Textos
Pelicanos
Os pelicanos são como avis raras, e moram, em seu silencioso coração, as reticências.
Arcar com o severo pesadume do bico é, deles, dos pelicanos, uma insubstituível marca e, de certo modo, um glorioso acinte. Pudessem, não envergariam pela vida afora os bicos como trombas tristes e nem exibiriam as longas melancólicas pernas feito uma humilhação compulsória.
Ah, guardam, no escuro papo guardam uma esmeralda viva e sonham por nós o sonho oblíquo de que sendo sumamente feios, de físico e de feição, nós, os dois, neste lago merencóreo, alcancemos soar, quem diria?, perfeitamente escarlates.
Voar não podemos dada a complexidade do corpo contra a magra asa. Assim, jaburu, o nariz e a dilatada marca de teu lábio inchado.
Chuvas
Bicho líquido de fiel transparência, as chuvas chovem no zinco de nosso teto humilde com a graça quase invisível de ariscas lagartas, e mínimas, muitas, coleantes, uma que vez cândidas.
Quis no verão sua morada, e o ímpeto com que serpenteia da nuvem ao telhado e dali às caleiras da casa, ninho suspenso entre o arrozal e as águas.
Há, contudo, diversas espécies de chuva — de chuviscagens a chuvões, veros maremotos, bebendo a Terra, rios e lagos, riachos e cascatas.
Se me sugas feito um vício eu sou a chuva que teu chão lambe com uma volúpia de amantes entranhados — um no outro encharcados até a última gota e a derradeira raiz mais chã.
Lavas-me o rosto a esguichos; brinco de intempérie sobre o vosso ventre. Líquidos e miasmas, cobrem meu corpo vossas mágoas. Águas? Cantam as calhas nosso lamento, longe, enxurrada em lá maior, aguaceiro, coral de anilhas.
Caramujos
Que de sons ecoa o tímpano do caracol? Enrodilhado em sua louça multicor acaso o ausente sexo freme? Um que de porcelana fosse dificilmente sobreviveria em sua fragilidade exaltada, e complexíssima.
Andam na noite, inenarráveis dromedários ou uma absurda espécie de formiga — levando às costas sua montanha de osso e marfim.
Onanistas, narcisos, centrados em sua têmpera, os caramujos, às frescas manhãs de areia e espuma, da longa praia deserta, são uma aleluia viva, e numerosa.
Prescindir da rubra curva de vossa nádega e ainda assim, encaracolado aos vossos crespos e pentelhos, imaginar com os ruflos de um colibri-de-asas, ramblas, ramonas, ai que te incenso a coxa grávida com meu filete d’água cinza-pálida.
Hienas
Se me perco de amor por vós pela galhofa com que me rides, carniceira, te esconjuro.
Alta noite é que estás rindo de meus odores, vossos incensos, a dura ambígua carne com que corrompo em vós o apodrecido encanto. Não somos seres de caça; antes provamos do banquete alheio os restos dele, as suas sobras.
Rasgo-lhe a cara a dentadas; furas-me o olho, sinistra. Finco em vossos esquálidos os meus caninos, os dois, como uma forma cruciante de gancho, ou de anzol. Ganindo persigo o cio aziago e sob a grande noite, seus quietos, seus possíveis duendes, capaz me mijes.
Amamos um ao outro, mas com tal ódio que, focinho em riste, mais que rir, uivo quebrado em dois, e magro. Sobre mim tripudias o solene cacto de nossa vida vesga. Vergas?
Ensinaram-nos o amor feito ele fosse a chibata. De que fezes, hiena, o vosso nojo?
Quatro dos treze textos inéditos que para compor uma futura reedição de Manual de Zoofilia
Vaga-lumes
Chegam pelas noites de verão – miríades deles num revôo de faíscas contra o azul profundo. Se um se ausenta, outro se assanha, abaixo, acima, de lado e a celacanto – assim tão sucessivamente que parece chovem sobre o quintal, entre os arbustos, os cactos e os eucaliptos.
Rever em vós o nítido contorno, a dura escorregadia couraça com que o corpo trincas (faíscas?) ao meio, a movimentos sincopados – o modo como escapas de meus dedos ávidos, e o sombrio gozo no coração do sinistro.
Desejar-vos a luminosa cola túrgida feito um veneno de iridescente apelo, e aprender à margem dos meus escombros de mim o quanto falhos fomos; e velhos em nossas luzes. Luzes?
Mais vale a alma sucinta do besouro para sempre condenado à uma morte de bruços, e cheia de pernas.
Perdoa o que fui de vosso látego e anátema; perdoa.
Então, amor, é que acendes, de inopino, toda uma floresta no escuro.
Formigas
Uma formiga de asas o que te supus, nupcial, bailarina, o império do vôo em véu por lâmpadas e candelabros – não, jamais este rastro de mínimas partículas provendo a casa, a cozinha, diligente suprindo a despensa de nossa casa.
Um oito de pernas és o que és andando o ninho, salivando abundante as crias com o insensato dom de reproduzir, aos milhares, aos milhões, a replicante sina de sua microscópica grafia.
Duro ferrão em riste a ríspida fagulha com que de noite me mordes, dilaceras?, o lábio, o braço, a exausta virilha, e passa-me ao sangue o veneno mortal de sua minúscula mandíbula.
Com raiva de nosso amor com raiva, da varanda assisto a você no jardim levando ao ombro as grandes folhas.
Te xingo, na cara te xingo – Tanajura! Tanajura!
Bicos-de-lacre
Mínimos, ciscos, sínteses, a parelha é quase um par de besouros voejando o ninho que deram de construir na velha acácia, esta que entrando janela adentro, vem, de longo tempo, assistindo-me a viver e a morrer todos os dias.
O ninho, ao modo de uma comprida meia, guarda ao fundo dois ovinhos azuis e se dependura do galho – embora os ventos e as tempestades, o sol do meio-dia e a orquestração de luz mal se levante do muro a manhã coalhada de passarinho, se dependura e balança – sublime trançado.
Punhal e agulha golpeio-te, num só arremesso de bico e dardo, o fundo do fundo do coração.