caracas e, a seguir, para a embaixada da Venezuela. Ramiro Carranza voltou a Bogotá, deixou a carreira diplomática e foi nomeado diretor do serviço de Migração do DAS – Departamento Administrativo de Segurança. Em setembro de 2001, quando estava em sua chácara, perto de Bogotá, foi sequestrado por um grupo das FARC e levado a um cativeiro na selva, onde permaneceu até 2003. No início daquele ano, uma operação do exército colombiano cercou o acampamento das FARC e Ramiro, então muito doente, seria transferido para outro cativeiro, mas não resistiu. Segundo um guerrilheiro, preso mais tarde, Ramiro ficou doente em 2002, com uma gripe muito forte, que se transformou em pneumonia.

“Sem um menor assomo de caridade ou tristeza e com uma frieza que beira o cinismo” – segundo testemunhas que ouviram seu depoimento – o guerrilheiro, que teria sido carcereiro de Ramiro durante o período de aprisionamento junto às Farc – contou como foram os últimos dias do prisioneiro:  “El camarada ‘Flaminio’ se cargó a Carranza. De Quetame se llevó a El Calvario y ahí lo recibió el ‘Zarco’ y luego en San Juanito lo tuvimos como 10 meses, pero empezó a enfermarse… así pasaba con la mayoría de los que llegaban allá, el clima los azotaba. Además le dolían las piernas y la espalda; estaba muy enfermo, su suerte era morirse. Había días que no recibía comida y yo creo que los pulmones los tenía reventados. Ese hombre estaba enfermo del alma, porque lloraba mucho en las noches”. (“O camarada ‘Flaminio’ se encarregou de  Carranza. De Quetame [a chácara de Ramiro] ele foi levado a El Calvario e aí foi recebido por ‘Zarco’ e depois o mantivemos em San Juanito por volta de 10 meses, mas começou a ficar doente… assim se passava com a maioria dos que chegavam lá, o clima os açoitava. Além disso, lhe doíam as pernas e as costas; estava muito enfermo, teve sorte em morrer. Havia dias que não recebia comida e eu creio que os pulmões dele estavam arrebentados. Esse homem estava doente da alma, porque chorava muito à noite”.)

Sem ainda saber sobre  a “sorte” de seu irmão, a escritora, poeta e jornalista María Mercedes Carranza, abalada com o sequestro e frustrada pelo insucesso de sua campanha em favor da libertação de Ramiro, preferiu suicidar-se, em julho de 2003.  María Mercedes havia editado uma antologia poética de seu pai em 1985.

Perdoe-me quem me lê por este intermezzo trágico. Mas Ramiro fez parte da história da Fundação NossAmérica (aliás, o nome foi idéia sua) e, portanto, também teve participação na edição de Gerbasi em português. Aproveito também para prestar uma homenagem a um amigo com quem sonhei, em tertúlias agradabilíssimas, com a (re)união da América Latina, um dia irmanada em um só idioma.

E voltemos ao poeta de Canoabo. Meu encontro pessoal com Vicente Gerbasi foi marcante. Eu já havia relatado, na apresentação do livro (prefaciado pelo escritor gaúcho Sérgio Faraco) a “descoberta e revelação de Vicente Gerbasi”, onde tentei descrevê-lo como o “poeta dos sentidos”: Especialmente em Os Espaços Cálidos, verifica-se a constante ato de expor-se diante da natureza, dividindo seu tempo em três partes bem distintas (mas não medidas pelo tempo real). Essa divisão também acontece em composições mais longas, seguindo a mesma ordem, estrofe por estrofe. No primeiro tempo, o poeta situa-se no espaço, determinando o local de sua observação ou a paisagem. A seguir, deixa transbordar os sentidos, recolhendo impressões, dos vários elementos que compõem o mundo observado, por mais estreito que seja, limitado por paredes ou abertos ao horizonte. No caso específico deste livro, as visões vão sendo retiradas do baú de memórias, filtradas por associações com as imagens do presente. Quase como numa autobiografia, a paisagem de suas aldeias, nesse tempo analítico, brilha nos olhos do menino que se encanta com tudo o que sente de novo, mesmo quando interpretada pela visão do homem maduro, já com seus filhos lhe chegando aos joelhos.

No terceiro e último tempo, Gerbasi retoma a solidão da paisagem e retorna à condição de observador estático, que só concede a si mesmo ou às coisas que o cercam movimentos lentos e sombrios.

Coincidindo com os simbolistas, utiliza a magia da palavra, como acreditava Mallarmé, fazendo-a expressão de sua natureza mais íntima. E, como queria Rimbaud, o peta torna-se um alquimista, transmutando os sentidos em coisas e as coisas em sentidos, e estes passam a assumir outras funções que não as cinco do comum dos humanos. O poeta vê dentro e além das coisas. Converte-se em vidente. O Vidente Gerbasi.

Depois de nosso encontro em Brasília, estivemos juntos novamente em Caracas, em março de 1991, onde fui entrevistá-lo para uma possível edição de mais três livros seus, que ficou apenas em projeto, pois o patrocínio prometido por uma empresa seria retirado, mais tarde. Foram alguns dias de incrível encantamento, junto a sua família. Consuelo, sua esposa, ainda vivia e conheci seus outros filhos, Beatriz e Gonzalo. Apesar dos cuidados de Consuelo, extremamente atenta à saúde de seu marido, ele levou-me a uma tasca espanhola, no meio de uma tarde, e ali me prendeu com deleitáveis narrativas sobre sua vida. Foram horas de uma marcante experiência para um brasileiro enfeitiçado pelas palavras do maior poeta venezuelano.
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Em sua casa, em Caracas, Vicente Gerbasi mostra-me um “cometa” com as cores da bandeira venezuelana

Também conheci, naquela ocasião, o poeta e fotógrafo Enrique Hernández D’Jesus, de quem trouxe farto material fotográfico sobre Gerbasi. Em uma noite de novas e encantadoras conversas, Vicente brindou-me com um autógrafo especial, no qual rabiscou um retrato meu e recordou, com afeto, minha descrição sobre os morros pobres de Caracas, vistos da janela do avião, semelhantes a presépios natalinos. Assim ele fazia poemas instantâneos, também emoldurando fotos com medida e poesia certas.
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Em seu autógrafo,  Vicente Gerbasi escreveu: “A mi hermano Cleto de Assis – Los ángeles en las nubes te dijeron: ‘Ahí está Caracas / en la pobreza / de un pesebre / iluminada en la pobreza.’ / ¿Donde estará la estrella?”

Biografia

Quase me detenho a fazer, mais uma vez, um resumo biográfico do poeta. Mas lembrei-me que estamos na Internet e há tantas biografias mais completas para quem quiser melhor conhecê-lo. Remeto o leitor ao endereço ímpar – http://www.vicentegerbasi.net/cronologfram.htm –  do site mantido por sua filha Beatriz e seu marido Kristen Drastrup.
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Como ilustração, a casa onde Vicente Gerbasi nasceu no dia 2 de junho de 1913, em Canoabo, estado de Carabobo, Venezuela. Foi recolhida em um site editado em sua homenagem, bem diferente da Canoabo de hoje. Como escrevi nas notas introdutórias de Os Espaços Cálidos, a Canoabo do menino Vicente, vivamente esposta em seus poemas, simplesmente não existe, quase à maneira da Macondo de García Márquez. Inútil procurá-la nos mapas da Venezuela setentrional, onde deveria estar, porque “o tempo muda tudo”. Porque Canoabo, a velha e bela, incorporou-se em Vicente Gerbasi. Canoabo é Gerbasi.

Alguns poemas de

OS ESPAÇOS CÁLIDOS

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TE AMO, INFANCIA

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Foto de Enrique Hernández D’Jesus, emoldurada com autógrafo de Gerbasi

Te amo, infancia, te amo
porque aún me guardas un césped con cabras,
tardes con cielos de cometas
y racimos de frutas en los pesados ramajes.

Te amo, infancia, te amo
porque me regalaste la lluvia
que hace crecer los riachuelos de mi aldea,
porque mi diste a mis ojos un arcoiris sobre 1as colinas.

¿Aún existen los naranjos
Que  plantó mi padre en el patio de la casa,
el horno donde mi madre hacia el pan
y doradas roscas con azúcar y canela?

¿Recuerdas nuestro perro que jugando
me mordía las piernas y las manos?
Nacían puntos de sangre, un pequeño dolor,
pero todo pasaba pronto con el sabor de las guayabas.

Te amo, infancia, te amo
porque eras pobre como un juguete campesino,
porque traías los Reyes Magos por la ventana.

Un día llevaste a la puerta de mi casa
un hombre de barba que hacia bailar un osa a golpes de tambor,
y otro día le dijiste a mi padre que me regalara un asno negro.
¿Recuerdas que tú y yo lo bañábamos en el río?
¿Recuerdas que había una penumbra de bambú y helecho?

Te amo, infancia, te amo
porque me ponías triste cuando estaba enfermo,
cuando mi madre hablaba de su tierra lejana

¿Recuerdas? Una vez me mostraste un eclipse a las diez de la mañana
y las aves volvieron a dormir.
¿Existe aún aquel niño sin parientes
que un día bajó de la montaña
y me pidió el pan que yo comía en la plaza de la aldea?

Te amo, infancia, te amo
porque me dabas panales de miel en la casa de la escuela,
porque me llevabas al sitio donde vivían las vacas.

Te amo, infancia, te amo
porque me regalaste mi aldea con su torre,
y sus días de fiesta con toros y jinetes y cintas
y globos de papel y guitarras campesinas
que encendían las primeras estrellas más allá de los árboles.

Te amo, infancia, te amo
porque te recuerdo a cada instante,
en el comienzo del día y en la caída de la noche, en el sabor del pan,
en el juego de mis hijos,
en las horas duras de mis pasos,
en la lejanía de mi madre
que está hecha a tu imagen y semejanza
en la proximidad de mis huesos.

AMO-TE, INFÂNCIA

Amo-te, infância, te amo
porque ainda me guardas um gramado com cabras,
tardes com céus de pandorgas
e cachos de frutas nas pesadas ramagens.

Amo-te, infância, te amo
porque me deste a chuva
que faz crescer os riachos de minha aldeia,
porque deste a meus olhos um arcoíris sobre as colinas.

Ainda existem as laranjeiras
que plantou meu pai no pátio da casa,
o forno onde minha mãe fazia o pão
e douradas roscas com açúcar e canela?

Recordas nosso cão que, brincando,
me mordia as pernas e as mãos?
Nasciam pontos de sangue, uma pequena dor,
mas tudo passava rápido com o sabor das goiabas.

Amo-te, infância, te amo
porque eras pobre como um brinquedo camponês,
porque trazias os Reis Magos pela janela.

Um dia levaste à porta de minha casa
um homem de barba que fazia bailar um urso a golpes de tambor,
e outro dia disseste a meu pai que me desse um asno negro.

Recordas que tu e eu o banhávamos no rio?

Recordas que havia uma penumbra de bambu e samambaia?

Amo-te, infância, te amo
porque me punhas triste quando estava enfermo,
quando meu pai me falava de sua terra distante.
Recordas? Uma vez me mostraste um eclipse às dez da manhã
e as aves voltaram a dormir.

Existe ainda aquele menino sem parentes
que um dia baixou da montanha
e me pediu o pão que eu comia na praça da aldeia?

Amo-te, infância, te amo
porque me davas favos de mel na casa da escola,
porque me levavas ao sítio onde viviam as vacas.

Amo-te, infância, te amo
porque me deste minha aldeia com sua torre,
e seus dias de festas com touros e ginetes e fitas
e balões de papel e violas sertanejas
que acendiam as primeiras estrelas além das árvores.

Amo-te, infância, te amo
porque te recordo a cada instante,
no começo do dia e na caída da noite,
no sabor do pão,
na brincadeira de meus filhos,
nas horas duras de meus passos,
na lonjura de minha mãe
que está feita à tua imagem e semelhança
na proximidade de meus ossos.

EN EL FONDO FORESTAL DEL DIA

El acto simp1e de la araña que teje una estrella en la penumbra,
el paso elástico del gato hacia la mariposa,
la mano que resbala por la espalda tibia del caballo,
el olor sideral de la flor del café,
el sabor azul de la vainilla,
me detienen en el fondo del día.

Hay un resplandor cóncavo de helechos,
una resonancia de insectos,
una presencia cambiante del agua en los rincones pétreos.

Reconozco aquí mi edad hecha de sonidos silvestres,
de lumbre de orquídea,
de cálido espacio forestal,
donde el pájaro carpintero hace sanar el tiempo.

Aquí el atardecer inventa una roja pedrería, una constelación de luciérnagas
una caída de hojas lúcidas hacia los sentidos,
hacia el fondo del día,
donde se encantan mis huesos agrestes.


NO FUNDO FLORESTAL DO DIA


O ato simples da aranha que tece uma estrela na penumbra,
o passo elástico do gato rumo à borboleta,
a mão que resvala pelas costas mornas do cavalo,
o odor sideral da flor do café,
o sabor azul da baunilha,
me detêm no fundo do dia.

Há um resplendor côncavo de samambaias,
uma ressonância de insetos,
uma presença cambiante da água nos rincões pétreos.

Reconheço, aqui, minha idade feita de sons silvestres,
de lume de orquídea,
de cálido espaço florestal,
onde o pica-pau faz soar o tempo.

Aqui o entardecer inventa uma rubra pedraria,
uma constelação de vagalumes
uma queda de folhas lúcidas rumo aos sentidos,
rumo ao fundo do dia,
onde se encantam meus ossos agrestes.

DOCUMENTO DE LOS SENTIDOS

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Gerbasi acaricia sonhos de infância, no dia de minha visita a sua casa, em Caracas

He aquí un propósito de alucinado,
un paso más a orillas del abismo,
hacia el fondo agreste de la música,
donde duerme una pastora rodeada de yerbas del año:
hacer el relámpago sobre materiales de sombra,
iluminar hongos en rincones forestales,
despertar el agua en su silencio de serpientes azules.

He aquí que soy un habitante del sonido, de la humedad, del hueso,
en un espacio turbio de mercado,
donde se derraman las manzanas y las piñas,
donde brilla el ojo de la sardina.

Había dejado atrás a mis padres recogiendo bellotas en el crepúsculo,
vistiendo espantapájaros en una luz de confín.
Mis hijos vinieron de la sombra pastoreando conejos,
recogiendo estrellas en el césped.

¿Dónde estaba yo cuando descubrí la música
que hace desbordar las flores del día como en un espejo?

Mi edad había iniciado una cacería de venados bajo las palmas,
había guiado el entierro de un labriego
hacia el paraje lúcido de las cigarras.

¿Hacia dónde iba yo cruzando las noches del bambú
y la luz de los gavilanes?

Entré a la ciudad oyendo las campanas,
mirando las ventanas abiertas en un mes claro.

El perfil resume a los arcángeles, despierta estatuas en el crepúsculo.
La ciudad después de la lluvia
es el espejo oscuro de los mendigos.
He aquí un propósito de alucinado:
fundar un espacio de lumbres, de escarabajos, de rostros,
en el documento de los sentidos.

DOCUMENTO DOS SENTIDOS


Eis aqui um propósito de alucinado,
um passo a mais à beira do abismo,
rumo ao fundo agreste da música,
onde dorme uma pastora rodeada de ervas do ano:
fazer o relâmpago sobre materiais de sombra,
iluminar cogumelos em rincões florestais,
despertar a água em seu silêncio de serpentes azuis.

Eis aqui que sou um habitante do som, da umidade, do osso,
em um espaço turvo de mercado,
onde se derramam as maçãs e os abacaxis,
onde brilha o olho da sardinha.

Havia deixado atrás meus pais recolhendo bolotas no crepúsculo,
vestindo espantalhos em uma luz de confins.
Meus filhos vieram da sombra pastoreando coelhos,
recolhendo estrelas no gramado.

Onde estava eu quando descobri a música
que faz desbordar as flores do dia como em um espelho?

Minha idade havia iniciado uma caçada de cervos sob as palmas,
havia guiado o enterro de um lavrador
rumo à paragem lúcida das cigarras.

Para onde ia eu cruzando as noites do bambu
e a luz dos gaviões?

Entrei na cidade ouvindo os sinos,
olhando as janelas abertas em um mês claro.

O perfil resume os arcanjos,
desperta estátuas no crepúsculo.
A cidade, depois da chuva,
é o espelho escuro dos mendigos.

Eis aqui um propósito alucinado:
fundar um espaço de lumes, de escaravelhos, de rostos,
no documento dos sentidos.

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Saudação a Vicente

Oração-poema lido por Cleto de Assis em 13 de outubro de 1988, no lançamento da edição brasileira de Os Espaços Cálidos.


Senhor Presidente da República Federativa do Brasil José Sarney, Senhores Ministros de Estado, Senhores Embaixadores, Senhoras e Senhores:

Ainda não refeito da emoção de ter conhecido pessoalmente este mestre da poesia latino-americana contemporânea, Vicente Gerbasi,cumpre-me saudá-lo, neste momento, revivendo a grata tarefa que enfrentei, ao traduzir para o português um de seus mais marcanteslivros, Os espaços cálidos. Espaços criados muito cedo ante os olhos do menino Vicente, ainda cálidos em sua alma grande, multiplicadospermanentemente em seu vasto coração. Espaços que pude conhecer melhor ontem, quando, momentos após sua chegada à Brasília, elechamou-me de amigo e irmão.

O livro aí está, parte do projeto da Fundação Cultural NossAmérica. Melhor que falar sobre ele, é recomendar a sua leitura, que já fiz porinúmeras vezes, ao traduzí-lo, ao revisá-lo, ao revisitá-lo quase diariamente durante longo tempo. Sempre desvendando novos mistériosocultos em cada palavra do mago venezuelano.

Quero repetir, entretanto, que, a par do grande desafio que foi revelar Vicente Gerbasi, pela primeira vez, à língua portuguesa, abraceitambém orgulho e honra por ter realizado esta tarefa que complementa mais um passo em direção ao grande sonho que há muito alimento- a integração latino-americana.

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Meu querido Vicente Gerbasi

Perdão, Poeta.
Ontem, eu procurei jasmins para saudar-te.
Mas a primavera de Brasília ainda não os descobriu.
Colhemos orquídeas, mas orquídeas não bastam.
Algum dia, por certo, colherei também jasmins
e os jasmins de minha terra bastarão para saudar-te,
porque os poetas merecem coroas e não apenas palavras.
Mas hoje me pedem palavras.
E eu, que tanto caminhei entre as palavras do Poeta,
conhecendo seus encantamentos,
adivinhando seus sonhos, enfeitiçado por sua magia,
não creio que elas possam saudar-te corretamente.
Sei que as palavras pertencem a ti e a todos os poetas.
Por isso, eu te peço perdão.
Bastaria, talvez, dizer que a homenagem melhor que poderíamos prestar-te
está contida na emoção de mostrar teus versos
impressos em nossa língua,no mesmo dia em que também lembramos a viagem sem retorno de Manuel Bandeira, nosso poeta maior.
Mas nada disso basta.
Porque estás aqui, diante de nós, palpável,
encantando nossos olhos e nossos corações.
E isto também é magia que as palavras não explicam.
Obrigado, Poeta, por existires
e teres feito o mundo melhor e mais belo com tua vida
e teres trazido a chuva de tua poesia
neste tempo que seca as almas
e quase detém os ventos da esperança.
Obrigado por tua presença entre nós,
Vicente Gerbasi.
Obrigado por dar-nos a conhecer o menino de Canoabo,
que ainda vive no brilho de teus olhos
e na inquietação de tua mente.
Teu livro, para nós, é um grande presente.
E o tomamos nas mãos,
como pão e vinho da comunhão entre dois povos
unidos e separados por uma grande selva
e por dois idiomas tão semelhantes.
E com este pão, que é teu corpo
vindo dos cacauais e dos laranjais de Canoabo, a velha e bela,
e com este vinho, que é teu sangue derramado gota a gota
na insônia de um pequeno quarto de paredes caiadas,
iluminado por uma lâmpada de óleo, sob um Crucifixo,
tu alimentas nosso espírito
e abres as janelas de nossa paisagem comum,
para que venezuelanos e brasileiros aprendam,
nos teus versos,
que temos uma só pátria – América,
e uma só língua – a poesia.

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Na fotopoema que ilustra o texto, Vicente Gerbasi escreveu:
Paisaje
La pradera se prolonga
al otro lado del río.
Allá los árboles parecen
pintados por un niño.
Vicente

Mais um fotopoema

FotopoemaCaballoCósmico

La sombra de un caballo cósmico pintado
por Loncho González me lleva
a la infancia de Beatriz que llevaba
al mar su caballo de juguete. — Vicente Gerbasi

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Petra

Petra, cinceladas fueron tus montañas de piedra multicolor,
y de tus montañas surgieron columnas,
escalinatas, viviendas, bancos, templos, panaderías.
En ti los siglos reverberan en el sol ardiente.
En ti la noche suena con aullidos de chacales.
En ti los aerolitos caen como serpentinas en un cementerio.
Tu Palacio de Justicia es una tumba.
Cada una de tus casas
perforaradas en los colores es una tumba.
Petra, eres un cráneo de piedra abierto al azul caliente.
Petra, eres semejante a la tumba de la muerte.
Tus aposentos, tus cocinas, tus columnas, tus estatuas
siguen muriendose en tu imantada intemperie.
(Viajero, si vas a Petra,
cuidate de la muerte.)

En Petra está muerto el tiempo.

Petra, cinzeladas foram tuas montanhas de pedra multicor,
e de tuas montanhas surgiram colunas,
escadarias, vivendas, bancos, templos, padarias.
Em ti os séculos reverberam no sol ardente.
Em ti a noite soa com uivos de chacais.
Em ti os aerólitos caem como serpentinas em um cemitério.
Teu Palácio da Justiça é uma tumba.
Cada uma de tuas casas
perfuraradas nas cores é uma tumba.
Petra, és um crânio de pedra aberto ao azul escaldante.
Petra, és semelhante à tumba da morte.
Teus aposentos, tuas cozinhas, tuas colunas, tuas estátuas
continuam a morrer em tua imantada intempérie.
(Viajante, se vais a Petra,
cuida-te da morte.)

Em Petra está morto o tempo.

Do livro De Otras Geografías, em Los Colores Ocultos. Caracas: Monte Avila Editores, 1985
Tradução e ilustração: C. de A.

12 Respostas para “Vicente Gerbasi, o Poeta de Canoabo

  1. manoel de andrade

    Parabéns Cleto, pela Biblioteca Virtual de Poesia, um espaço paralelo que somente a tua criatividade poderia nos brindar. Teu site está chegando com tudo e pelo jeito não vai sobrar pra mais ninguém. Abra o ôlho Vidal…

  2. Maria Vieira da Cunha

    Poesias lindas do Vicente Gerbasi.

    Suas poesias são obras muito lindas, com sentimentos profundos, lembram muito nossa terra natal, quando a deixamos para se aventurar em outras paragens.

    Profundo respeito a esse poeta maravilhoso.

    Confesso: não o conhecia.

    Obrigada

    MARIA

  3. Maria Vieira da Cunha

    Quero muito receber mais poesias de FERNANDO PESSOA.

    Agradeço se for atendida.

    MARIA

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  6. Olá, Cleto. Um belo espaço esse aqui. Tive o prazer de ler Los Espacios Cálidos, pois há um exemplar na biblioteca municipal de minha cidade – um belo livro, com certeza. Parabéns!

  7. Cleto,

    Que aula você nos dá aqui da poesia de Vicente Gerbasi.

    “Os poetas são verdadeiros filhos dos deuses”, disse-me FERNANDO BRAGA DOS SANTOS. Fernando Braga que me deu aula de Poesia quando eu morei em Valparaíso de Goiás, perto de Brasília.

    Grande abraço.

  8. Querido Cleto:
    Tantos años sin saber de ti por lo que me emocionó hacerlo navegando en Internet. No sabía lo de Ramiro y su trágica muerte. De Brasil me fuí para Bogotá como Embajador, donde estuve hasta el 93 pero luego regresé de nuevo a Bogotá del 97 al 2000. En esa ocasión me encontré varias veces con Ramiro que ya cumplía funciones en el DAS y nunca imaginé que terminaría en manos de la barbarie guerrillera.
    Todo lo que escribes sobre mi padre y su poesía es extraordinariamente bello. Gracias.
    Recibe un fraternal abrazo de quien nunca te ha olvidado.
    Fernando

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  11. Belíssima homenagem. Gracias por socializar seus versos. Abçs

  12. Adorei…. É tão bom saber que ainda há poetas neste mundo louco…;por favor, não deixe morrer a poesia… Só com ela o homem sonha e o mundo ficará melhor. UM ABRAÇO.
    Vera Lucia

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