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Mais um tijolinho haicaiano

Ora, pois!




EntradaIsaías

Dizem os deuses oniscientes
        (e os há muitos por aí, a predicar seus conhecimentos
        sobre a eternidade e o efêmero)
que orar faz bem, acalma o espírito angustiado
e traz paz à alma.

Mas o que entendem eles de espíritos e de almas
se não conheceram os corpos de suas criaturas,
celas osseocarnais em que somos obrigados a viver?
Ou então, se às suas imagens e semelhanças fomos talhados
terão eles elementos sensoriais que simulam
a dor que deveras sentimos?
E por que inventaram a dor, os artesãos astrais?
Não poderiam ter-nos feito com matéria quintessenciada
e tênue, sutil e indolor?
 
Pedem os deuses oniscientes
que os adoremos e ocupemos seus templos e nosso tempo com orações.
Mas, na sua omnisciência, não sabem o que desejamos
e reiteramos nas preces e nas súplicas?
 
Afirmam os deuses oniscientes,
por meio de seus tradutores e supostos representantes,
que temos livre arbítrio, mas nos ameaçam com punições
se seguimos rotas inexistentes nos manuais celestes. 
 
Afirmam os deuses oniscientes que vaidade é egolatria
e egolatria é soberba, e soberba é pecado capital.
Mas porque aceitam as idolatrias a si dirigidas,
algumas desperdiçadas em custosos altares?
 
Recomendam os deuses oniscientes
permanentes prédicas para lembrá-los,
deuses e santos onissapientes e talvez desmemoriados,
que existimos aqui embaixo,
em estado de permanente de aflição.
 
Mas o que é oração, senão um evento unidirecional,
com respostas desprezadas, equivocadas e incompletas?
Deploro a vossa insegurança, senhores dos recônditos abissais,
ao sustentar vosso poder na ameaça às vossas frágeis criaturas
com castigos junto a Hades ou Belzebu
per saecula saeculorum.
 
Ora, pois, senhores deuses que tudo sabem,
cansei do meu silêncio
e me apresento em completo estado de nudez de alma,
sem artifícios literários ou de pretensa santidade,
pois santo não quero ser.
Sou o homem simples da terra esfarelada
do barro da primeira cerâmica factum in caelo
que recolheu, em uma quase completa existência,
todos os impostos a mim impostos sem maiores explicações,
a não ser o fato de que fui depositado no círculo vital
sob as condições de respirar manentemente,
alimentar-me de quando em quando,
trabalhar para patrões políticos,
multiplicar-me algumas vezes
e, diante de dúvidas filosóficas,
 
Ora, pois, aqui estou.
Nem recuo, nem avanço:
balanço na ponte entre o nada e o não sei onde.
Pergunto a vós: irei aonde?
 
        Mas de resposta somente o silêncio atroz.
 
Tudo atribuo a este meu ranço
de coisa antiga, sempre queixosa e inútil,
de coisa fútil e malcheirosa.
Quero ser ímpar, mas sou par de todos os homens
e das mulheres sem soluções,
sem o consolo baldado de orações.
 
O andar trôpego dos beberrões
marca meus passos. Não sinto abraços
ou o puro carinho das crianças
nessas andanças sem roteiro e horizonte.
Sou poeira universal, menos que um grão cortado ao meio
crendo-me montanha imortal.
Melhor cumpriria tal fado secreto
se filho fosse de Lethe,
sem a sede pelas águas do Mnemósine.
 
Ora, pois, ó deuses que tudo sabem,
não me impeçam mais o prazer do agora
sem a fantasia daquele que ora
pelo deleite nubívago do depois.
 
Curitiba, 06/02/2020
 

Dia Mundial da Poesia

Há cinco anos, fiz uma homenagem a José de Anchieta, o poeta que inaugurou a arte em terras brasileiras, anos após o descobrimento, com a publicação de seu longo poema dedicado à Virgem Maria, em Latim e Português. O passar do tempo permitiu-me outro encontro com educador jesuíta, por meio de meu trabalho no Conselho Estadual de Educação do Paraná, que abriga uma Sala José de Anchieta, onde se reúne o Conselho Pleno. Neste princípio de ano, já a despedir-me de minhas funções administrativas (continuo como Conselheiro Suplente), a mudança daquela sala para o primeiro andar do prédio ora ocupado pelo CEE/PR me fez tomar uma decisão, contada abaixo, em um texto remodelado e que serviu de base para uma palestra aos Conselheiros, no dia 19 de março de 2019, aniversário de José de Anchieta. Com a republicação, faço também minha homenagem ao Dia Mundial da Poesia, uma vez que o agora São José de Anchieta inaugurou a arte poética no Brasil. – C. de A.

José de Anchieta, por Cleto de Assis/2019

Alguns historiadores defendem que o missionário jesuíta que aqui viveu de 1553 a 1597 foi primeiro poeta brasileiro. Conta-se que ele escreveu um longo poema dedicado à mãe de Jesus nas areias da praia de Iperoig, nome antigo de Ubatuba, no litoral paulista. Diz a tradição, quase ou puramente lendária, que Anchieta teria escrito esse poema com o auxílio de um cajado ou caniço. Pelo menos é assim que o representam em pinturas, como a imaginada por Cândido Portinari, em pelo menos duas versões.

Quando ocorreu a transferência da sala do Conselho Pleno do Conselho Estadual de Educação do Paraná (CEE/PR) do segundo para o andar térreo, alguém colocou na parede frontal o retrato de Tiradentes, que faz parte de nosso acervo. Imediatamente imaginei que o lugar teria que ser ocupado pelo patrono da sala, José de Anchieta. E decidi pintar um quadro que significasse a homenagem física, uma vez que já havia estudado sua figura histórica, quando publiquei um ensaio em meu blog de poesia. Imaginei o Anchieta poeta, o Anchieta educador, o Anchieta desbravador, o Anchieta pacificador – todos estes mais humanos que o Anchieta taumaturgo, como grande parte da população brasileira o considera. Nas facetas descritas, admiro o Anchieta poeta, que desfiava as línguas aprendidas em imensos e sensíveis poemas. Talvez o primeiro poeta brasileiro, ou a desenvolver a arte da poesia sob o sol tropical de Pindorama.

José de Anchieta nasceu em San Cristobal de La Laguna, em Tenerife, uma das sete ilhas do arquipélago das Canárias, Espanha, em 19 de março de 1534, portanto há exatos 485 anos. José foi o nome escolhido por ter nascido no dia de São José, no calendário cristão.

Pertenceu a uma família nobre de 12 irmãos, um dos quais também seguiu o sacerdócio. Sua mãe era natural das Ilhas Canárias, filha de judeus cristãos-novos. Seu pai, um nobre basco. O avô materno, Sebastião de Llarena, era um judeu convertido do Reino de Castela. Mas José de Anchieta abandonou suas origens ao escolher uma vida missionária.

Em 1551 foi estudar em Coimbra, Portugal, local onde teve o primeiro contato com a Companhia de Jesus, por meio de Francisco Xavier, um dos fundadores da ordem. Já aos 17 anos definiu sua vida religiosa. Na Companhia fundada recentemente por Inácio de Loyola, com quem Anchieta tinha laços de parentesco, fez um noviciado exigente, e mesmo com a saúde frágil adotou seus votos de castidade, pobreza e obediência.

Em 1553, com apenas 19 anos, foi enviado para o Brasil com missão evangelizadora. Mas deveria continuar seus estudos, pois ainda não era sacerdote. Estudava Filosofia, Teologia, em meio a seu trabalho catequista, dando aulas e conhecendo melhor o povo indígena. Para melhor evangelizar, respeitava a cultura dos índios e procurou aprender a língua Tupi-Guarani. E foi além: estruturou gramaticalmente o idioma dos índios, ao escrever um vocabulário, uma gramática e diversos opúsculos para os evangelizadores. Conhecia muito bem o Latim, o Espanhol e o Português, o que lhe facilitou a abertura ao trabalho literário. Hoje é considerado o iniciador da poesia e da dramaturgia brasileiras, deixando cantos piedosos, poemas e autos e diálogos ao estilo de Gil Vicente, espalhados entre os primeiros colégios brasileiros fundados pelos Jesuítas, a partir de São Paulo.

Suas cartas, enviadas a Portugal, inclusive algumas endereçadas a Inácio de Loyola, se tornaram fonte preciosa para o registro da história brasileira daquela época, além de contribuições para o estudo da fauna, da flora e da ictiologia local e da coleta que fez sobre aspectos etnológicos e folclóricos.

Mas nem tudo era paz nas relações com os habitantes da nova terra. Mais ao interior viviam os Tamoios, povo bravio, que trariam dificuldades aos trabalhos de aproximação. Nesse sentido, foi fundamental a sua tarefa como intérprete de Manoel da Nóbrega, seu chefe provincial, que procurava salvar da destruição as primeiras colônias do litoral paulista.

Nessa ocasião, permaneceu vários meses preso, como refém dos indígenas, para facilitar o trabalho de Nóbrega. Foi nessa situação que teria escrito o seu poema A compaixão e o pranto da Virgem na morte do Filho, primeiro em Latim (De compassione et planctu virginis in morte filii), em plena praia, utilizando um bastão. Não se pode duvidar que ele possa ter utilizado a grande lousa de areia para ensinar os indígenas, escrevendo algo aqui e ali, ou mesmo para ensaiar versos.  Mas seria um ofício grandioso escrever 4172 versos – esta a medida de seu poema – na areia e guardá-los na memória para, mais tarde, transcrevê-los no papel e traduzi-lo ao Português. Milagre de um futuro santo?

Em 1566 foi enviado à Capitania da Bahia com o encargo de informar ao governador Mem de Sá sobre o andamento da guerra contra os franceses, possibilitando o envio de reforços portugueses ao Rio de Janeiro. Somente nesta época foi ordenado sacerdote, aos 32 anos de idade.

Sua admiração pelo Governador-geral, fundador do Rio de Janeiro, era grande e a ele dedicou outro enorme poema, considerado pelos exegetas como obra comparável aos poemas de Homero, por ele denominado De Gestis Mendi de Saa, ou Os feitos de Mem de Sá.

Após a expulsão dos franceses da Guanabara, Anchieta e Manuel da Nóbrega teriam motivado Mem de Sá a prender, em 1559, um refugiado calvinista, o alfaiate Jacques Le Balleur, e a condená-lo à morte por professar “heresias protestantes”. Em 1567, Jacques Le Balleur foi preso e conduzido ao Rio de Janeiro para ser executado. Porém o carrasco teria se recusado a executá-lo ou teve dificuldades para fazê-lo prontamente. Diante do fato e talvez até movido por piedade, Anchieta o teria estrangulado com suas próprias mãos. Essa história foi bastante discutida durante o processo de canonização de Anchieta. O episódio é contestado como apócrifo pelo maior biógrafo de Anchieta, o padre jesuíta Hélio Viotti, com base em documentos que, segundo o autor, contradizem a versão. Investigações históricas, baseadas em documentos da época (correspondência de Anchieta e manuscritos de Goa) corroboram essa versão absolvedora de Anchieta, quando revelam que Balleur não morreu no Brasil. Teria sido conduzido a Salvador, na capitania da Bahia, e dali mandado a Portugal, onde teve o seu primeiro processo concluído em 1569. Em um segundo processo, no Estado Português da Índia, foi finalmente condenado pelo tribunal da Inquisição de Goa, em 1572.

Anchieta dirigiu o Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro por três anos, de 1570 a 1573. Em 1569, fundou a povoação de Reritiba (ou Iriritiba), atual Anchieta, no Espírito Santo. Outra ação memorável da vida de Anchieta é a fundação da cidade de São Paulo pelo grupo de jesuítas que ele comandava, ao lado de Manoel da Nóbrega, a 25 de janeiro de 1554. Com o objetivo de catequizar os índios que viviam na região, os jesuítas ergueram um barracão de taipa de pilão, em uma colina alta e plana, localizada entre os rios Tietê, Anhangabaú e Tamanduateí, com a anuência do cacique Tibiriçá, que comandava uma aldeia de guaianases nas proximidades.

Em 1577 José de Anchieta foi nomeado Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, função que exerceu por dez anos, até sua substituição, a pedido, em 1587. Retirou-se para Reritiba, mas teve ainda de dirigir o Colégio dos Jesuítas em Vitória, no Espírito Santo. Um equívoco histórico levou Anchieta a ser considerado o primeiro professor brasileiro. Mas esse mérito pertence a um colega seu, chegado ao Brasil antes dele, em 1549, com Tomé de Souza, que desembarcou na Bahia com a primeira missão jesuítica. Era Vicente Rijo, português, nascido no ano de 1528, em Sacavém, nas proximidades do rio Tejo, e falecido no Brasil, em 1600. Vicente rijo é historicamente considerado como o primeiro mestre-escola do Brasil, fundador de uma pequena escola na Bahia, por volta de 1549. Conviveu com Anchieta por algum tempo, quando se trasladou para a região hoje ocupada pelo Rio de Janeiro e o Espírito Santo.

Em 1595, José de Anchieta obteve dispensa das funções de Provincial e conseguiu retirar-se definitivamente para Reritiba, onde faleceu, em 1597. Seu corpo foi sepultado em Vitória. Beatificado em 1980 pelo papa João Paulo II e canonizado em 2014 pelo papa Francisco, é conhecido, no mundo católico, como o Apóstolo do Brasil.

Volto à reflexão inicial: Anchieta não foi o primeiro poeta brasileiro, mas o certamente o autor do primeiro poema aqui composto. Outros poetas ter-lhe-ão sucedido. A história registra, em primeiro lugar, somente o nome de Gregório de Matos Guerra, nascido em Salvador – BA, em 1636 e falecido no Recife – PE, em 1695.

A Presidente do do Conselho Estadual de Educação, Conselheira Maria das Graças Figueiredo Saad, e o ex-Presidente Oscar Alves, descerram quadro de Anchieta, com o autor, Cleto de Assis

E finalizo com uma pergunta decorrente: qual foi o primeiro livro escrito no Brasil? Muitos preferem entregar o mérito ao primeiro libro publicado no Brasil, que foi “Marília de Dirceu” escrito em Portugal, pelo poeta Tomás Antônio Gonzaga, luso-brasileiro nascido na cidade do Porto, em Portugal. Mas os versos de Gonzaga somente chegaram ao prelo em 1792, em Lisboa, quando o poeta já cumpria o exílio em Moçambique, por sua participação da Inconfidência Mineira. no Brasil. A bem da verdade, o primeiro livro escrito no Brasil, embora publicado na Europa, foi a gramática de José de Anchieta – “Arte da Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil” –  que, junto com uma versão da figura de Anchieta, entrego à Presidente Maria das Graças Figueiredo Saad. Não esperem ver um retrato clássico ou quase fotográfico do jesuíta luso-brasileiro, homenageado com seu nome nesta sala do Conselho Estadual de Educação do Paraná. Não existem registros iconográficos de sua pessoa física, apenas a imaginação de alguns pintores, que lhe deram a imagem de uma pessoa combalida, de cabelos grisalhos e já com a doença que o distanciou das praias brasileiras a tomar conta do corpo e do espírito. Pensei em Anchieta como o primeiro grande comunicador do solo brasileiro, mais importante até do que Pero Vaz e Caminha, escrivão do primeiro relatório sobre as terras de Santa Cruz. Pensei em Anchieta como educador, razão porque recebeu a homenagem do Conselho Estadual de Educação do Paraná. Pensei em Anchieta em sua visão humanizante dos índios brasileiros, em uma época em que se discutia se os indígenas tinham alma. Fui ao encontro de uma alegoria, baseado em um retrato pintado por Oscar Pereira da Silva, em 1920, e que pertence ao acervo do Museu Paulista da USP. Pensei em um Anchieta que cumpria o sonho registrado no último verso do poema dedicado a Maria, aqueles lendariamente escritos nas areias de Iperoig:

Vivere dulce dies, hic mihi dulce mori! Viver e morrer com prazer, este é o meu grande desejo.

Os encontos de João Defreitas

O tempo da memória

Conheço João Correia de Freitas há muitos anos. Convivemos em Brasília, quando assessoramos o então Ministro da Educação, Ney Braga. Tínhamos filhos ainda pequenos, quase coetâneos, que reforçaram o elo de amizade entre as duas famílias. Depois do exílio planaltino, nos reencontramos em Curitiba. Como diretor pedagógico da Facinter, núcleo inicial do atual grupo Uninter, ele convidou-me para auxiliar na implantação da metodologia de Educação a Distância em sua faculdade, ao lado do fundador Wilson Picler. Ali consolidamos nossa amizade, que perdurou mesmo após meu desligamento da instituição.

Parnanguara nascido e juramentado, Defreitas sempre revelou, em nossas conversas, os momentos de sua vida no litoral paranaense e, mais tarde, nas suas andanças pela Europa, onde viria conhecer a açoriana Alda Aguiar dos Santos Pereira. Por ela apaixonou-se e tiveram uma primeira filha portuguesa, antes de se mudarem definitivamente para o Brasil.

João Correia Defreitas

Com o advento da Internet e das redes sociais, Defreitas, já afastado das lides educacionais, passou a compartilhar suas memórias com amigos reais e virtuais, em croniquetas bem humoradas que sempre mereceram elogios de seus leitores. Historinha vem, historinha vai e a saudade manifesta o desejo de converter-se em texto gravado em letras de forma. O projeto foi entregue às mãos de uma editoria quase familiar. Sua filha, a arquiteta Mônica Defreitas Smythe, responsabilizou-se pela elevação poética dos textos, adornando-os com belas aquarelas. O genro, Nelson Smythe Jr. fez o projeto gráfico, também inspirado nas harmonias das palavras editadas. E não faltou a organização da amiga e antiga colega Profa. Vilma Aguiar, que também prefaciou a obra. A última pincelada foi da Editora Intersaberes, da Uninter, que cumpriu primorosamente o trabalho de editoração.

Como se trata de recordações, o livro tomou, simbolicamente, o formato de álbum de fotografias, daqueles em que as mamães colavam a vida de suas famílias, desde os próprios casamentos, passando pelo nascimento dos filhos, aniversários, férias, casamento dos descendentes. Antes, é claro, da fotografia digital, que encerrou a vida dos retratos revelados em laboratório especializado.A profusão das fotos feitas a cada instante pelos telefones celulares já não alimenta os relicários imagéticos familiares:  são guardados nos arquivos eletrônicos ou nas nuvens celestiais da informática.

Nas primeiras páginas, o altar carinhoso erigido na homenagem a Alda , a companheira que ajudou a fazer de João o mais lusitano dos parnanguaras. É bem possível que, em sua alma, o escritor tenha juntado as paisagens daqui e da península ibérica, modelando-as na memória com imagens comuns, que, sem serem rigorosamente bucólicas, guardam a simplicidade dos costumes, a tranquilidade da vida em contato com as pessoas simples e seus hábitos peculiares.

Li O tempo da memória em uma só assentada. Ou melhor, assentado em uma cadeira envolta no burburinho do público que compareceu ao lançamento. Um verdadeiro refrigério espiritual naquela manhã calorenta de sábado. Saí dali com maior admiração por meu amigo dileto. O único reparo – que tratei de comunicar ao autor – é a inexistência de um glossário, tanta a riqueza dos vocábulos regionais que ele apreendeu em suas andanças pela terrinha. Mas isso serviu de tempero extra para as narrativas minimalistas. E também me fez lembrar de José Paulo Paes (poeta a quem dedicarei, em breve, um lugar no Banco da Poesia), em seu poema Lisboa: Aventuras.



tomei um expresso
                                                           cheguei de foguete
subi num bonde
                                                           desci de um elétrico
pedi cafezinho
                                                           serviram-me uma bica
quis comprar meias
                                                           só vendiam peúgas
fui dar à descarga
                                                           disparei um autoclisma
gritei “ó cara!”
                                                           responderam-me “ó pá!”
                                                           positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá


                                        ******

Sem pretender roubar dos próximos leitores do Prof. Defreitas as surpresas e os sabores de seus textos, não posso deixar de transcrever, à guisa de amostra grátis, as palavras dedicadas à sua Avó:

“A única lembrança que tenho de minha avó é essa historinha que ela contava: ‘Da morte ninguém escapa, nem o rei nem o papa. Mas hei de escapar eu: compro uma panela, que me custa um vintém. Meto-me dentro dela e tapo-me muito bem… Então, a morte passa e diz: Huum… quem está aí? Eu digo: aqui. Aqui não tem ninguém!!!’ Enfim, nunca a entendi muito bem, mas nunca esqueço da avó e dessa história. Foi a herança que ela me deixou.”

FotoLivro.png

Finalmente, também a serviço dos próximos leitores, devo dizer-lhes que não esperem contos ou crônicas de aprofundada reflexão. João Defreitas nos regala belos e poéticos momentos de sua memória. Encontros com a vida. Encantos. Encontos. Cleto de Assis/dez.2018

                                                          


Não perca!

Compareça ao lançamento

Palavras_anuncio

No dia 25, quarta-feira, 19h30, nas Livrarias Curitiba
Av. 7 de Setembro (Shopping Estação)
Manoel de Andrade lança seu novo livro
As palavras no espelho

***

Manoel de Andrade novamente nas livrarias

As palavras no espelho

“Así es la verdad – respondió don Quijote -, y si no me quejo del dolor, es porque no es dado a los caballeros andantes quejarse de herida alguna, aunque se le salgan las tripas por ella.”
Don Quijote de la Mancha, por Miguel de Cervantes

Faltava ao cavaleiro andante que atende pelo nome de Manoel de Andrade, poeta cataranaense[*] de alto coturno, abrir seu baú e expor as suas relíquias ainda não publicadas, ou editadas esparsamente por ele e diversos observadores de sua obra. Aberta a arca literária, surgiram as palavras agora refletidas em um espelho mágico, que refletem não só reflexões sobre o mundo em transformação em que cresceu, sobreviveu e ainda vive, mas também entrevistas concedidas, comentários, referências de outros escritores. E alguns poemas novos, porque a poesia sempre está presente diante do espelho do autor:

         “E agora, eis-me diante da poesia,
         Assistindo desabar as velhas torres do encanto…
         Perplexo, que posso ainda?
         Sou apenas um olhar melancólico diante da esperança.”

           Esperança e desencanto, que se transformam, na sequência do poema, em espanto e indignação, a esperança a projetar-se, cada vez mais, aos longínquos horizontes utópicos.

Não se trata, é claro, de um livro de memórias, embora as remembranças auxiliem a entender melhor sua trajetória neste mundinho de deus, no qual o intrépido ginete caçou dragões e perseguiu utopias. Vencedor em todas as liças? Nem sempre, eis que os dragões às vezes se transformavam em legiões e as quimeras se esvaneciam com o passar do tempo e pela força das revoluções silenciosas. Comprovam as palavras no espelho a dicotomia imposta à sua alma honesta e generosa, na qual comungam o ardor da luta social e o fervor da fé no mundo transcendente. Sempre, evidentemente, em benefício da realização do ser humano.

No galhardete de sua lança guerreira, sempre presente a palavra Poesia, também trincheira corajosa, cuja força expressiva opunha-se, por vezes, aos mais fortes gladiadores de plantão. Detalhes dessa saga moderna em seu livro “Nos Rastros da Utopia”, lançado em 2014.

Manoel de Andrade, revisitado em seu novo livro “Palavras no Espelho”, coincide com o jovem de espírito libertário que viveu intensamente o ano de 1968 e agora aproveita o aniversário cinquentão do movimento mundial que construiu uma esquina significativa na história da sociedade contemporânea. Sua mais recente obra inicia com uma revisão daquele ano, marcado, de janeiro a dezembro, pela manifesta insatisfação da sociedade humana em praticamente todos os quadrantes do planeta. Mas atentemos para o artigo precedente, batizado como “Nota do Autor”, no qual M.A. faz uma apologia ao livro impresso e explica porque recorreu à mídia gutenberguiana para publicar essa coletânea de escritos jogados à face de um espelho rútilo. Sem desmerecer sua tese, ele confessa que também utiliza o mundo virtual de tantos amigos e admiradores de sua obra, o novo suporte de registro do conhecimento que veio para democratizar a informação, não mais apanágio das cabeças intelectualizadas ou das bibliotecas físicas. Para encanto de M.A., podemos dizer que o ambiente digital é a verdadeira socialização da palavra, que tem tanta ou mais proteção do que a mídia impressa. (Uso aqui a antítese para comemorar os tantos diálogos que já desenvolvi com o autor de “As palavras no espelho”, eu sempre em defesa nos novos meios de comunicação, hoje ainda conturbados por se situarem em um período de transição e de nítido mau uso de seus processos. Mas benditos os de nossa geração, formados no universo de Gutenberg e ampliados nos sonhos de Bill Gates e Steve Jobs.)

Sem leitura linear obrigatória, o livro é notavelmente prazeroso. Pode-se absorvê-lo sem as cadeias do enredo, sete capítulos a formar uma mesa de sabores e saberes palatáveis ao gosto dos amadores e dos glutões literários.

Palavras_banco

Lançamento marcado para o dia 25 de julho de 2018, às 19h30, Livrarias Curitiba (Av. 7 de Setembro, 2775 – Shopping Estação), em Curitiba

Mas não se pense em uma coleção de retalhos. Registrei, no início, que são relíquias acomodadas pelo tempo em um relicário precioso. Libertos do baú, revelam um patchwork artesanalmente bem formado, delicadamente forrado para o conforto da boa leitura.

Últimas palavras: sou grato a Manoel de Andrade pela inclusão de textos meus em seu novo livro e pelo convite, aceito com o maior prazer, para desenhar a capa.


 [*]Dizia o igualmente ilustre paranaense nascido em Blumenau (SC), Karlos Heinz Rischbieter, que os antepenúltimo e  penúltimo estados do sul brasileiro deveriam ser unidos em um único topônimo, como Cataraná ou Paranarina (união de Paraná e Santa Catarina), em razão de suas origens culturais, semelhanças do processo colonizatório e aproximações econômicas. Daí o gentílico cataranaense usado para identificar M.A., nascido em Rio Negrinho (SC), criado em Itajaí, também naquele estado, e transferido ainda jovem para Curitiba, onde encontrou seus destinos seguintes.

 

Insomnia

Vem, sono

Vem, sono

Vem, sono vertical e manso,
cerra meus olhos e lança-me às águas dos Oniros
para que eu flutue na inconsciência (quase) absoluta
apenas guiado por Hipnos,
sem perturbar-me pela ilusões de Fantasos ou de Fobetor.
Preciso apenas dormir, dormir simplesmente.
Esquecer-me dos aguilhões da dor
que servem somente para lembrar-me:
“Tu és vivo e em agonia purgarás”.
Retorna-me ao abissal útero de Gaia,
pulsante e acalentador,
onde se encontra o perdido limbus infantum,
no qual pecados ou culpas são inefáveis.
Vem, sono fugidio.
Ensina-me teu ofício apaziguador
e permita que Nix estenda sobre meu corpo
sua colcha diáfana e tépida
untada com essência de papoulas
para que eu possa, finalmente,
alcançar as águas sussurrantes do Lete,
imerso na tranquilidade  do olvido.

Curitiba, madrugada insone de 12 de dezembro de 2017.

O verdadeiro Cine Fenix

Ressurgido das cinzas

Existe, no Paraná, um Cine Teatro Fenix, mantido pela comunidade de Apucarana. Mas o que mereceria assim chamar-se é o Cine Teatro Universitário Ouro Verde, de Londrina, literalmente ressurgido das cinzas, após o incêndio que o atingiu, em fevereiro de 2012. Já totalmente restaurado e atualizado, com relação às suas especificações técnicas, ele retorna para continuar como coração dos eventos os eventos que levaram à sua aquisição, em 1878. A historinha está contada aqui no Banco da Poesia. Retorno com ela porque a memória do povo é curta e a própria UEL, hoje, não a conta inteiramente, quando apenas fala que o cinema foi adquirido pela Universidade em 1978. Não foi. Ney Braga, então Ministro da Educação e, em seguida, governador do Paraná, foi o responsável principal pela compra do cinema e sua doação à UEL, juntamente com Jayme Canet Jr., governador naquela época.

Tenho orgulho por ter participado dessa história, portador que fui da notícia a mim passada por Walmor Macarini, em 1978, sobre a possível venda do cinema pertencente à família Garcia Cid. Abortamos a negociação então em andamento com um banco e. graças à sensibilidade de Ney Braga, o cine Ouro Verde consolidou-se como uma grande centro cultural que hoje também orgulha os londrinenses.

Mais um abraço para a Poesia, em seu dia

Banco da Poesia

Desencanto

Manuel Bandeira

Manuel Bandeira - 1986-1968 Manuel Bandeira – 1986-1968

Eu faço versos como quem chora
De desalento… de desencanto…
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente…
Tristeza esparsa… remorso vão…
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

– Eu faço versos como quem morre.

Ver o post original

Finalmente, a casa predileta

A casa … Não sei quando nasceu… Era a meio da tarde, chegamos a cavalo por aquelas solidões … Don Eladio ia adiante, vadeando o banhado de Córdoba que havia aumentado… Pela primeira vez senti como uma pontada este cheiro de inverno marinho, mescla de boldo e areia salgada, algas e cardos… Aqui, disse don Eladio Sobrino (navegante) e ali ficamos. Logo a casa foi crescendo, como a gente, como as árvores.

Manuscrito_isla_negra

Em 1937, de volta ao Chile, obrigado a sair da Espanha pela ocorrência da Guerra Civil Espanhola, Neruda procurava um lugar onde pudesse se dedicar a um novo projeto literário, uma obra portentosa que viria a se chamar Canto General (Canto Geral), na qual o poeta reuniu os mais diversos temas, usando vários gêneros e técnicas para contar e cantar a sua América Latina, no princípio – como na gênesis bíblica – puro paraíso, sem nomes e sem homens. Depois, revive a história humana da América Latina, que começa nos pináculos de Machu Pichu e se espraia pelo continente, primeiro em sua origem indígena, depois atropelada pelos conquistadores.

A sonhada tarefa, porém, somente foi concluída mais tarde, depois de longa peregrinação do poeta pelas rotas políticas de seu país. Na década seguinte ao início de construção da casa de Isla Negra, eleito senador e envolvido em intensa discussão política, que lhe valeram a cassação da função senatorial, Neruda sofreria grande perseguição política do governo do então presidente González Videla e foi obrigado até mesmo a sair do país, refugiando-se na Argentina.

Sua amada Matilde Urrutia, nas memórias que deixou (Minha vida com Pablo Neruda) relata que ele “havia sonhado e lutado toda a vida pela erradicação da pobreza; queria que em seu país houvesse justiça social, um pouco de igualdade. Colocou sua pena e sua vida a serviço desta causa nobre. Muitas vezes arriscou sua integridade física perseguido por González Videla, que considerávamos um tirano. É que não conhecíamos a tirania de fato. (…) Sempre animado, entusiasta, alegre, falando às massas, tentando despertar a consciência adormecida e fatalista dos pobres que se contentam com as esmolas do nada!” O poeta sofre com o que chamava de opressão dos povos latino-americanos e sua altissonância poética o leva a concluir a obra quase enciclopédica, formada por 15 seções e 231 poemas, finalmente publicada em 1950, no México.

Apesar de se voltar quase que inteiramente à saga dos povos latino-americanos, no final de seu Canto Geral Neruda assina a extensa obra falando sobre sua morte e deixa dois testamentos e disposições gerais, à guisa de um estatuto da América nerudiana.

Adquirida a casa do marinheiro espanhol, entre 1943 e 1945, e com a ajuda do arquiteto catalão Germán Rodríguez Arias, Neruda fez no novo refúgio uma série de ampliações. Quis domesticar o Pacífico, mas não conseguiu. Como já registrei em outro texto, ele um dia escreveu: “Não sei que fazer com ele, ele saía do mapa. Não sabia onde colocá-lo. Era tão grande, desordenado e azul que não cabia em nenhuma parte. Por isso o deixaram frente a minha janela”. Para não se desmentir, Neruda colocou janelas em quase todas as paredes que olham para o mar. Janelas que dominam todo o Pacífico que, por sua vez, domina a casa predileta do poeta.

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O início da construção da residência de Isla Negra foi acompanhada por Delia del Carril, que desfrutou-a intensamente. Já casado com Matilde Urrutia, Neruda fez ampliações na casa, em 1965, que tornaram ainda mais fantástico o poema de pedra e madeira que continuamente rearranjava.  Já na sala de estar foram colocadas carrancas, ou figuras de proa, adquiridas em várias do mundo. Duas medusas estão voltadas permanentemente para o Pacífico e, ainda, um grande chefe comanche, uma sereia e outras tantas figuras emblemáticas. Todas as figuras contam suas histórias, carregadas de amores e de enfrentamento de naufrágios e de lutas oceânicas. Quadros e mais quadros, alguns trecos que se transformaram em relíquias.

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Mascarones

Da sala de estar passamos aos demais ambientes, construídos à maneira do arquiteto de sonhos e de casas sonhadoras. Em meio à infinidade de objetos reunidos pelo colecionista descobrimos relíquias folclóricas doadas pelo amigo Jorge Amado, como a coleção de garrafas com areias coloridas das praias do Nordeste brasileiro e pequenas esculturas religiosas também engarrafadas. Coleções de cachimbos, de aparelhos náuticos, de esculturas da Ilha de Páscoa, o telescópio doado pela Embaixada da França que chegou a Isla Negra depois da morte do poeta, os bares, as louças, uma profusão de máscaras africanas e fotografias de seus ídolos, entre os quais Whitmann e Rimbaud.

Cama de Neruda, onde ele passou seus últimos dias de Isla Negra. Sobre a cabeceira, a ovelhinha de pano comprada na França, que lhe recordava a infância

Cama de Neruda, onde ele passou seus últimos dias de Isla Negra. Sobre a cabeceira, a ovelhinha de pano comprada na França, que lhe recordava a infância

Na parte íntima da casa, conservam-se roupas e objetos pessoais de Pablo e Matilde. A cama, de onde ditou os seus últimos textos. E, na extremidade da construção, que se alonga como o mapa do Chile, o seu escritório, onde guardava uma escrivaninha de madeira – única recordação que conseguiu conservar de seu pai. Em uma pequena sala contígua, o cavalo em tamanho natural, admirado pelo menino de Temuco e adquirido, anos mais tarde, quando o poeta recebeu a notícia de que o armazém que o mantinha como objeto de propaganda tinha se incendiado. (Neruda o levou, ainda chamuscado, para Isla Negra, e providenciou uma festa, na qual exigiu que os convidados levassem presentes para o cavalo, o que possibilitou uma completa restauração.) Ao final do conjunto, uma sala com a coleção do malacólogo amador Pablo Neruda – conchas recolhidas em várias partes do mundo e que foram classificadas, mais tarde, por especialistas.

O cavalo de Temuco, restaurado por presentes de amigos do poeta. Neruda dizia que era o único cavalo do mundo com rabo de três cores. A porta à esquerda, acima, é de um pequeno banheiro "só para homens" e decorado com postais eróticos antigos.

O cavalo de Temuco, restaurado por presentes de amigos do poeta. Neruda dizia que era o único cavalo do mundo com rabo de três cores. A porta à esquerda é de um pequeno banheiro “só para homens”, decorado com postais eróticos antigos.

Calcula-se que são mais de três mil e 500 objetos, ou coisas, como dizia o poeta, cobrindo todas os recintos da residência. Mas a variedade das coleções sempre tem cheiro de mar: “Eu sou um amador do mar, e há muito tempo coleciono conhecimentos que não me servem muito porque navego sobre a terra”.  Perguntado sobre sua especialização como colecionista, ele respondeu: “Sou ‘coisista’, gosto de colecionar coisas”…

No extremo sul da casa de Isla Negra, o escritório de Neruda. A mesa foi feita com uma porta de navio encontrada no mar. Sobre ela, utensílios de trabalho do poeta e a réplica da mão de Matilde, em bronze. Na parede à esquerda, uma escrivaninha que pertenceu a seu pai - único objeto paterno que conseguiu recuperar - e onde teria escrito o seu primeiro poema, dedicado a sua mãe.

No extremo sul da casa de Isla Negra, o escritório de Neruda. A mesa foi feita com uma porta de navio encontrada no mar. Sobre ela, utensílios de trabalho do poeta e a réplica da mão de Matilde, em bronze. Na parede à esquerda, uma escrivaninha que pertenceu a seu pai – único objeto paterno que conseguiu recuperar – e onde teria escrito seu primeiro poema, dedicado a sua mãe.

O escritório, visto da parte externa. Conta-se que foi por esta janela que o poeta teria avistado, boiando nas ondas, a porta de um navio que seria convertida em mesa de trabalho.

O escritório, visto da parte externa. Conta-se que foi por esta janela que o poeta teria avistado, boiando nas ondas, a porta de um navio que seria convertida em mesa de trabalho.

As maiores emoções são recolhidas no exterior, hoje transformado em santuário, desde que foram atendidas as disposições gerais do poeta: “Enterrai-me em Isla Negra…”. Numa espécie de castelo de proa natural, voltado para o oceano, foi construído um jardim onde repousam Pablo e Matilde, após o estranho trânsito de seu corpo por diversos cemitérios e laboratórios.

Neruda em um banco de pedra, voltado para o mar. Naquele momento ele não podia imaginar que bem à frente daquele banco seria colocado seu próprio túmulo, no qual a ele se juntaria, mais tarde, o corpo de Matilde.

Neruda em um banco de pedra, voltado para o mar. Naquele momento ele não podia imaginar que bem à frente daquele banco seria plantado seu próprio túmulo, no qual a ele se juntaria, mais tarde, o corpo de Matilde.

Túmulo de Pablo e Matilde, em Isla Negra

Túmulo de Pablo e Matilde, em Isla Negra

Da tumba do poeta e sua amada avista-se, altaneira, a casa idílica, a primeira a ser construída, a preferida, a que lhe recebeu em seus últimos dias e onde repousa com Matilde e o Oceano Pacífico.

Da tumba do poeta e sua amada avista-se, altaneira, a casa idílica, a primeira a ser construída, a preferida, a que lhe recebeu em seus últimos dias e perto da qual repousa com Matilde e o Oceano Pacífico.

Resta ao visitante menos preguiçoso uma visita às pedras e areias de Isla Negra, já fora dos limites da residência, hoje toda cercada por um muro de madeira. Como sei que o Oceano Pacífico não mudará sua forma nem sua força em razão de minha iconoclastia ambiental, guardei dois bons punhados de areia da praia do poeta para levar ao Brasil, com certeza de que tenho licença e a benção de Pablo Neruda. Uma troca justa, pois já contei que, na casa de Isla Negra, existem várias garrafas com areias de praias brasileiras.

Pelo portão de madeira Neruda tinha acesso à praia e às pedras que o protegiam do furor oceânico e, simultaneamente, emolduravam o mundo líquido que tanto amou. simultaneamente o l

Pelo portão de madeira Neruda tinha acesso à praia e às pedras que o protegiam do furor oceânico e, simultaneamente, emolduravam o mundo líquido que tanto amou. 

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El hombre en el océano

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PoR QUE ISLA NEGRA?

Continua Neruda em sua narrativa do libro “Una casa en la arena”: “Don Eladio morreu, mais tarde. Era andaluz o capitão Sobrino. A última vez que veio nos ver cantou durante toda a tarde canções serranas e marinhas. No mesmo dia que deixou de cantar e navegar para sempre, subi em uma escada e, na grande escuna veleira pendurada sobre a lareira, escrevi seu nome em letras maiúsculas. Assim se chama ‘Eladio Sobrino’(…) sobre a lareira de pedra de Isla Negra navega ‘Don Eladio’. Que bem denominada foi!”

Eladio Sobrino, o primeiro proprietário de Isla Negra

Eladio Sobrino, o primeiro proprietário de Isla Negra

Antes de comprar uma pequena casa de pedra que havia sido construída por Eladio Sobrino, o marinheiro espanhol que, um dia, chegou ao sul do Chile, subiu por sua costa e estacionou seus sonhos de navegador em uma região ao sul de Valparaíso, mais propriamente na província de San Antonio, comuna, ou município de El Quisco. Ali montou residência e família, comprou terras e, em um de suas extensões, colocou o nome de Córdoba, em homenagem à cidade onde nascera. Mais tarde, construiu casinhas de veraneio e foi por uma delas que Neruda o procurou, quando o acesso à costa acidentada da região ainda era difícil.

A praia onde estava a casinha original se chamava Las Gaviotas (Gaivotas), mas a criatividade do poeta logo divisou uma grande pedra escura e passou a chamar o local de Isla Negra, que, de fato, não é ilha nem é negra. O meio ambiente não foi alterado. Ao contrário, o desenvolvimento da residência da Isla Negra deu paisagem mais encantadora ao terreno, uma elevação a poucos metros da praia cheia de pedras que retém os sargaços vindos do mar e com povoação permanente de ruidosas gaivotas. Sua areia é grossa e forma uma pequena praia, ao sul da residência. Em frente à casa, uma muralha de pedras a protege, como um dique natural que tenta acalmar o agitado mar do Pacífico.

Eladio Sobrino também passou a fazer parte da história local. Seus descendentes criaram uma fundação, com seu nome, destinada a trabalhar pela cultura da região. A partir da restauração da casa de Neruda, nos anos 80, todo o município teve rápido desenvolvimento, em razão de ter sido transformado em rota obrigatória dos turistas. E as iniciativas culturais se multiplicam, como foi o caso das bordadeiras protegidas por Neruda, que tiveram uma das filhas de Eladio Sobrino como principal articuladora de suas atividades.

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El Mar

(de Memorial de Isla Negra)

Memorial_islanegra

Necesito del mar porque me enseña:
no sé si aprendo música o conciencia:
no sé si es ola sola o ser profundo
o sólo ronca voz o deslumbrante
suposición de peces y navios.
El hecho es que hasta cuando estoy dormido
de algún modo magnético circulo
en la universidad del oleaje.
No son sólo las conchas trituradas
como si algún planeta tembloroso
participara paulatina muerte,
no, del fragmento reconstruyo el día,
de una racha de sal la estalactita
y de una cucharada el dios inmenso.

Lo que antes me enseñó lo guardo! Es aire,
incesante viento, agua y arena.

Parece poco para el hombre joven
que aquí llegó a vivir con sus incendios,
y sin embargo el pulso que subía
y bajaba a su abismo,
el frío del azul que crepitaba,
el desmoronamiento de la estrella,
el tierno desplegarse de la ola
despilfarrando nieve con la espuma,
el poder quieto, allí, determinado
como un trono de piedra en lo profundo,
substituyó el recinto en que crecían
tristeza terca, amontonando olvido,
y cambió bruscamente mi existencia:
di mi adhesión al puro movimiento.

O Mar

Necessito do mar porque me ensina:
não sei se aprendo música ou consciência:
não sei se é onda só ou ser profundo
ou somente rouca voz ou deslumbrante
suposição de peixes e navios.
O fato é que até quando estou dormido
de algum modo magnético círculo
na universidade da ondulação.
Não são somente as conchas trituradas
como se algum trêmulo planeta
participara paulatina morte,
não, do fragmento reconstruo o dia,
de uma rajada de sal a estalactite
e de uma colherada o deus imenso.

O que antes me ensinou o guardo! É ar,
incessante vento, água e areia.

Parece pouco para o homem jovem
que aqui chegou a viver com seus incêndios,
e no entanto a pulsação que subia
e baixava a seu abismo,
o frio do azul que crepitava,
o desmoronamento da estrela,
o terno desdobra-se da onda
desperdiçando neve com a espuma,
o poder quieto, ali, determinado
como um trono de pedra no profundo,
substituiu o recinto em que cresciam
tristeza teimosa, amontoando esquecimento,
e mudou bruscamente minha existência:
de minha adesão ao puro movimento.

De Canto General

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XXIII

LA MUERTE

He renacido muchas veces, desde el fondo
de estrellas derrotadas, reconstruyendo el hilo
de las eternidades que poblé con mis manos,
y ahora voy a morir, sin nada más, con tierra
sobre mi cuerpo, destinado a ser tierra.

No compré una parcela del cielo que vendían
los sacerdotes, ni acepté tinieblas
que el metafísico manufacturaba
para despreocupados poderosos.

Quiero estar en la muerte con los pobres
que no tuvieron tiempo de estudiarla,
mientras los apaleaban los que tienen
el cielo dividido y arreglado.

Tengo lista mi muerte, como un traje
que me espera, del color que amo,
de la extensión que busqué inútilmente,
de la profundidad que necesito.

Cuando el amor gastó su materia evidente
y la lucha desgrana sus martillos
en otras manos de agregada fuerza,
viene a borrar la muerte las señales
que fueron construyendo tus fronteras.

XXIII

A MORTE

Renasci muitas vezes, do fundo
de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com terra
sobre meu corpo, destinado a ser terra.

Não comprei una parcela do céu que vendiam
os sacerdotes, nem aceitei trevas
que o metafísico manufaturava
para despreocupados poderosos.

Quero estar na morte com os pobres
que não tiveram tempo para estudá-la,
enquanto os golpeavam os que têm
o céu dividido e arrumado.

Tenho pronta minha morte, como um traje
que me espera, da cor que amo,
da extensão que busquei inutilmente,
da profundidade que necessito.

Quando o amor gastou sua matéria evidente
e a luta descaroça seus martelos
em outras mãos de agregada força,
vem apagar a morte os sinais
que foram construindo tuas fronteiras.

XXIII

TESTAMENTO
(1)

Dejo a los sindicatos
del cobre, del carbón y del salitre
mi casa junto al mar de Isla Negra.
Quiero que allí reposen los maltratados hijos
de mi patria, saqueada por hachas y traidores,
desbaratada en su sagrada sangre,
consumida en volcánicos harapos.

Quiero que al limpio amor que recorriera
mi dominio, descansen los cansados,
se sienten a mi mesa los oscuros,
duerman sobre mi cama los heridos.

Hermano, ésta es mi casa, entra en el mundo
de flor marina y piedra constelada
que levanté luchando en mi pobreza.
Aquí nació el sonido en mi ventana
como en una creciente caracola
y luego estableció sus latitudes
en mi desordenada geología.

Tu vienes de abrasados corredores,
de túneles mordidos por el odio,
por el salto sulfúrico del viento:
aquí tienes la paz que te destino,
agua y espacio de mi oceanía.

XXIII

TESTAMENTO
(1)

Deixo aos sindicatos
do cobre, do carvão e do salitre
minha casa junto ao mar de Isla Negra.
Quero que ali repousem os maltratados filhos
de minha pátria, saqueada por achas e traidores,
desbaratada em seu sagrado sangue,
consumida em vulcânicos farrapos.

Quero que ao limpo amor que recorrera
meu domínio, descansem os cansados,
sentem-se a minha mesa os obscuros,
durmam sobre minha cama os feridos.

Irmão, esta é minha casa, entra no mundo
de flor marinha e pedra constelada
que levantei lutando em minha pobreza.
Aqui nasceu o som em minha janela
como em um crescente caracol
e logo estabeleceu suas latitudes
em minha desordenada geologia.

Tu vens de abrasados corredores,
de túneis mordidos pelo ódio,
pelo salto sulfúrico do vento:
aqui tens a paz que te destino,
água e espaço de minha oceania.

XXIV

TESTAMENTO
(2)

Dejo mis viejos libros, recogidos
en rincones del mundo, venerados
en su tipografía majestuosa,
a los nuevos poetas de América,
a los que un día
hilarán en el ronco telar interrumpido
las significaciones de mañana.

Ellos habrán nacido cuando el agreste puño
de leñadores muertos y mineros
haya dado una vida innumerable
para limpiar la catedral torcida,
el grano desquiciado, el filamento
que enredó nuestras ávidas llanuras.
Toquen ellos infierno, este pasado
que aplastó los diamantes, y defiendan
los mundos cereales de su canto,
lo que nació en el árbol del martirio.

Sobre los huesos de caciques, lejos
de nuestra herencia traicionada, en pleno
aire de pueblos que caminan solos,
ellos van a poblar el estatuto
de un largo sufrimiento victorioso.

Que amen como yo amé mi Manrique, mi Góngora,
mi Garcilaso, mi Quevedo:
fueron
titánicos guardianes, armaduras
de platino y nevada transparencia,
que me enseñaron el rigor, y busquen
en mi Lautréamont viejos lamentos
entre pestilenciales agonías.
Que en Maiakovsky vean cómo ascendió la estrella
y cómo de sus rayos nacieron las espigas.

XXIV

TESTAMENTO
(2)

Deixo meus velhos livros, recolhidos
em rincões do mundo, venerados
em sua tipografia majestosa,
aos novos poetas da América,
aos que um dia
fiarão no roufenho tear interrompido
os significados da amanhã.

Eles terão nascido quando o agreste punho
de lenhadores mortos e mineiros
tenha dado uma vida inumerável
para limpar a catedral torcida,
o grão descomposto, o filamento
que enredou nossas ávidas planícies.
Toquem eles inferno, este passado
que aplastou os diamantes, e defendam
os mundos cereais de seu canto,
o que nasceu na árvore do martírio.

Sobre os ossos de caciques, distante
de nossa herança atraiçoada, em pleno
ar de povos que caminham sozinhos,
eles vão povoar o estatuto
de um longo sofrimento vitorioso.

Que amem como eu amei meu Manrique, meu Góngora,
meu Garcilaso, meu Quevedo:
foram
titânicos guardiões, armaduras
de platina e nevada transparência,
que me ensinaram o rigor, e busquem
em meu Lautréamont velhos lamentos
entre pestilenciais agonias.
Que em Maiakovsky vejam como ascendeu a estrela
e como de seus raios nasceram as espigas.

 XXIV

DISPOSICIONES

Compañeros, enterradme en Isla Negra,
frente al mar que conozco, a cada área rugosa
de piedras y de olas que mis ojos perdidos
no volverán a ver.
Cada día de océano
me trajo niebla o puros derrumbes de
turquesa,
o simple extensión, agua rectilínea, invariable,
lo que pedí, el espacio que devoró mi frente.

Cada paso enlutado de cormorán, el vuelo
de grandes aves grises que amaban el
invierno,
y cada tenebroso círculo de sargazo
y cada grave ola que sacude su frío,
y más aún, la tierra que un escondido herbario
secreto, hijo de brumas y de sales, roído
por el ácido viento, minúsculas corolas
de la costa pegadas a la infinita arena:
todas las llaves húmedas de la tierra marina
conocen cada estado de mi alegría,
saben
que allí quiero dormir entre los párpados
del mar y de la tierra . . .
Quiero ser arrastrado
hacia abajo en las lluvias que el salvaje
viento del mar combate y desmenuza,
y luego por los cauces subterráneos, seguir
hacia la primavera profunda que renace.

Abrid junto a mí el hueco de la que amo, y
un día
dajadla que otra vez me acompañe en la
tierra.

 XXIV

DISPOSIçõES

Companheiros, enterrai-me em Isla Negra,
frente ao mar que conheço, a cada área rugosa
de pedras e de ondas que meus olhos perdidos
não voltarão a ver.
Cada dia de oceano
trouxe-me névoa ou puros desmoronamentos de
turquesa,
ou simples extensão, água retilínea, invariável,
o que pedi, o espaço que devorou minha fronte.

Cada passo enlutado de cormorão, o voo
de grandes aves cinzentas que amavam o
inverno,
e cada tenebroso círculo de sargaço
e cada grave onda que sacode seu frio,
e mais ainda, a terra que um oculto herbário
secreto, filho de brumas y de sais, roído
pelo ácido vento, minúsculas corolas
da costa coladas à infinita areia:
todas as chaves úmidas da terra marinha
conhecem cada estado de minha alegria,
sabem
que ali quero dormir entre as pálpebras
do mar e da terra …
Quero ser arrastado
para baixo nas chuvas que o selvagem
vento do mar combate e esmiúça,
e logo pelos leitos subterrâneos, seguir
até a primavera profunda que renasce.

Abri junto a mim a cova da que amo, e
um dia
deixai-a que outra vez me acompanhe na
terra.

Neruda_matilde_islanegra

*****

Versões ao Português de Ceto de Assis