Arquivo do mês: maio 2009

De Cabo Verde, Corsino Fortes

Corsino-Fortes3Corsino António Fortes (São Vicente, 1933) é um escritor e político cabo-verdiano. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa (1966). Integrou vários governos na república de Cabo Verde e foi embaixador de seu país em Portugal. Presidiu à Associação dos Escritores de Cabo Verde de 2003 a 2006). Autor de  Pão & Fonema (1974),  Árvore e Tambor (1986) e A Cabeça Calva de Deus (2001),  a sua obra, segundo seus exegetas,  expressa uma nova consciência da realidade cabo-verdiana e uma nova leitura da tradição cultural daquele arquipélago.

Pecado Original

noite2Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noite brumosa.

MadeiraVelhaOlho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.

pé na lama2Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.

ExplodeCoracaoE não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito…

xxxxxxxxxxxxxxx(Claridade, 1960)
CaboVerdeEsmeralda de Cabo Verde - foto de Filipe Pombo http://br.olhares.com/AFFP

De boca a barlavento

I

Esta
xxxa minha mão de milho & marulho
Este
xxxo sol a gema E não
xxxo esboroar do osso na bigorna
xxxxxxxxxxxxxxxxxE embora
O deserto abocanhe a minha carne de homem
E caranguejos devorem
xxxxxxxesta mão de semear
Há sempre
Pela artéria do meu sangue que g
xxxxxxxxxxxxxxxxo
xxxxxxxxxxxxxxxxt
xxxxxxxxxxxxxxxxe
xxxxxxxxxxxxxxxxj
xxxxxxxxxxxxxxxxa
De comarca em comarca
A árvore & o arbusto
Que arrastam
As vogais e os ditongos
xxxxxxxxxxpara dentro das violas

II

Poeta! todo o poema:
xxxxxxgeometria de sangue & fonema
Escuto Escuta

Um pilão fala
xxxxxxárvores de fruto
xxxxxxxxxao meio do dia
E tambores
xxxxxxerguem
xxxxxxxxxna colina
xxxxxxUm coração de terra batida
E lon longe
Do marulho à viola fria
xxxxxxReconheço o bemol
Da mão doméstica
xxxxxxxxxQue solfeja

Mar & monção mar & matrimônio
Pão pedra palmo de terra
xxxxxxxxxPão & patrimônio

xxxxxxxxxxxxxxx(Pão & fonema, 1974)
Sopro

Em julho, grande exposição de Paul Garfunkel

EsboçoGarfunkelx

xxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Recebemos comentário de Luca Rischbieter, neto de Paul Garfunkel, no qual, junto ao agradecimento pela homenagem feita pelo Banco a seu avô (https://cdeassis.wordpress.com/2009/05/13/maio-mes-de-paul-garfunkel/), ele nos comunica que:

  • Está em preparação uma grande exposição  de  Garfunkel, a começar em 14 de julho desse ano, no Museu Oscar Niemeyer.
  • O vídeo dos músicos, publicado naquele post, é de autoria de  Mauricio Runno, escritor argentino reponsável pela organização e catalogação de milhares de aquarelas do PG, adormecidas em pastas que ficaram com a família.

Nós é que agradecemos, Luca.

António Gedeão revela os simples mistérios da Pedra Filosofal

antonio_gedeãoAntónio Gedeão , poeta, professor e historiador da ciência portuguesa, é pseudônimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, nascido em Lisboa em 1906 e falecido em 1998. Concluiu, no Porto, o curso de Ciências Físico-Químicas, exercendo depois a atividade docente. Teve um papel importante na divulgação de temas científicos, ao colaborar em revistas da especialidade e organizar obras no campo da história das ciências e das instituições, como a Atividade Pedagógica da Academia das Ciências de Lisboa nos Séculos XVIII e XIX. Publicou, ainda, outros estudos, como a História da Fundação do Colégio Real dos Nobres de Lisboa (1959), O Sentido Científico em Bocage (1965) e Relações entre Portugal e a Rússia no Século XVIII (1979).
Foi diretor da Sociedade Portuguesa de Química e Física (1957), da qual foi eleito presidente honorário em 1988. Integrou a direção da revista Gazeta de Física (1946), a redação da Palestra (1958), co-dirigiu o Boletim do Ensino Secundário (1973) e foi diretor do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa (1990).

O poeta António Gedeão revela-se em Movimento Perpétuo (1956), onde consta um dos poemas que a versão musicada popularizou, Pedra Filosofal, no final dos anos 60.A esta viriam juntar-se outras obras, como Teatro do Mundo (1958), Máquina de Fogo (1961), Poema para Galileu (1964), Linhas de Força (1967) e ainda Poemas Póstumos (1983) e Novos Poemas Póstumos (1990). Na sua poesia, reunida também em Poesias Completas (1964), as fontes de inspiração são heterogêneas e equilibradas de modo original pelo homem que, com um rigor científico, comunica o sofrimento alheio, ou a constatação da solidão humana, muitas vezes com surpreendente ironia. Alguns dos seus textos poéticos foram aproveitados para músicas de intervenção.

Em 1963 publicou a peça de teatro RTX 78/24 (1963) e dez anos depois a sua primeira obra de ficção, A Poltrona e Outras Novelas (1973). No seu nonagésimo aniversário, António Gedeão foi alvo de uma homenagem nacional e condecorado com a Grã-Cruz da Ordem de Sant’iago de Espada.

O Banco da Poesia faz uma homenagem ao poeta com a publicação de seu poema mais famoso, em letra e música. No vídeo, quem canta é Manuel Freire. A título de curiosidade, publicamos também o autógrafo de Pedra Filosofal.

Agradecimento especial a Manoel de Andrade, que indicou e avalisou este depósito póstumo. E  também a Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, que, com sua Caravela, deu uma mãozinha na ilustração.

Pedra Filosofal

Sonho

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e ouro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxDe Movimento Perpétuo, 1956

autografo_pedra-filosofal

Mais Eugenio de Andrade

As Palavras

AsPalavras

São como um cristal,
as palavras
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas,

Secretas vêm, cheias de memória.
inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

_____________

Eugenio de Andrade, poeta português (Fundão, 19 de Janeiro de 1923 — Porto, 13 de Junho de 2005) Leia mais, no Banco da Poesia, aqui

Saramar: dois poemas recentes

Carnaval

Carnaval
Passeio entre felizes foliões.
A festa despencou pelas ruas, chuva de confetes.
Máscaras não mais se usam,
só a da alegria, em todas as faces, pregada.
Suor colorido de músicas, um choque,
um tremor nessas ruas molhadas.
Beijos escorregam por todos os lados,
lascivos,
de línguas, bocas, pernas.
Procuro rostos, olhos… nada.
É carnaval.
Também fui,
trocando ilusões e lençóis engomados
por tiras coloridas e seu brilho de enganar.
Árvore,
de outra pele me vesti
e a primavera confunde as estações e os sons.

O que te levou de mim?

É medo, é pejo
ou acabou o desejo
do ermo noturno
dos beijos?

É medo, é dor
que entranha nos eixos
do dia
ou foi bom e adeus?

É medo da dor,
prima-irmã desse anseio
de tomar a pele do outro
que chamamos amor?

É medo?

O moçambicano Mia Couto

Mia CoutoAntónio Emílio Leite Couto, escritor moçambicano, passou a ser conhecido como Mia Couto por culpa de seu irmão menor, que não conseguia pronunciar direito o Emílio. Mas, segundo o próprio autor, nascido em Beira em 1955, o apelido também tem muito a ver com sua paixão por felinos. Quando pequeno, diza a seus familiares que queria ser um gato (sem alusão à moderna acepção utilizada pelas mocinhas brasileiras).
Por ter nascido em Moçambique, país de terras baixas, localizada à beira do Oceano Índico, ele diz que não tem uma terra-mãe, mas uma água-mãe.

BEIRA - vista panoramica_resize
Abandonou o curso de Medicina para se dedicar ao jornalismo. Foi diretor da Agência de Informação de Moçambique e, mais tarde, fez o curso de Biologia, carreira que segue até hoje.

No início da década de 80 participou, com poemas seus, de algumas antologias. Em 1983, publicou Raiz de Orvalho, seu primeiro livro de poesias. Em 1999, Mia Couto recebeu o Prêmio Vergílio Ferreira, pelo conjunto da sua obra. Suas principais publicações: • Raiz de Orvalho (poesia, 1983); • Vozes Anoitecidas (relatos, 1986); • Cada Homem é uma Raça (relatos, 1990); • Cronicando (crônicas, 1991); • Terra Sonâmbula (novela, 1992); • Estórias Abensonhadas (relatos, 1994) ; • A Varanda do Frangipani (novela, 1996); • Contos do nascer da terra (relatos, 1997) ; • Mar me quer (novela, 1998) ; • Vinte e Zinco (novela, 1999); • O Último Vôo do Flamingo (novela, 2000) ; • O Gato e o Escuro (livro infantil, 2001) ; • Na Berma de Nenhuma Estrada e Outros Contos (relatos, 2001); • Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra (novela, 2002); • Contos do Nascer da Terra (relatos, 2002); • O país do queixa andar (crônicas, 2003); • O fio das missangas (relatos, 2003); • A Chuva Pasmada (novela, 2004); • O Outro Pé da Sereia (novela, 2006).

O Banco da Poesia publica três poemas de Mia Couto, extraídos de Raiz de Orvalho e Outros Poemas. E porque somos, como ele, lusófonos, publicamos uma divertida crônica sobre a Língua Portuguesa.

Orvalho

Destino

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos

vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso

conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso

agora
que mais
me poderei vencer?

Fui Sabendo de Mim

Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia

Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço

Perguntas à Língua Portuguesa

Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.

A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o vôo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem, é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como a escrita e o mundo mutuamente se desobedecem.

Meu anjo da guarda, felizmente, nunca me guardou.

Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica.

Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, exceto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulburbio.

No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.

Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?

Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:

  • Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
  • No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
  • A diferença entre um às no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
  • O mato desconhecido é que é o anonimato?
  • O pequeno viaduto é um abreviaduto?
  • Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente?
  • Quem vive numa encruzilhada é um encruzilheu?
  • Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
  • Tristeza do boi vem dele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
  • O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
  • Onde se esgotou a água se deve dizer: “aquabou”?
  • Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
  • Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
  • Mulher desdentada pode usar fio dental?
  • A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
  • As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: “finanças”?
  • Um tufão pequeno: um tufinho?
  • O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
  • Em águas doces alguém se pode salpicar?
  • Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
  • Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
  • Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
  • Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?

Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocamos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.

Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxMia Couto – 11/04/1997

Um poema de Álvaro Miranda*

La última noche de Breton

Noche diurna de baño de espíritu
y de totuma andina donde no cabe un silencio
noche de lluvia paralítica en la mitad del espacio
noche extranjera de luz cancerosa
de migas de tamal entre nidos de buitres
noche de tul entre la trayectoria de un buque de papel

Noche de corteza de aire
de siesta de estrellas bajo llanto de sauces
noche amortajada de nubes
entre rosario de luceros rebeldes
noche tímida de mejilla de alba sonrosada
y de muñeca rota de golpe de mamut

Noche de gelatina sobre un plato de peltre
noche de cartón entre dientes de ratas
y de ojo de ahogado en el eje del mar
noche inservible de Navidad entre vahos
de epilépticas rumberas

Noche crucificada entre ladrón de sueños
de espumas y de verdades

BretonVanGogh

A última noite de Breton

Noite diurna de banho de espírito
e de cabaça andina onde não cabe um silêncio
noite de chuva paralítica na metade do espaço
noite estrangeira de luz cancerosa
de migalhas de tamal entre ninhos de abutres
noite de tule entre a trajetória de um barco de papel

Noite de casca de ar
de sesta de estrelas sob o pranto de salgueiros
noite amortalhada de nuvens
entre rosário de luzeiros rebeldes
noite tímida de bochecha de alva rosada
e de boneca espedaçada a golpe de mamute

Noite de gelatina sobre um prato de estanho
noite de papelão entre dentes de ratos
e de olho de afogado no eixo do mar
noite inservível de Natal entre vapores
de epiléticas rumbeiras

Noite crucificada entre ladrão de sonhos
de espumas e de verdades

____________

Notas

* Poeta colombiano. Ler post abaixo. Há mais dois poetas homônimos,  um uruguaio e um brasileiro.
Versão em Português – Cleto de Assis
Tamal –Espécie de empanada (pastel) de massa de farinha de milho, envolta em folhas de bananeira ou de espiga de milho, cozida ao vapor ou em forno. Existem vários tipos, segundo o recheio que se coloca e os ingredientes agregados. É prato típico em diversos países hispanos, principalmente no norte da América do Sul, na América Central e Caribe.  Assemelha-se à nossa pamonha.
Ilustração – composição de Retrato de André Breton, de James Sebor, (E.U.A. 1957), e Noite estrelada sobre o rio Reno,1888, de Vincent van Gogh (Holanda 1853-1890), 72,5 x 92 cm, Museu de Orsay, Paris.

Em Bogotá, a poesia será rainha

FestivalPoesiaBogotá

Com uma homenagem ao poeta colombiano Álvaro Miranda, a tomada poética do sistema de transporte de massa Transmilênio*, lançamentos de publicações e a apresentação de mais de 70 recitais, será realizado, entre os dia 25 e 30 de maio de 2009, o XVII Festival Internacional de Poesia de Bogotá, organizado pela revista Ulrika. Estão convidados mais de 50 poetas nacionais e internacionais.

Como em todos os anos, o Festival Internacional de Poesia de Bogotá 2009 reunirá a alguns dos representantes mais importantes da poesia contemporânea em língua espanhola, na décima sétima versão do evento. Nessa edição, a Venezuela é o país convidado de honra e a homenagem central será dirigida ao acadêmico e poeta Álvaro Miranda. Haverá recitais no sistema de transporte Transmilênio, do Distrito Capital, que se estenderão por toda a cidade, até o sábado, 30 de maio, permitindo a assistência massiva do público ao evento.

O XVII Festival Internacional de Poesia de Bogotá terá sua abertura no dia 25 de maio, a partir das dez horas da manhã, com a tomada poética massiva e simultânea do sistema de transporte,  (Transmilenio em verso), e continuará, a partir do meio-dia, na Casa de Poesia Silva.

Os mais de 70 recitais realizados em toda a cidade, durante uma semana plena de eventos e conteúdos, serão encerrados no sábado, com o lançamento, na Casa de Poesia Silva, da Antologia de Poesia Colombiana Contemporânea, da Editora El perro y la Rana, editada na Venezuela e apresentada por Iván Beltrán Castillo. Do México se lançará a revista La Otra – Antologia multimídia da Nova Poesia Colombiana, apresentada por José Angel Leyva. Muitas outras publicações serão lançadas, na ocasião.

Mais informações: www.poesiabogota.org

alvaro_mirandaO Poeta HomenageadoÁlvaro Miranda nasceu em Santa Marta, Colômbia, em 1945. Licenciatura em Filosofia, na Universidade de La Salle. Seus primeiros poemas apareceram nos volumes coletivos Ohhh (1970) e na Antologia de uma geração sem nome, coleção Adonáis, Madri (1970). Seu primeiro livro de poemas – Indiada – foi publicado em 1971.

Em 1982, quando recebeu o Prêmio Nacional de Poesia, da Universidade de Antióquia, editou Los Escritos de don Sancho Jimeno. Sua novela, La risa del cuervo, escrita em 1983, ganhou o primeiro prêmio em Buenos Aires e foi publicada no ano seguinte pela Universidade de Belgrano. Reescrita e editada por vários anos novamente em Bogotá (Thomas de Quincey Editores, 1992), foi galardoada por Colcultura, com o Prêmio Pedro Gómez Valderrama. Em 1996, publicou Simulación de un reino, que inclui a sua obra poética, de 1966 a 1995.

Em 2000, publicou o livro Colombia la senda dorada del trigo (1800-1999). Foi, por dois anos, diretor da Oficina de Poesia da Universidade Central. Ganhou a Residência de  Literatura, no México, em 2003, convocada pelo Ministério da Cultura da Colômbia e pela FONCA do México. De sua viagem àquele país escreveu El libro blanco de los muertos. Na coleção 100 Personagens, em 2004, constou seu trabalho Leon de Greiff. No país de Bolombolo. Em 2005, o Seminário de Cultura Mexicana e a Secretaria de Relações Exteriores do México, o convidam a participar do Encontro de Poetas do Mundo Latino, realizado na cidade de Morelia.

Seus destaques: Tropicomaquia, Indiada, Cuatro de Lebrija, Los Escritos de Sancho Jimeno, Simulación de un reino.

A poesia de Miranda tem um grande valor de originalidade. Toma o sotaque do espanhol de crônica antiga. O poeta maneja um idioma paródico, com humor, com força expressiva e com grande conteúdo vital, ao mesmo tempo em que interpola elementos atuais, o que dá um clima especial ao livro. É uma expressão, diria, muito rotunda, muito forte, que faz lembrar o Arcipreste de Hita**. (Enrique Molina, poeta argentino)

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* O saber fazer curitibano – A rede do TransMilenio é inspirada na Rede Integrada de Transporte de Curitiba, inclusive com a adoção de veículos fabricados em associação com empresas brasileiras . Porém algumas melhorias permitiram ao TransMilenio contar com uma capacidade de carregamento de passageiros superior à de Curitiba. A principal é que os ônibus transitam por canaleta segregada, sem cruzamentos em nível, com duas faixas em cada direção, permitindo, assim, ultrapassagem entre os veículos. Isso possibilitou a operação de linhas expressas na faixa adicional e velocidades de operação maiores que as de Curitiba. As estações do TransMilenio são mais amplas e muitos acessos são proporcionados por pontes que cruzam as avenidas. Entre outras comodidades do sistema bogotano, está a garagem para bicicletas, dentro das estações, que permite ao usuário guardar seu veículo enquanto usa o sistema de ônibus.
Transmilenio1Ligeirinho ou Ligerazo?
** Arcipreste de Hita é o título concedido a  Juan Ruiz, um poeta castelhano que viveu na primeira metade do Séc. XIV. É autor de uma das obras literárias mais importantes da Idade Média espanhola, o Libro de buen amor.

Os poetas não morrem

Mario_Benedetti_1Os poetas perseguem o sonho e a eternidade, o maior dos sonhos. A música é arte universal, cósmica e a seus autores pertencem somente os traços de estilo. As artes visuais remetem às formas e cores da natureza, de quando em quando pinceladas de um momento fixado pelo artista. O escritor também descreve fatos e fados, distanciando-se do que ele mesmo é, a não ser também por lampejos estilísticos e latejos da alma.

Já o poeta fala por si mesmo. Quando lemos um poema de Homero, em sua grandiloqüência histórica, ou os versos de Pessoa, mais introvertidos, não vemos ali apenas palavras soltas, mas reflexos da alma dos autores, que foram ao fundo de suas consciências e inconsciências para recompor o belo das letras e dos sons das palavras. Se na Ilíada ou na Odisséia seguimos Homero a contar a história de seus heróis, é Homero que nos fala, presente, altissonante.

Morreu Mario Benedetti, dizem os jornais. Cessou a respiração física de um dos maiores poetas latino-americanos. Mas o respirar poético, o pulsar do coração anímico jamais cessará. Suas palavras ecoarão com maior intensidade, mesmo que suas mãos já não possam escrever versos novos. Seus 89 anos dedicados à literatura, à poesia e, sobretudo, à ânsia pela justiça social, bem justificam uma vida bem vivida e, agora, coroada com sua ascensão à galeria dos poetas universais.

Porque cantam os poetas

Talvez para eternizar-se, como refletimos acima. Mas Benedetti buscava por razões mais sólidas. Assim como o nosso Manoel de Andrade, ao inspirar-se no poeta uruguaio para fazer a mesma reflexão, em poema homônimo de  alguns anos atrás. Em homenagem ao poeta que se despediu da vida física, publicamos os dois poemas. Em seguida, um resumo biográfico de Mário Benedetti, que, a partir de hoje, está também em nossa Biblioteca Virtual:  https://cdeassis.wordpress.com/biblioteca-virtual-de-poesia/ (C. de A.)

Por qué cantamos

Si cada hora viene con su muerte
si el tiempo es una cueva de ladrones
los aires ya no son los buenos aires
la vida es nada más que un blanco móvil

Usted preguntará por qué cantamos

Si nuestros bravos quedan sin abrazo
la patria se nos muere de tristeza
y el corazón del hombre se hace añicos
antes aún que explote la vergüenza

Usted preguntará por qué cantamos

Si estamos lejos como un horizonte
si allá  quedaron árbores y cielo
Si cada noche es siempre alguna ausencia
y cada despertar un desencuentro

Usted preguntará por qué cantamos

Cantamos porque el río está sonando
y cuando suena el río / suena el río
cantamos porque el cruel no tiene nombre
y en cambio tiene nombre su destino

Cantamos por el niño y porque todo
y porque algún futuro y porque el pueblo
cantamos porque los sobrevivientes
y nuestros muertos quieren que cantemos

Cantamos porque el grito no es bastante
y no es bastante el llanto ni la bronca
cantamos porque creemos en la gente
y porque venceremos la derrota

Cantamos porque el sol nos reconoce
y porque el campo huele a primavera
y porque en este tallo en aquel fruto
cada pregunta tiene su respuesta

Cantamos porque llueve sobre el surco
y somos militantes de la vida
y porque no podemos ni queremos
dejar que la canción se haga ceniza.

(De Retratos y Canciones)
PorQueCantamos

Por que cantamos

(versão em Português – tradutor não localizado)

Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

Você perguntará por que cantamos

Se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

Você perguntará por que cantamos

Se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

Você perguntará por que cantamos

Cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

Cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

Cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota

Cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

Cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.

“Por que cantamos”

de Manoel Andrade

para Mario Benedetti(*)

manoel-de-andrade-foto-dele-img_7355Se tantas balas perdidas cruzam nosso espaço
e já são tantos os  caídos nesta guerra…
Se há uma possível emboscada em cada esquina
e  temos que caminhar num chão minado…

“você perguntará  por que  cantamos”

Se a violência sitia os nossos atos
e a corrupção gargalha da justiça…
Se respiramos esse ar abominável
impotentes diante do deboche…

“você perguntará por que cantamos”

Se o medo  está  tatuado em nossa agenda
e a perplexidade estampada em nosso olhar…
Se há um mantra entoado no silêncio
e as lágrimas repetem: até quando, até quando, até quando…

“você perguntará  por que cantamos”

Cantamos porque uma lei maior sustenta a vida
e porque um olhar ampara os nossos passos.
Cantamos porque há uma partícula de luz no túnel da maldade
e porque nesse embate só o amor é invencível.

Cantamos porque é imprescindível dar as mãos
e recompor, em cada dia, a condição humana.
Cantamos porque a paz é uma bandeira solitária
a espera de um punho inumerável.

Cantamos porque o pânico não retardará a primavera
e porque em cada amanhecer as sombras batem em retirada.
Cantamos porque a luz se redesenha em cada aurora
e porque as estrelas e porque as rosas.

Cantamos porque nos riachos e lá na fonte as águas cantam
e porque toda essa dor desaguará um dia.
Cantamos porque no trigal o grão amadurece
e porque a seiva cumprirá o seu destino.

Cantamos porque os pássaros estão piando
e ninguém poderá silenciar seu canto.
Cantamos para saudar o Criador e a criatura
e porque alguém está parindo neste instante.

Pelo encanto de cantar e pela esperança nós cantamos
e porque a utopia persiste a despeito da descrença.
Cantamos porque nessa trincheira global, nessa ribalta
nossa canção viverá para dizer por que cantamos.

Cantamos porque somos os trovadores desse impasse
e porque a poesia tem um pacto com a beleza.
E porque nesse verso ou nalgum lugar deste universo
o nosso sonho floresce deslumbrante.

Curitiba, maio de 2003
(*)  Escrevi  estes  versos motivado pelo belíssimo  poema  “Por qué cantamos”,  do poeta uruguaio Mario Benedetti. Num tempo em que todos caminhamos sobre o “fio da navalha”, me senti, como poeta,  implicitamente convocado a  também  testemunhar  por que cantamos. (Manoel de Andrade)

Súmula biográfica


don-mario-benedettiMario Benedetti nasceu em Paso de los Toros (Tacuarembó, Uruguay) no dia 14 de setembro de 1920. Educou-se no Colégio Alemão de Montevidéu e no Liceu Miranda, e trabalhou como vendedor, taquígrafo, contabilista, funcionário público e jornalista. Entre 1938 e 1941 residiu quase continuadamente em Buenos Aires e, em 1945, de regresso a Montevidéu, se integrou na redação do célebre semanário Marcha.  Ali se forma como jornalista, junto a Caros Quijano, e fez parte de sua equipe até 1974, com o encerramento da publicação. Naquele mesmo ano de1945, publica seu primeiro livro de poemas, La víspera indeleble, que não foi reeditado.

Depois do lançamento de sua primeira obra ensaística, Peripecia y novela, (1948) siguiu, em 1949, seu primeiro livro de contos, Esta mañana, e, um ano mais tarde, os poemas de Sólo mientras tanto. Em 1953, aparece Quién de nosotros, sua primeira novela, mas é o volume de contos Montevideanos (1959) – nos quais tomam forma as principais características da narrativa de Benedetti – o que supôs sua consagração como escritor. Com sua seguinte novela, La tregua (1960), Benedetti adquire projeção internacional: a obra teve mais de uma centena de edições, foi traduzida em dezenove idiomas e levada ao cinema, ao teatro, à rádio e à televisão.

Por razões políticas, teve que abandonar seu país em 1973, iniciando, assim, um longo exílio de doze anos, que o levou a residir na Argentina, no Peru, em Cuba e na Espanha, e que deu lugar também a esse processo por ele batizado como desexílio: uma experiência com marcas tão profundas tanto no vital como no literário.

Sua ampla produção literária abarca todos os gêneros, inclusive famosas letras de canções, e soma mais de setenta obras.  Entre elas se destacam suas recopilações poéticas Inventario e Inventario Dos, o ensaio El escritor latinoamericano y la revolución posible (1974), os contos de La muerte y otras sorpresas (1968), Con y sin nostalgia (1977) e Geografías (1984), as novelas Gracias por el fuego (1965) e Primavera con una esquina rota, que, em 1987, recebeu o Prêmio Chama de Ouro, da Anistia Internacional, assim como a extraordinária novela em verso El cumpleaños de Juan Ángel.

Seus livros mais recentes são Despistes y franquezas (1990), Las soledades de Babel (1991), La borra del café (1992), Perplejidades de fin de siglo (1993) e sua mais recente novela Andamios (1996). Sua obra poética completa foi recolhida en Inventario Uno (1950-1985) e Inventario Dos (1986-1991), e seus contos em Cuentos completos (1947-1994). Existe uma biografía de Benedetti escrita por Mario Paoletti, que se intitula Mario Benedetti, el aguafiestas.

Ser-âmica

Matéria arrancada do ventre da terra

Vem a minhas mãos para ser amassada

Ser-amica3obediente

mentalizada

moldada

torneada

formada.

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xxxxxxxxxxxxxxxx

xxxxxxxxxxxxxxxx

Com as

pontas dos dedos

pressiono

pressinto

imagino

rezo

me deifico.

Ela se forma na deformação

indolente

dolentemente

ardilosamente

argilosamente.

E só terá sentido se abandonar a brandura

a ternura

a suave textura

para, dura,

cingir-se em definitiva arquitetura.

Para cumprir teu destino, acrisola-te no fogo.

Tu és pedra: e sobre teus cacos construo a minha vida.

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Cleto de Assis
Curitiba – 10.jan.2008