Arquivo do mês: fevereiro 2010

Homenagem aos 71 anos de morte de Antonio Machado

No último dia 22 de fevereiro completaram-se 71 anos da morte de Antonio Cipriano José María y Francisco de Santa Ana Machado Ruiz, mais conhecido como Antonio Machado (nascido em Sevilha, Espanha, a 26 de julho de 1875 e morto em Collioure, França, a 22 de fevereiro de 1939). Poeta, pertencente ao modernismo espanhol, Machado é hoje um poeta universal. (Veja mais em Os caminhos de Antonio Machado e em Nova visita de Antonio Machado ).

O poema que hoje publico, em sua homenagem, foi lembrado por Manoel de Andrade, há algum tempo. E ele permaneceu no computador, em sua versão original, desafiando meu atrevimento de versejador que temia não encontrar uma versão ao português apropriada a essa confissão biográfica do célebre poeta espanhol. Afinal, tradução ou versão poética não é apenas transliteração. Na realidade, traduzir poesia é quase um ato mediúnico, no qual o tradutor busca incorporar o espírito do poeta e sentir minimamente como ele, viver em suas paisagens, respirar o mesmo ar, abraçar pessoas queridas. Pressupõe, como diz Geir Campos, um íntimo diálogo com o “autor da obra traduzida, ao qual se credita o que possa a obra ter de positivo e belo”.

Não é à toa que os italianos brincam sobre a questão: traduttore, traditore. Como não podemos transferir para a nova língua a perfeição buscada pelo idioma original, quase sempre uma tradução fica apenas no nível de interpretação. Paulo Rónai lembra que o tradutor poético trabalha como um artesão e, por esta mesma razão, sempre acaba buscando justificações para seu trabalho complementar, pedindo o perdão do autor…

Não estou a me justificar, posto que o trabalho de ler e reescrever Machado sempre é um exercício enriquecedor. Apenas digo que para dar clareza à versão, sem macular em demasia a intenção e o sentimento do autor, muitas vezes alteramos a métrica, o ritmo e o pior entrave do poema, a rima. No caso de Retrato, poema construído em versos alexandrinos, busquei o mesmo comportamento estrutural (com alguns resvalos, por certo). Mas a maior preocupação foi de conteúdo, uma vez que não se trata de uma composição ilusória, mas de um relato autobiográfico. Portanto, sob o ferrolho da rima, procurei sentimentos assemelhados quando fui obrigado a utilizar outros substantivos, verbos e adjetivos.

O poema busca mostrar o íntimo do poeta. Na primeira estrofe, a sua origem, o seu pouso sobre a terra. Na segunda estrofe, uma definição de sua personalidade – afasta-se de características mundanas, mas qualifica-se como um homem apaixonado. Na terceira, assume uma posição política e define sua principal qualidade, como ser humano.

Nas três estrofes seguintes dispõe sobre sua condição de poeta e esboça crítica sobre a cultura literária de seu tempo. Sua confissão estética; a recusa ao modernismo reinante, para ele superficial e oco; sua independência em relação a movimentos ou classificações literárias.

Finalmente, nas três últimas estrofes a preocupação com o final e a finalidade. A grande viagem, quiçá recompensada pela paz e o diálogo com o eterno.

Nove estrofes que sintetizam uma vida. Corpo, espírito e alma. Um retrato por inteiro que se dispõe a responder as três perguntas fundamentais: de onde vim, quem sou eu e para onde vou? Corpo distante de nós há 71 anos, espírito e alma de Antonio Machado sempre presentes. (C. de A.)

Retrato

Mi infancia son recuerdos de un patio de Sevilla,
y un huerto claro donde madura el limonero;
mi juventud, veinte años en tierras de Castilla;
mi historia, algunos casos que recordar no quiero.

Ni un seductor Mañara, ni un Bradomín he sido
– ? ya conocéis mi torpe aliño indumentario? –
más recibí la flecha que me asignó Cupido,
y amé cuanto ellas puedan tener de hospitalario.

Hay en mis venas gotas de sangre jacobina,
pero mi verso brota de manantial sereno;
y, más que un hombre al uso que sabe su doctrina,
soy, en el buen sentido de la palabra, bueno.

Adoro la hermosura, y en la moderna estética
corté las viejas rosas del huerto de Ronsard;
mas no amo los afeites de la actual cosmética,
ni soy un ave de esas del nuevo gay-trinar.

Desdeño las romanzas de los tenores huecos vazio
y el coro de los grillos que cantan a la luna.
A distinguir me paro las voces de los ecos,
y escucho solamente, entre las voces, una.

¿Soy clásico o romántico? No sé. Dejar quisiera
mi verso, como deja el capitán su espada:
famosa por la mano viril que la blandiera,
no por el docto oficio del forjador preciada.

Converso con el hombre que siempre va conmigo
– ¿ quien habla solo espera hablar a Dios un día? –
mi soliloquio es plática con ese buen amigo
que me enseñó el secreto de la filantropía.

Y al cabo, nada os debo; debéisme cuanto he escrito.
A mi trabajo acudo, con mi dinero pago
el traje que me cubre y la mansión que habito,
el pan que me alimenta y el lecho en donde yago.

Y cuando llegue el día del último vïaje,
y esté al partir la nave que nunca ha de tornar,
me encontraréis a bordo ligero de equipaje,
casi desnudo, como los hijos de la mar.

Túmulo de Machado, em Collioure, França

Retrato

Minha infância são memórias de um pátio de Sevilla,
e um claro pomar onde matura o limoeiro;
a juventude, vinte anos em terras de Castilla;
minha história, casos que não lembro por inteiro.

Sequer Manãra fui, nem Bradomín eu sou
– já conheceis meu torpe alinho costumeiro? –
mas recebi a flecha que Cupido me atirou,
e amei quanto elas possam ter de hospitaleiro.

Em minhas veias corre sangue jacobino,
porém meu verso brota de manancial copioso;
e, mais que simples homem que segue seu destino,
no bom sentido da palavra, sou bondoso.

Adoro a formosura, e na moderna estética
cortei as velhas rosas do horto de Ronsard;
mas não amo os enfeites da atual cosmética,
nem sou uma ave dessas do novo gay-trinar.

Desdenho as romanças dos vazios tenores
e o coral de grilos que para a lua canta.
Fico a distinguir nas vozes os cantores
E, entre as vozes, somente uma encanta.

Sou clássico ou romântico? Não sei. Deixar queria
meu verso, como deixa o capitão sua espada:
famígera pela mão varonil que a brandia
não pelo douto ofício do forjador prezada.

Converso com o homem que sempre vai comigo
– quem fala só espera falar com Deus um dia? –;
meu solilóquio é prática com esse bom amigo
que me ensinou segredos da filantropia.

E ao fim, nada vos devo; deveis-me todo o escrito.
A meu trabalho acudo, com meu dinheiro ajeito
o traje que me cobre e a mansão que habito,
o pão que me alimenta e a cama onde me deito.

E ao chegar o dia da última viagem,
e esteja pronta a nave que nunca há de tornar,
me encontrareis a bordo livre de equipagem,
quase desnudo, tal os filhos deste mar.

______________

Notas

  • Os topônimos Sevilla e Castilla foram conservados na grafia original em benefício da rima.
  • A expressão gay-trinar não tinha, à época em que o poema foi escrito, qualquer significado sexual; provavelmente o autor se referia a sua recusa a um modernismo mais ousado. Nas primeiras estrofes da quadra, ele aceita a beleza da arte e afirma que, na estética de seu tempo e de sua arte, abandonou os velhos conceitos do poetas renascentistas, como a simbolizar sua ruptura com artistas mais antigos. Mas nem tão modernista assim, ele se opõe à cosmética de seu tempo, provavelmente se manifestando contra os artifícios de linguagem então usados pelos mais modernos. E o gay-trinar seria o canto belo, alegre, mas sem conteúdo.
  • Miguel Mañara, filantropo nascido em Sevilha (1627- 1679), filho de destacada família local.
  • Marquez de Bradomín, figura mítica da literatura espanhola, era um refinado e decadente Don Juan

Paisagem nupcial de Solivan Brugnara

Casamento / Solivan Brugnara


Minha noiva entrou
com um véu de névoa branca e fria
vinda do sul.
A grinalda feita com o calor
verde da Amazônia
e flores de maçãs mordidas.
Vestia plumagens
de um pavão branco orvalhado de pérolas.
O seu útero era adornado pelo nosso filho.
Os violinos espalharam um canto nupcial
e bandos de andorinhas evoluíram na nave
para se alimentar das notas musicais.
Os convivas cresceram, como jardins na primavera
e floriram sorrisos.
As alianças estavam
num estojo de veludo azul
sobre um pedacinho de nuvem
atadas com tranças
que eu mesmo fiz
com trinados de canários e sanhaços selvagens
colhidos em um domingo silencioso.
Gérberas vermelhas, rosas alvas
brotaram em buquês no cedro dos bancos.
Então a cerimônia juntou nossos corações
e nos deu pão com gosto de vôo de pomba.
Depois viajamos.
Era noite,
ramalhetes de raios decoravam o céu
e pedaços de nuvens
caíram sobre o carro
até nosso quarto
de mobílias feitas de perfumes
e música.
Deitamos sobre almofadas
preenchidas com sombras de gansos
e com odor róseo de sua pele,
tingimos sete dias de prazer.

Novo livro de Dante Mendonça

Àqueles que buscam a Paz

Aos combatentes de todo o mundo/Vera Lúcia Kalahari


Àqueles
cujos olhos se erguem confiantes fitando sem medo
os reinos distantes da morte,
eu venho… Com a aurora esperançosa
dos meus olhos luminosos de crente
envolvê-los
em mantos radiosos de amor.
Àqueles
de cujo peito uma onda de amargor
se espalha cruelmente,
àqueles
que procuram paz
através de nuvens de pó e trevas
levantando as mãos aos céus
numa prece a um Deus, seja ele qual for,
eu dou os meus sonhos:
todo um bosque em flor.
Àqueles
que são menos do que ovelhas
seguindo sem pastor,
que estão sentados
mirando o ar sem fazer nada,
como sacerdotes a recordar
o drama da redenção.
Àqueles que têm coração,
têm olhos florescendo
como um garoto
e lábios trementes
a ensaiar
um sorriso esperançoso,
eu dou a minha alma,
aberta como os pórticos duma catedral,
onde vós todos, homens,
amados e não amados,
conhecidos, desconhecidos,
desfilareis cantando,
bandeiras multicores
passando lado a lado,
brilhando sob as cores de mil arco-íris diferentes,
jogando fora as cargas dos canhões,
no olhar levando a alegria duma aurora,
Cabeças erguidas de entusiasmo e orgulho,
sãos e salvos
na senda dos vossos lares.

Vera Lúcia

Primeiro aniversário

No próximo dia 12 de março o Banco da Poesia completará seu primeiro ano de vida. E, como toda organização bancária que se preza, deverá publicar seu primeiro balanço anual. Mas, à diferença das entidades financeiras, esquecerá os números e resultados
materiais. Queremos comemorar tão somente os dividendos culturais que possamos ter acumulado nestes doze primeiros meses de existência. Meses de permanente contato com um seleto grupo de pessoas que ama a poesia e sabe que a arte, bem além das ideologias, une as pessoas e as remete aos mundos imensuráveis dos sentidos e da fraternidade.

Lembrei-me agora de Gilberto Gil. Quando o mundo percebeu que homem poderia passear fisicamente na Lua, a eterna bola de queijo dos namorados, Gil tratou de passar um alerta musical, em sua Lunik 9:

Poetas, seresteiros, namorados, correi
É chegada a hora de escrever e cantar
Talvez as derradeiras noites de luar
Momento histórico, simples resultado do desenvolvimento da ciência viva…

E não é a Internet também um simples-grande resultado da ciência viva? A magia dos luares não morreu, como temia o compositor. Em vez da morte das noites enluadas, estemunhamos o nascimento de uma grande nuvem eletrônica a possibilitar um encontro cada vez mais próximo entre as pessoas, mesmo as geograficamente separadas por grandes distâncias.

É interessante notar que tudo foi resultado da corrida espacial da guerra fria entre os Estados Unidos e a então União Soviética, que se estendeu entre 1945 (fim da Segunda Guerra Mundial) e 1989 (queda do Muro de Berlim). A Internet, originada em um plano de segurança de informações criado pelo exército norte-americano, na década de 60, uniria mais que separaria, para a felicidade geral das nações.

Graças à magia da comunicação eletrônica, em um ano fizemos amigos em várias partes do mundo. Em 365 dias, estamos a revelar novos poetas, que passaram a partilhar o mesmo espaço com aedos já consagrados.

Teremos, portanto, muitas razões para fechar nosso balanço positivamente.

O azul dos poetas

De todas as cores, parece-me ser o azul o que mais habita os sonhos dos poetas. Confunde-se com a imensa paz cerúlea, com o misterioso índigo das águas, com as safiras líquidas que dão brilho a olhos tristes. “Azuis os montes que estão longe param”, via Pessoa na paisagem campestre. Ou, ainda:

O céu, azul de luz quieta.
As ondas brandas a quebrar,
Na praia lúcida e completa —
Pontos de dedos a brincar.

Dois poetas, já correntistas do Banco da Poesia, retiram de suas paletas verbais azuis intensos: José Dias Egipto, do Porto, Portugal (ver outros azuis seus aqui) e Solivan Brugnara, de Quedas do Iguaçu, Brasil. Ambos próximos a águas famosas.

A Azul Cendal dos Sentidos / José Dias Egipto


Não basta ser grão,
semente apenas plantada
luz parada
que espera o clarão.

É preciso agitar
os ventos e as nuivens,
chover e molhar,
soprar no chão da razão.

Não é parada que
a centelha aquece…
Não há beleza estagnada,
nem sequer amanhece
se o sol não se excita…

Tem de haver ritmo,
pulsão,
gravidez na matéria,
pão,
para nascer o espírito
nas águas das manhãs.

Tem de haver dor,
movimento,
um constante ferver
do entendimento,
para crescer o amor
em nossas mãos!

Libélula Azul / Solivan Brugnara

Canto com um azul
da melopéia concreta
a libélula azul,
brilho azul,
reverberações azuis metálicas
de peixe azul prateado
azul, azul, azul
no seu exoesqueleto
as cintilações
têm um tilintar azul.
Luz azul

Luz azul

Passa num assobio azul
libélula azul,
cavalo de fada,
broche de safira no vento.
Libélula azul
que enfeita a boca do camaleão
na minha,
quando mastigo tuas sílabas
com um gosto
azul-amargo metálico de âmago,
deixa um persistente
hálito de libélula azul.

Logopéia azul
penso, logo não existo
que existir é coisa concreta
você apenas sente
libélula
e existe um pouco mais.
O osso não pensa, não sente
ele existe, mais que nós
dois juntos.

Libélula,
quando eu for ossos
passo a existir libélula,
quando minhas substâncias
mesclarem-se ao planeta
e moverem-se somente pelos dedos
das leis da física,
libélula
esses dedos musicais
são única parte que conhecemos
do corpo de Deus,
libélula.

Fanopéia,
e se meu indicador
fosse azul, seria sua fêmea,
libélula azul
e se as minhas cordas vocais fossem de cristal
e cantassem como pássaro,
uma única nota vibrante longa e aguda,
e a respiração tivesse
sonoridade de água corrente
pousaria no meu peito
sobre
o meu coração de pedra
coberto de musgos
pousaria nele, libélula?
Quero
porque toda a pedra em que pousa
vira adjetivo, libélula azul.

Pixinguinha: 37 anos de ausência

Pixinguinha, no traço de Bruno Venâncio

Hoje se completaram 37 anos da morte de Pixinguinha, vítima de um enfarto, a 17 de fevereiro de 1973.  Se o apelido todo mundo conhece, poucos sabem que seu nome completo era Alfredo da Rocha Vianna Filho e seu apelido misturava Bexiguinha, em razão de ele ter contraído varíola, com Pizin Din, que significaria menino bom ou guloso, em um dialeto africano.

Pixinguinha foi um dos  músicos mais importantes da fase inicial da música popular brasileira. Com um domínio técnico e um dom de improvisação encontrados nos grandes músicos de jazz, é considerado o maior flautista brasileiro de todos os tempos, além de um irreverente arranjador e compositor. Entre suas composições de maior sucesso estão Carinhoso, Lamento e Rosa. Neto de africanos, começou a tocar cavaquinho, depois uma flautinha de folha, acompanhando o pai que era flautista. Aos 12 anos, compôs sua primeira obra, o choro Lata de Leite. Aos 13, gravou seus primeiros discos como componente do conjunto Choro Carioca: São João Debaixo D’Água, Nhonhô em Sarilho e Salve (A Princesa de Cristal). Aos 14, estreou como diretor de harmonia do rancho Paladinos Japoneses e passou a fazer parte do conjunto Trio Suburbano. Aos 15, já tocava profissionalmente em casas noturnas, cassinos, cabarés e teatros. Em 1917, gravou a primeira música de sua autoria, a valsa Rosa, e, em 1918, o choro Sofres Porque Queres. Nessa época, desenvolveu um estilo próprio, que mesclava seu conhecimento teórico com sua origem musical africana e com as polcas, os maxixes e os tanguinhos.

Os Oito Batutas, Pixinguinha no centro com seu saxofone

Aos 20 anos formou o conjunto Os Oito Batutas (flauta, viola, violão, piano, bandolim, cavaquinho, pandeiro e reco-reco). Além de ter sido pioneiro na divulgação da música brasileira no exterior, adaptando para a técnica dos
instrumentos europeus a variedade rítmica produzida por frigideiras, tamborins, cuícas e gogôs, o grupo popularizou instrumentos afro-brasileiros, até então conhecidos apenas nos morros e terreiros de umbanda, e abriu novas possibilidades para os músicos populares. Na década de 1940, sem a mesma embocadura para o uso da flauta e com as mãos trêmulas devido à sua devoção ao uísque, Pixinguinha trocou a flauta pelo saxofone, formando uma dupla com o flautista Benedito Lacerda. Fez uma parceria famosa com Vinícius de Moraes, na trilha sonora do filme Sol sobre a
Lama
, dirigido por Alex Viany, em 1962.

Flautista virtuose e saxofonista, Pixinguinha foi também grande compositor, deixando dezenas de músicas de sua autoria. Mas como arranjador também deixou grande marca na música brasileira. Nos anos 30 e 40 ele foi arranjador para várias gravadoras e inovou, pela primeira vez no País, fazendo arranjos autenticamente brasileiros, substituindo os arranjos em estilo europeu que prevaleciam até então. Entretanto, sua grande composição, pela qual é sempre lembrado, foi Carinhoso, composta em 1932, que se imortalizou com a parceria de Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, que escreveu a letra, em 1937.

Homenageamos São Pixinguinha com a interpretação de Carinhoso por Marisa Monte e Paulinho da Viola.

Parabéns, Vera Lúcia!

Parabéns pelo seu aniversário!

Já transmiti meu abraço eletrônico a Vera Lúcia Kalahari, nossa correntista de Angola/Portugal, que de quando em quando enriquece nosso patrimônio poético. Hoje ela completa mais um ciclo em redor do Sol e da beleza de sua arte e de seu idealismo social. Disse-me que não haveria festa, em razão de uma viagem de trabalho a outro país. Mas que pensaria em seus amigos brasileiros, assim como estamos pensando nela e a enviar-lhe rosas, com desejos de muita luz, paz e amor em sua vida. Em sua homenagem, a nossa melhor forma de abraçá-la, com a publicação de mais um poema seu.

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O pássaro branco

Um pássaro de asas brancas, desdobradas,
anda a dançar na praia…
Há o rumor de ondas desgrenhadas,
há espuma fervente e fria
e silêncio de ventos que não existem.
O barco da minha vida
caravela d’esperança
naufragou naquela praia,
sem mar, só com o cantar doce, amargurado,
do meu pranto.

Esse pássaro que nasceu comigo
não mora numa gaiola,
não nasceu nos verdes bosques,
não é um pássaro de penas.
É um pássaro que canta
nas longas noites sem luz,
um canto de risos e prantos,
um pássaro que agarrei
com mãos trémulas de criança
e d’esperança.
Larguei para que voasse
e cantasse
em todas as almas,
fizesse nelas brotar flores,
estrelas e amores.
O meu pássaro branco…
Bbranco como nuvens esvoaçantes,
como um pássaro tecido de fios de luar…
Fugiu das minhas mãos trémulas de criança
que se fechavam
e procuravam encurralá-lo
em qualquer ninho de amor.
É agora um pássaro triste e desolado…
Um pássaro vagabundo
açoitado por um vento furioso
que o assusta e o arrasta p’ra solidão.
Um pássaro de asas murchas,
roxas como lírios macerados,
como um céu esfarrapado
sem estrelas, sem luar.
Não houve ninhos que o abrigassem
nem mãos trémulas d’esperança que o agarrassem.
De nada serviram meus prantos e minhas dores…
O meu pássaro branco, alvo como nuvens esvoaçantes,
dança na praia que não existe,
a praia da solidão,
ferido de dor e de morte,
curvando as asas brancas
que não são brancas,
largando às ondas e aos ventos, as suas penas.

Vera Lúcia Kalahari

Cássio Amaral: mais brilhos de Araxá

Foto e poema: Cássio Amaral – montagem: C. de A.

Solivan Brugnara, vindo das águas e das estrelas

Solivan lê um de seus poemas na Semana da Poesia de 2008

Solivan Brugnara me parece ter a timidez dos gênios, apesar de portar um nome que lembra cantor de ópera. Eu conheci seus poemas no blog de J.B. Vidal, Palavras, Todas Palavras. Um deles, em especial, me entusiasmou pela coragem de ser contrário a uma onda de aprovações ideológicas aos atos de terrorismo no Oriente Médio. Vai abaixo o poema e meu comentário, em agosto de 2008. Depois o conheci pessoalmente na Semana da Poesia Paranaense organizada por Manoel de Andrade em setembro do mesmo ano, no Espaço Cultural Massuda. Um papo muito rápido, que ficou devendo outros encontros.

Solivan já deveria ter feito depósitos no Banco da Poesia desde o princípio de nosso trabalho na rede. Mas ele não veio e tive que convidá-lo, há alguns dias.

Mandou-me, generosamente, seus livros impressos em edições pessoais, com o cuidado de artista gráfico que também é. E uma série de poemas, que ficam investidos na bolsa de futuro imediato desta instituição bancária.

Dele já falou muito bem Ademir Demarchi, escritor, editor da revista de poesia Babel: “Solivan Brugnara escreve como quem parece querer fazer pacotes congelados de palavras, esmagadas, amarfanhadas, constituindo miscelâneas cuja característica é fugir a um estilo único e agir como uma ventosa que suga todas as possibilidades de expressão, sempre ainda insuficientes, afinal o sentido da vida e, em última instância, da palavra, é inalcançável, ainda que se possa percorrer o caminho da sua busca”.

Mais dados sobre sua biografia virão depois, pois sua ficha cadastral ainda não está completa. Apenas a inscrição, em letras garrafais grafadas em vermelho: De Quedas do Iguaçu, PR, um poeta dos bons, sem dúvida alguma.

Vamos rememorar, primeiro, o poema que me revelou Solivan, em julho de 2008.

Lições de marketing para um terrorista

xxxxMustafá,
xxos aviões que balearam
xxxxo estômago das torres gêmeas
xxe fizeram ambas morrerem,
xxxxgritando como um pterodáctilo
xxxxxxsangrando fumaça e fogo.

Ou bombas que fazem desmoronar
xxxesses castelos de areia
xxxcimento e cal da ONU.

E também
xxxexplosões em bares
xxxxxxonde pessoas estavam pacificamente,
xxxxxxxxsendo amamentadas com cerveja.

São exemplos da covardia do fraco contra o forte.

xxxSeus métodos só fazem
xxxxuma mulher morta
xxxse transformar em abelha rainha
xxxem torno da qual
xxxxas opiniões formam uma enorme e perigosa
xxxcolméia de unanimidades.

xxxFazem uma gravata
xxxou um cartão de crédito ensanguentado
xxxxxtornarem-se ícones.

xxE mesmo se matar com sua bomba aleatória,
xum lobo com pele de cordeiro
xxxé a pele de cordeiro que receberá
xxxxas homenagens do estado,
xxxjá o lobo será levado para a tinturaria
para ser lavado e vendido num brechó.

xxxxxxxEscolha sempre as peças brancas do tabuleiro.
xxxxxxxxxApenas o alvo diferencia
xxxxxxxo herói do fanático.
xxxxxxPõe seu corpo na frente de uma manada
xxxxxde tanques,
xxxxxxxmas se recuse a explodir um ônibus.

xxxE os papiros
xxxxxlidos em amenos cafés da manhã
xxou os pergaminhos eletrônicos
xxxxe talvez, a história
xxtenderão a ser favoráveis a sua causa.

xxxxxxNão, Mustafá,
xxxxelogios da mídia não garantirão sua vitória,
xxmas despetalar pernas e braços de civis também não.
Além do mais,
xxxxxterá mais chances se ferir
xxxxcom um espinho a pata de um exército
xxxque a inócua idéia de matar
xxcoelhos alvos amontoados em metrôs e aeroportos.

Meu comentário, lá no Palavras:

Em um tempo em que nossos dirigentes políticos temem em definir como terroristas seus amigos terroristas; em um tempo em que os segredos da vida são desvendados com maior velocidade e se ela se torna mais sagrada do que a vida cantada nos templos religiosos; em um tempo em que os idealistas do passado não têm coragem para serem revisionistas de suas próprias histórias e idéias; em um tempo em que é mais fácil aderir aos suaves encantos da ira contestadora, dá gosto ler um poema-recado como o de Solivan Brugnara, que não conheço pessoalmente, aprendi a conhecê-lo nesta senda aberta por J.B.Vidal e, mesmo com pouca leitura, já passei a admirar. (C. de A.)

Na falta de dados biográficos, vai a apresentação pessoal em forma poética.

Apresentação


xxxNasci
xxxxxno útero da Via Láctea,
xxxxxxxxxneste óvulo fecundado pelo sol
xxxxxxxxxxxchamado terra
xxxxxxxxxxxxxxxcomo todos.
xxEra fraco,
mantive-me vivo graças às vitaminas, proteínas
xxxxxxxxxxxxxe sais minerais
contidos nas orações de minha avó.
xxxMeu corpo é feito de folhas, carne
xxxxxxxxxxxxxxar, sol e água.
Meu primeiro medo foi que das sementes
xxxxxxxxxxxxxxengolidas nascesse
xxpela minha boca um galho carregado de laranjas.
xxxxxxDas etapas
já mastiguei a doce infância, a amarga adolescência
xxxxxxxxestou roendo o osso da vida adulta
xxxxxxxxxxxxe roer osso é saboroso.
Amanhã morrerei
xxxxaliás absolvo a morte,
é a morte que renova a vida.
xxxPor fim
sou poeta
xxxxporque gosto de lamber
xxxxxxfolhas em branco,
xxlembra-me leite materno.

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A odisséia ou o erro do pavão

O pavão
de olhinhos nervosos
irrequieto bípede
tirou dolorosamente
suas queridas penas
uma a uma
e colou
em folhas de papel sulfite.
Despiu-se de suas jóias
transgrediu o pudor
sentiu frio
ficou só
sua família não aguentou
a verdade nua.
Não satisfeito
regurgitou a pouca quirela
do jantar
e vendo o vômito convulso e amarelo
lembrou-se de Van Gogh
e chorou.
Colou sua bile no sulfite
e com as folhas e penas e vômitos
profissionalmente encadernados,
a pobre ave implume
saiu a procura de editor.


Seria mais fácil, pássaro
achar editor
se deixasse as penas no corpo
e levasse as folhas em branco
profissionalmente encadernadas
sempre
profissionalmente encadernadas.

Solivan Brugnara