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Finalmente, a casa predileta

A casa … Não sei quando nasceu… Era a meio da tarde, chegamos a cavalo por aquelas solidões … Don Eladio ia adiante, vadeando o banhado de Córdoba que havia aumentado… Pela primeira vez senti como uma pontada este cheiro de inverno marinho, mescla de boldo e areia salgada, algas e cardos… Aqui, disse don Eladio Sobrino (navegante) e ali ficamos. Logo a casa foi crescendo, como a gente, como as árvores.

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Em 1937, de volta ao Chile, obrigado a sair da Espanha pela ocorrência da Guerra Civil Espanhola, Neruda procurava um lugar onde pudesse se dedicar a um novo projeto literário, uma obra portentosa que viria a se chamar Canto General (Canto Geral), na qual o poeta reuniu os mais diversos temas, usando vários gêneros e técnicas para contar e cantar a sua América Latina, no princípio – como na gênesis bíblica – puro paraíso, sem nomes e sem homens. Depois, revive a história humana da América Latina, que começa nos pináculos de Machu Pichu e se espraia pelo continente, primeiro em sua origem indígena, depois atropelada pelos conquistadores.

A sonhada tarefa, porém, somente foi concluída mais tarde, depois de longa peregrinação do poeta pelas rotas políticas de seu país. Na década seguinte ao início de construção da casa de Isla Negra, eleito senador e envolvido em intensa discussão política, que lhe valeram a cassação da função senatorial, Neruda sofreria grande perseguição política do governo do então presidente González Videla e foi obrigado até mesmo a sair do país, refugiando-se na Argentina.

Sua amada Matilde Urrutia, nas memórias que deixou (Minha vida com Pablo Neruda) relata que ele “havia sonhado e lutado toda a vida pela erradicação da pobreza; queria que em seu país houvesse justiça social, um pouco de igualdade. Colocou sua pena e sua vida a serviço desta causa nobre. Muitas vezes arriscou sua integridade física perseguido por González Videla, que considerávamos um tirano. É que não conhecíamos a tirania de fato. (…) Sempre animado, entusiasta, alegre, falando às massas, tentando despertar a consciência adormecida e fatalista dos pobres que se contentam com as esmolas do nada!” O poeta sofre com o que chamava de opressão dos povos latino-americanos e sua altissonância poética o leva a concluir a obra quase enciclopédica, formada por 15 seções e 231 poemas, finalmente publicada em 1950, no México.

Apesar de se voltar quase que inteiramente à saga dos povos latino-americanos, no final de seu Canto Geral Neruda assina a extensa obra falando sobre sua morte e deixa dois testamentos e disposições gerais, à guisa de um estatuto da América nerudiana.

Adquirida a casa do marinheiro espanhol, entre 1943 e 1945, e com a ajuda do arquiteto catalão Germán Rodríguez Arias, Neruda fez no novo refúgio uma série de ampliações. Quis domesticar o Pacífico, mas não conseguiu. Como já registrei em outro texto, ele um dia escreveu: “Não sei que fazer com ele, ele saía do mapa. Não sabia onde colocá-lo. Era tão grande, desordenado e azul que não cabia em nenhuma parte. Por isso o deixaram frente a minha janela”. Para não se desmentir, Neruda colocou janelas em quase todas as paredes que olham para o mar. Janelas que dominam todo o Pacífico que, por sua vez, domina a casa predileta do poeta.

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O início da construção da residência de Isla Negra foi acompanhada por Delia del Carril, que desfrutou-a intensamente. Já casado com Matilde Urrutia, Neruda fez ampliações na casa, em 1965, que tornaram ainda mais fantástico o poema de pedra e madeira que continuamente rearranjava.  Já na sala de estar foram colocadas carrancas, ou figuras de proa, adquiridas em várias do mundo. Duas medusas estão voltadas permanentemente para o Pacífico e, ainda, um grande chefe comanche, uma sereia e outras tantas figuras emblemáticas. Todas as figuras contam suas histórias, carregadas de amores e de enfrentamento de naufrágios e de lutas oceânicas. Quadros e mais quadros, alguns trecos que se transformaram em relíquias.

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Mascarones

Da sala de estar passamos aos demais ambientes, construídos à maneira do arquiteto de sonhos e de casas sonhadoras. Em meio à infinidade de objetos reunidos pelo colecionista descobrimos relíquias folclóricas doadas pelo amigo Jorge Amado, como a coleção de garrafas com areias coloridas das praias do Nordeste brasileiro e pequenas esculturas religiosas também engarrafadas. Coleções de cachimbos, de aparelhos náuticos, de esculturas da Ilha de Páscoa, o telescópio doado pela Embaixada da França que chegou a Isla Negra depois da morte do poeta, os bares, as louças, uma profusão de máscaras africanas e fotografias de seus ídolos, entre os quais Whitmann e Rimbaud.

Cama de Neruda, onde ele passou seus últimos dias de Isla Negra. Sobre a cabeceira, a ovelhinha de pano comprada na França, que lhe recordava a infância

Cama de Neruda, onde ele passou seus últimos dias de Isla Negra. Sobre a cabeceira, a ovelhinha de pano comprada na França, que lhe recordava a infância

Na parte íntima da casa, conservam-se roupas e objetos pessoais de Pablo e Matilde. A cama, de onde ditou os seus últimos textos. E, na extremidade da construção, que se alonga como o mapa do Chile, o seu escritório, onde guardava uma escrivaninha de madeira – única recordação que conseguiu conservar de seu pai. Em uma pequena sala contígua, o cavalo em tamanho natural, admirado pelo menino de Temuco e adquirido, anos mais tarde, quando o poeta recebeu a notícia de que o armazém que o mantinha como objeto de propaganda tinha se incendiado. (Neruda o levou, ainda chamuscado, para Isla Negra, e providenciou uma festa, na qual exigiu que os convidados levassem presentes para o cavalo, o que possibilitou uma completa restauração.) Ao final do conjunto, uma sala com a coleção do malacólogo amador Pablo Neruda – conchas recolhidas em várias partes do mundo e que foram classificadas, mais tarde, por especialistas.

O cavalo de Temuco, restaurado por presentes de amigos do poeta. Neruda dizia que era o único cavalo do mundo com rabo de três cores. A porta à esquerda, acima, é de um pequeno banheiro "só para homens" e decorado com postais eróticos antigos.

O cavalo de Temuco, restaurado por presentes de amigos do poeta. Neruda dizia que era o único cavalo do mundo com rabo de três cores. A porta à esquerda é de um pequeno banheiro “só para homens”, decorado com postais eróticos antigos.

Calcula-se que são mais de três mil e 500 objetos, ou coisas, como dizia o poeta, cobrindo todas os recintos da residência. Mas a variedade das coleções sempre tem cheiro de mar: “Eu sou um amador do mar, e há muito tempo coleciono conhecimentos que não me servem muito porque navego sobre a terra”.  Perguntado sobre sua especialização como colecionista, ele respondeu: “Sou ‘coisista’, gosto de colecionar coisas”…

No extremo sul da casa de Isla Negra, o escritório de Neruda. A mesa foi feita com uma porta de navio encontrada no mar. Sobre ela, utensílios de trabalho do poeta e a réplica da mão de Matilde, em bronze. Na parede à esquerda, uma escrivaninha que pertenceu a seu pai - único objeto paterno que conseguiu recuperar - e onde teria escrito o seu primeiro poema, dedicado a sua mãe.

No extremo sul da casa de Isla Negra, o escritório de Neruda. A mesa foi feita com uma porta de navio encontrada no mar. Sobre ela, utensílios de trabalho do poeta e a réplica da mão de Matilde, em bronze. Na parede à esquerda, uma escrivaninha que pertenceu a seu pai – único objeto paterno que conseguiu recuperar – e onde teria escrito seu primeiro poema, dedicado a sua mãe.

O escritório, visto da parte externa. Conta-se que foi por esta janela que o poeta teria avistado, boiando nas ondas, a porta de um navio que seria convertida em mesa de trabalho.

O escritório, visto da parte externa. Conta-se que foi por esta janela que o poeta teria avistado, boiando nas ondas, a porta de um navio que seria convertida em mesa de trabalho.

As maiores emoções são recolhidas no exterior, hoje transformado em santuário, desde que foram atendidas as disposições gerais do poeta: “Enterrai-me em Isla Negra…”. Numa espécie de castelo de proa natural, voltado para o oceano, foi construído um jardim onde repousam Pablo e Matilde, após o estranho trânsito de seu corpo por diversos cemitérios e laboratórios.

Neruda em um banco de pedra, voltado para o mar. Naquele momento ele não podia imaginar que bem à frente daquele banco seria colocado seu próprio túmulo, no qual a ele se juntaria, mais tarde, o corpo de Matilde.

Neruda em um banco de pedra, voltado para o mar. Naquele momento ele não podia imaginar que bem à frente daquele banco seria plantado seu próprio túmulo, no qual a ele se juntaria, mais tarde, o corpo de Matilde.

Túmulo de Pablo e Matilde, em Isla Negra

Túmulo de Pablo e Matilde, em Isla Negra

Da tumba do poeta e sua amada avista-se, altaneira, a casa idílica, a primeira a ser construída, a preferida, a que lhe recebeu em seus últimos dias e onde repousa com Matilde e o Oceano Pacífico.

Da tumba do poeta e sua amada avista-se, altaneira, a casa idílica, a primeira a ser construída, a preferida, a que lhe recebeu em seus últimos dias e perto da qual repousa com Matilde e o Oceano Pacífico.

Resta ao visitante menos preguiçoso uma visita às pedras e areias de Isla Negra, já fora dos limites da residência, hoje toda cercada por um muro de madeira. Como sei que o Oceano Pacífico não mudará sua forma nem sua força em razão de minha iconoclastia ambiental, guardei dois bons punhados de areia da praia do poeta para levar ao Brasil, com certeza de que tenho licença e a benção de Pablo Neruda. Uma troca justa, pois já contei que, na casa de Isla Negra, existem várias garrafas com areias de praias brasileiras.

Pelo portão de madeira Neruda tinha acesso à praia e às pedras que o protegiam do furor oceânico e, simultaneamente, emolduravam o mundo líquido que tanto amou. simultaneamente o l

Pelo portão de madeira Neruda tinha acesso à praia e às pedras que o protegiam do furor oceânico e, simultaneamente, emolduravam o mundo líquido que tanto amou. 

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El hombre en el océano

*****

PoR QUE ISLA NEGRA?

Continua Neruda em sua narrativa do libro “Una casa en la arena”: “Don Eladio morreu, mais tarde. Era andaluz o capitão Sobrino. A última vez que veio nos ver cantou durante toda a tarde canções serranas e marinhas. No mesmo dia que deixou de cantar e navegar para sempre, subi em uma escada e, na grande escuna veleira pendurada sobre a lareira, escrevi seu nome em letras maiúsculas. Assim se chama ‘Eladio Sobrino’(…) sobre a lareira de pedra de Isla Negra navega ‘Don Eladio’. Que bem denominada foi!”

Eladio Sobrino, o primeiro proprietário de Isla Negra

Eladio Sobrino, o primeiro proprietário de Isla Negra

Antes de comprar uma pequena casa de pedra que havia sido construída por Eladio Sobrino, o marinheiro espanhol que, um dia, chegou ao sul do Chile, subiu por sua costa e estacionou seus sonhos de navegador em uma região ao sul de Valparaíso, mais propriamente na província de San Antonio, comuna, ou município de El Quisco. Ali montou residência e família, comprou terras e, em um de suas extensões, colocou o nome de Córdoba, em homenagem à cidade onde nascera. Mais tarde, construiu casinhas de veraneio e foi por uma delas que Neruda o procurou, quando o acesso à costa acidentada da região ainda era difícil.

A praia onde estava a casinha original se chamava Las Gaviotas (Gaivotas), mas a criatividade do poeta logo divisou uma grande pedra escura e passou a chamar o local de Isla Negra, que, de fato, não é ilha nem é negra. O meio ambiente não foi alterado. Ao contrário, o desenvolvimento da residência da Isla Negra deu paisagem mais encantadora ao terreno, uma elevação a poucos metros da praia cheia de pedras que retém os sargaços vindos do mar e com povoação permanente de ruidosas gaivotas. Sua areia é grossa e forma uma pequena praia, ao sul da residência. Em frente à casa, uma muralha de pedras a protege, como um dique natural que tenta acalmar o agitado mar do Pacífico.

Eladio Sobrino também passou a fazer parte da história local. Seus descendentes criaram uma fundação, com seu nome, destinada a trabalhar pela cultura da região. A partir da restauração da casa de Neruda, nos anos 80, todo o município teve rápido desenvolvimento, em razão de ter sido transformado em rota obrigatória dos turistas. E as iniciativas culturais se multiplicam, como foi o caso das bordadeiras protegidas por Neruda, que tiveram uma das filhas de Eladio Sobrino como principal articuladora de suas atividades.

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El Mar

(de Memorial de Isla Negra)

Memorial_islanegra

Necesito del mar porque me enseña:
no sé si aprendo música o conciencia:
no sé si es ola sola o ser profundo
o sólo ronca voz o deslumbrante
suposición de peces y navios.
El hecho es que hasta cuando estoy dormido
de algún modo magnético circulo
en la universidad del oleaje.
No son sólo las conchas trituradas
como si algún planeta tembloroso
participara paulatina muerte,
no, del fragmento reconstruyo el día,
de una racha de sal la estalactita
y de una cucharada el dios inmenso.

Lo que antes me enseñó lo guardo! Es aire,
incesante viento, agua y arena.

Parece poco para el hombre joven
que aquí llegó a vivir con sus incendios,
y sin embargo el pulso que subía
y bajaba a su abismo,
el frío del azul que crepitaba,
el desmoronamiento de la estrella,
el tierno desplegarse de la ola
despilfarrando nieve con la espuma,
el poder quieto, allí, determinado
como un trono de piedra en lo profundo,
substituyó el recinto en que crecían
tristeza terca, amontonando olvido,
y cambió bruscamente mi existencia:
di mi adhesión al puro movimiento.

O Mar

Necessito do mar porque me ensina:
não sei se aprendo música ou consciência:
não sei se é onda só ou ser profundo
ou somente rouca voz ou deslumbrante
suposição de peixes e navios.
O fato é que até quando estou dormido
de algum modo magnético círculo
na universidade da ondulação.
Não são somente as conchas trituradas
como se algum trêmulo planeta
participara paulatina morte,
não, do fragmento reconstruo o dia,
de uma rajada de sal a estalactite
e de uma colherada o deus imenso.

O que antes me ensinou o guardo! É ar,
incessante vento, água e areia.

Parece pouco para o homem jovem
que aqui chegou a viver com seus incêndios,
e no entanto a pulsação que subia
e baixava a seu abismo,
o frio do azul que crepitava,
o desmoronamento da estrela,
o terno desdobra-se da onda
desperdiçando neve com a espuma,
o poder quieto, ali, determinado
como um trono de pedra no profundo,
substituiu o recinto em que cresciam
tristeza teimosa, amontoando esquecimento,
e mudou bruscamente minha existência:
de minha adesão ao puro movimento.

De Canto General

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XXIII

LA MUERTE

He renacido muchas veces, desde el fondo
de estrellas derrotadas, reconstruyendo el hilo
de las eternidades que poblé con mis manos,
y ahora voy a morir, sin nada más, con tierra
sobre mi cuerpo, destinado a ser tierra.

No compré una parcela del cielo que vendían
los sacerdotes, ni acepté tinieblas
que el metafísico manufacturaba
para despreocupados poderosos.

Quiero estar en la muerte con los pobres
que no tuvieron tiempo de estudiarla,
mientras los apaleaban los que tienen
el cielo dividido y arreglado.

Tengo lista mi muerte, como un traje
que me espera, del color que amo,
de la extensión que busqué inútilmente,
de la profundidad que necesito.

Cuando el amor gastó su materia evidente
y la lucha desgrana sus martillos
en otras manos de agregada fuerza,
viene a borrar la muerte las señales
que fueron construyendo tus fronteras.

XXIII

A MORTE

Renasci muitas vezes, do fundo
de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com terra
sobre meu corpo, destinado a ser terra.

Não comprei una parcela do céu que vendiam
os sacerdotes, nem aceitei trevas
que o metafísico manufaturava
para despreocupados poderosos.

Quero estar na morte com os pobres
que não tiveram tempo para estudá-la,
enquanto os golpeavam os que têm
o céu dividido e arrumado.

Tenho pronta minha morte, como um traje
que me espera, da cor que amo,
da extensão que busquei inutilmente,
da profundidade que necessito.

Quando o amor gastou sua matéria evidente
e a luta descaroça seus martelos
em outras mãos de agregada força,
vem apagar a morte os sinais
que foram construindo tuas fronteiras.

XXIII

TESTAMENTO
(1)

Dejo a los sindicatos
del cobre, del carbón y del salitre
mi casa junto al mar de Isla Negra.
Quiero que allí reposen los maltratados hijos
de mi patria, saqueada por hachas y traidores,
desbaratada en su sagrada sangre,
consumida en volcánicos harapos.

Quiero que al limpio amor que recorriera
mi dominio, descansen los cansados,
se sienten a mi mesa los oscuros,
duerman sobre mi cama los heridos.

Hermano, ésta es mi casa, entra en el mundo
de flor marina y piedra constelada
que levanté luchando en mi pobreza.
Aquí nació el sonido en mi ventana
como en una creciente caracola
y luego estableció sus latitudes
en mi desordenada geología.

Tu vienes de abrasados corredores,
de túneles mordidos por el odio,
por el salto sulfúrico del viento:
aquí tienes la paz que te destino,
agua y espacio de mi oceanía.

XXIII

TESTAMENTO
(1)

Deixo aos sindicatos
do cobre, do carvão e do salitre
minha casa junto ao mar de Isla Negra.
Quero que ali repousem os maltratados filhos
de minha pátria, saqueada por achas e traidores,
desbaratada em seu sagrado sangue,
consumida em vulcânicos farrapos.

Quero que ao limpo amor que recorrera
meu domínio, descansem os cansados,
sentem-se a minha mesa os obscuros,
durmam sobre minha cama os feridos.

Irmão, esta é minha casa, entra no mundo
de flor marinha e pedra constelada
que levantei lutando em minha pobreza.
Aqui nasceu o som em minha janela
como em um crescente caracol
e logo estabeleceu suas latitudes
em minha desordenada geologia.

Tu vens de abrasados corredores,
de túneis mordidos pelo ódio,
pelo salto sulfúrico do vento:
aqui tens a paz que te destino,
água e espaço de minha oceania.

XXIV

TESTAMENTO
(2)

Dejo mis viejos libros, recogidos
en rincones del mundo, venerados
en su tipografía majestuosa,
a los nuevos poetas de América,
a los que un día
hilarán en el ronco telar interrumpido
las significaciones de mañana.

Ellos habrán nacido cuando el agreste puño
de leñadores muertos y mineros
haya dado una vida innumerable
para limpiar la catedral torcida,
el grano desquiciado, el filamento
que enredó nuestras ávidas llanuras.
Toquen ellos infierno, este pasado
que aplastó los diamantes, y defiendan
los mundos cereales de su canto,
lo que nació en el árbol del martirio.

Sobre los huesos de caciques, lejos
de nuestra herencia traicionada, en pleno
aire de pueblos que caminan solos,
ellos van a poblar el estatuto
de un largo sufrimiento victorioso.

Que amen como yo amé mi Manrique, mi Góngora,
mi Garcilaso, mi Quevedo:
fueron
titánicos guardianes, armaduras
de platino y nevada transparencia,
que me enseñaron el rigor, y busquen
en mi Lautréamont viejos lamentos
entre pestilenciales agonías.
Que en Maiakovsky vean cómo ascendió la estrella
y cómo de sus rayos nacieron las espigas.

XXIV

TESTAMENTO
(2)

Deixo meus velhos livros, recolhidos
em rincões do mundo, venerados
em sua tipografia majestosa,
aos novos poetas da América,
aos que um dia
fiarão no roufenho tear interrompido
os significados da amanhã.

Eles terão nascido quando o agreste punho
de lenhadores mortos e mineiros
tenha dado uma vida inumerável
para limpar a catedral torcida,
o grão descomposto, o filamento
que enredou nossas ávidas planícies.
Toquem eles inferno, este passado
que aplastou os diamantes, e defendam
os mundos cereais de seu canto,
o que nasceu na árvore do martírio.

Sobre os ossos de caciques, distante
de nossa herança atraiçoada, em pleno
ar de povos que caminham sozinhos,
eles vão povoar o estatuto
de um longo sofrimento vitorioso.

Que amem como eu amei meu Manrique, meu Góngora,
meu Garcilaso, meu Quevedo:
foram
titânicos guardiões, armaduras
de platina e nevada transparência,
que me ensinaram o rigor, e busquem
em meu Lautréamont velhos lamentos
entre pestilenciais agonias.
Que em Maiakovsky vejam como ascendeu a estrela
e como de seus raios nasceram as espigas.

 XXIV

DISPOSICIONES

Compañeros, enterradme en Isla Negra,
frente al mar que conozco, a cada área rugosa
de piedras y de olas que mis ojos perdidos
no volverán a ver.
Cada día de océano
me trajo niebla o puros derrumbes de
turquesa,
o simple extensión, agua rectilínea, invariable,
lo que pedí, el espacio que devoró mi frente.

Cada paso enlutado de cormorán, el vuelo
de grandes aves grises que amaban el
invierno,
y cada tenebroso círculo de sargazo
y cada grave ola que sacude su frío,
y más aún, la tierra que un escondido herbario
secreto, hijo de brumas y de sales, roído
por el ácido viento, minúsculas corolas
de la costa pegadas a la infinita arena:
todas las llaves húmedas de la tierra marina
conocen cada estado de mi alegría,
saben
que allí quiero dormir entre los párpados
del mar y de la tierra . . .
Quiero ser arrastrado
hacia abajo en las lluvias que el salvaje
viento del mar combate y desmenuza,
y luego por los cauces subterráneos, seguir
hacia la primavera profunda que renace.

Abrid junto a mí el hueco de la que amo, y
un día
dajadla que otra vez me acompañe en la
tierra.

 XXIV

DISPOSIçõES

Companheiros, enterrai-me em Isla Negra,
frente ao mar que conheço, a cada área rugosa
de pedras e de ondas que meus olhos perdidos
não voltarão a ver.
Cada dia de oceano
trouxe-me névoa ou puros desmoronamentos de
turquesa,
ou simples extensão, água retilínea, invariável,
o que pedi, o espaço que devorou minha fronte.

Cada passo enlutado de cormorão, o voo
de grandes aves cinzentas que amavam o
inverno,
e cada tenebroso círculo de sargaço
e cada grave onda que sacode seu frio,
e mais ainda, a terra que um oculto herbário
secreto, filho de brumas y de sais, roído
pelo ácido vento, minúsculas corolas
da costa coladas à infinita areia:
todas as chaves úmidas da terra marinha
conhecem cada estado de minha alegria,
sabem
que ali quero dormir entre as pálpebras
do mar e da terra …
Quero ser arrastado
para baixo nas chuvas que o selvagem
vento do mar combate e esmiúça,
e logo pelos leitos subterrâneos, seguir
até a primavera profunda que renasce.

Abri junto a mim a cova da que amo, e
um dia
deixai-a que outra vez me acompanhe na
terra.

Neruda_matilde_islanegra

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Versões ao Português de Ceto de Assis

Nova edição de “Canto General”, de Neruda

O livro e todos os seus manuscritos

Canto_geral_mercurio

O jornal O Mercurio, de Santiago do Chile, em sua edição dominical de 19 de janeiro de 2014, anuncia a edição do livro Canto General, de Pablo Neruda, em uma composição inédita: foram reunidos todos os manuscritos da obra do poeta, feitos a mão ou datilografados. O autor da proeza é o bibliófilo César Soto Gómez, que levou mais de 30 anos para coletar todos os documentos. O livro, escrito entre 1938 e 1949, traça uma saga da América Latina, a partir de sua natureza edênica, o desenvolvimento dos povos pré-colombianos até o tempo criticado pelo poeta, passando pela rota dos conquistadores espanhóis.

A edição, com 496 páginas, leva a chancela da Fundação Pablo Neruda e foi patrocinada pela Corporação Patrimônio Cultural do Chile e doação cultural de uma empresa privada. Na página de El Mercurio há uma foto curiosa: Neruda com barba e bigodes, característica que adotou no período em que sofria perseguição do governo de González Videla.

O próprio poeta define seu livro: “Levado pelo propósito de dar uma grande unidade ao mundo que eu queria expressar, escrevi meu livro mais fervente e mais vasto: Canto Geral”. E mais: “A ideia de um poema central que agrupasse as incidências históricas, as condições geográficas, a vida e a luta de nossos povos, a mim se apresentava como uma tarefa urgente”.

Mas coube ao crítico argentino Saúl Yukievich dar à obra uma sintética e, ao mesmo tempo, mais abrangente visão: “É, simultaneamente, cosmogênese, geografia, rito, crônica, panfleto, fabulação, conversa, sátira, autobiografia, rapto, alucinação, profecia, conjura, testamento”.

Além dos manuscritos, com correções feitas pelo poeta, o livro inclui matéria complementar, como anotações, esboços, ideias soltas e titubeios do autor em relação à estrutura da obra e de poemas que deveria ou não incluir. Finalmente, um apêndice iconográfico documenta a época em que Neruda escreveu o livro (como o disfarce de clandestino com bigodes e barba, em 1948), a visita a Machu Pichu em 1943, o abraço com o xará Picasso em 1949, e as fotos do lançamento de Canto Geral, no México, em 1950.

O poeta e a Guerra Civil Espanhola

Neruda, capitão de terra, mar e guerra

winnipeg_neruda Conhecer um poeta não é somente ler e gostar de seus poemas. Comprovei esta verdade nas visitas que fiz às casas-museus de Pablo Neruda, em Santiago do Chile, Valparaíso e El Quisco, onde estão La Chacona, La Sabastiana e Isla Negra. As três residências do maior poeta chileno estão repletas de recordações. Talvez a falta de brinquedos em sua infância foi a principal razão de transformá-lo, já adulto, em um compulsivo colecionador de antiguidades. Talvez sua paixão pelo mar, marinheiro de terra firme autoconsiderado, o levou a recolher partes dos oceanos, nas conchas, âncoras, móveis, carrancas e objetos de barcos. Comecei a perguntar: e quando esse senhor arranjava tempo para escrever? Mas se descobre, também, que ele era um escritor quase compulsivo. Em cada casa ele construiu seus santuários de escrevinhador, dois no caso de Isla Negra. Escreveu até mesmo em seus últimos tempos, quando a enfermidade que o atacou obrigava-o a ficar em repouso, ditando textos a Matilde e seu secretário. Fiz mais perguntas. Além de seu declarado favoritismo às políticas de esquerda, quais as atividades sociais a que se dedicava para traduzir em obras o que declarara em poesia: “La solidaridad es la ternura de los pueblos”? Suas casas foram construídas como refúgios, onde entravam apenas os escolhidos. Em Valparaíso, um dos critérios que estabeleceu até encontrar La Sebastiana era o da discrição – “deve ser solitária, mas não em excesso. Vizinhos, oxalá invisíveis. Não deve ver-se nem escutar-se. Original, mas não muito incômoda. Muito alada mas firme. Nem muito grande nem muito pequena. Longe de tudo, mas perto da mobilização”. Isso daria a impressão que ele, tímido também confesso, se afastava do convívio social. Sabe-se, hoje, que Neruda, enquanto ocupou cargos na diplomacia de seu país, deu relevo ao trabalho das mulheres bordadeiras de El Quisco, levando-as a expor no Museu de Belas Artes de Santiago e nas embaixadas europeias onde prestou serviços. Mas sua grande obra social, engatilhada pela ira poética que o dominou durante a Guerra Civil Espanhola, foi a proteção oferecida a mais de duas mil pessoas que fugiram da Espanha quando os republicanos perderam o controle do país para Franco. Naquela época, em 1939, mais de 500 mil espanhóis fugiram para a França, mas ali não encontraram ambiente ameno, pois os franceses também viviam seus problemas e temiam que a intensa migração lhes aumentasse as preocupação sociais. Trataram de instalar os espanhóis em campos de refugiados que, na realidade, não seriam muito diferentes dos campos de concentração mantidos pelos alemães na Segunda Guerra Mundial. As noticias da derrota dos republicanos e as condições deploráveis em que viviam na França chegaram ao conhecimento de Pablo Neruda, que se encontrava no Chile, após ter dirigido a campanha eleitoral de Pedro Aguirre Cerda, eleito para o próximo período presidencial. O poeta, que tinha sido cônsul em Barcelona e Madri e que cultivava uma intensa paixão pela Espanha, procurou o novo presidente da nação e narrou o drama dos espanhóis. O Chile acabara de passar também por um momento terrível, causado pelo terremoto de Chillán, onde pereceram mais de 30 mil pessoas. Necessitava-se, portanto, de mão de obra e uma possível migração dos refugiados poderia ser solução social para ambas as partes. Aguirre imediatamente nomeou Neruda como Cônsul Especial, encarregado da missão de levar os espanhóis para o Chile, especialmente os que tinham habilidades profissionais das quais o país necessitava. Pablo Neruda seguiu imediatamente para Paris, onde tratou de organizar, com apoio dos representantes diplomáticos chilenos e do Serviço de Evacuação de Refugiados Espanhóis do governo francês, toda a logística para o transporte até o Chile. Foi comprado, então, um velho barco chamado Winnipeg, um velho cargueiro da Companhia Francesa de Navegação que havia servido para transportar tropas na Primeira Guerra Mundial. O barco foi adequado para receber mais de duas mil pessoas e em seus porões foram instaladas liteiras para acomodar os passageiros, além dos refeitórios e outras instalações que lhes proporcionassem um mínimo de conforto para a longa travessia. Atividades foram programadas para aproveitar os quase trinta dias de viagem, principalmente aulas para as crianças, nas quais foram transmitidas informações sobre o novo país onde viveriam. Feita a seleção dos migrantes, eles foram reunidos no porto fluvial de Trompeloup, perto de Bordéus. Muitas famílias ali se reencontraram, após anos de separação. Neruda e sua então esposa, Delia del Carril, se encarregaram pessoalmente de receber e inscrever os passageiros. No dial 4 de agosto de 1939 o Winnipeg zarpou rumo a Valparaíso, com 2.365 passageiros a bordo. Um mês mais tarde, ou mais exatamente, em 2 de setembro, atracou no porto chileno. Como chegou à noite, somente na manhã seguinte os passageiros puderam desembarcar. Imagina-se com que emoção e ansiedade passaram todos aquela noite, enxergando as luzes da baía de Valparaíso.

1.Combate na frente de Aragón. A Guerra Civil espanhola ocorreu entre 18 de julho de 1936 e 1º de abril de 1939 e enfrentou o governo da República Espanhola com grupos militares e de direita que terminam liderados pelo general Francisco Franco.

1. Combate na frente de Aragón. A Guerra Civil espanhola ocorreu entre 18 de julho de 1936 e 1º de abril de 1939 e enfrentou o governo da República Espanhola com grupos militares e de direita que terminam liderados pelo general Francisco Franco.

2.Soldados franquistas escoltam um grupo de soldados republicanos. O fim da contenda marcou o inicio da repressão franquista. Cerca de 500 mil refugiados cruzaram a fronteira entre a França e a Espanha no inverno de 1939.

2. Soldados franquistas escoltam um grupo de soldados republicanos. O fim da contenda marcou o inicio da repressão franquista. Cerca de 500 mil refugiados cruzaram a fronteira entre a França e a Espanha no inverno de 1939.

3.Pablo Neruda no Chile. A situação dos exiliados preocupou desde o início o poeta chileno, que se converteria em Cônsul Especial para a Emigração Espanhola e que já havia sido cônsul em Barcelona e Madrí. (Foto: Fundação Pablo Neruda).

3. Pablo Neruda no Chile. A situação dos exiliados preocupou desde o início o poeta chileno, que se converteria em Cônsul Especial para a Emigração Espanhola e que já havia sido cônsul em Barcelona e Madrí. (Foto: Fundação Pablo Neruda).

4.Imagem do presidente do Chile naquele momento, Pedro Aguirre Cerda, na coberta do Winnipeg. O velho cargueiro francês foi o barco contratado por Pablo Neruda para transportar 2.365 exilados espanhóis ao Chile. O barco foi adaptado para abrigá-los. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

4. Imagem do presidente do Chile naquele momento, Pedro Aguirre Cerda, na coberta do Winnipeg. O velho cargueiro francês foi o barco contratado por Pablo Neruda para transportar 2.365 exilados espanhóis ao Chile. O barco foi adaptado para abrigá-los. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

5.Um grupo de crianças na coberta do Winnipeg. A travessia desde o porto de Trompeloup, cerca de Bordeaux (França) até Valparaíso durou um mês. Durante esse tempo foram organizadas aulas para as crianças que viajavam no barco. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

5. Um grupo de crianças na coberta do Winnipeg. A travessia desde o porto de Trompeloup, cerca de Bordeaux (França) até Valparaíso durou um mês. Durante esse tempo foram organizadas aulas para as crianças que viajavam no barco. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

6.Vários homens desembarcam do Winnipeg em Valparaíso, Chile. No dia 3 de setembro de 1939 o barco chega às costas do território chileno. Todos os passageiros viajaram com um único passaporte coletivo. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

6. Vários homens desembarcam do Winnipeg em Valparaíso, Chile. No dia 3 de setembro de 1939 o barco chega às costas do território chileno. Todos os passageiros viajaram com um único passaporte coletivo. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

7.Grupo de mulheres que viajaram no Winnipeg. Naquele momento, Chile necessitava de mão de obra e a maioria dos passageiros do Winnipeg, por pedido expresso do presidente Aguirre Cerda, eram trabalhadores especializados, não intelectuais. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

7. Grupo de mulheres que viajaram no Winnipeg. Naquele momento, Chile necessitava de mão de obra e a maioria dos passageiros do Winnipeg, por pedido expresso do presidente Aguirre Cerda, eram trabalhadores especializados, não intelectuais. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

8.Um homem alimenta uma criança recém desembarcada. Muitos dos passageiros eram crianças. A maioria delas começou uma vida nova no Chile e nunca voltaram a viver na Espanha. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).
8. Um homem alimenta uma criança recém desembarcada. Muitos dos passageiros eram crianças. A maioria delas começou uma vida nova no Chile e nunca voltaram a viver na Espanha. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile). Imagens extraídas de BBC Mundo – La aventura del Winnipeg en imágenes 

Na manhã de 3 de setembro de 1939 os refugiados espanhóis do barco de Na manhã de 3 de setembro de 1939 os refugiados espanhóis do barco de Neruda desembarcaram no Chile. Mais tarde, um deles recordava: “As pessoas nos atiravam rosas e nos davam as boas-vindas. Nós imaginávamos que aquilo era impossível. Na estação de Santiago se calcula que havia 70 mil pessoas à nossa espera. Isso é algo que jamais a gente esquece”.. Cartaz_winnipegSetenta anos mais tarde, em 2009, os refugiados remanescentes e descendentes dos que viajaram no  Winnipeg fizeram várias homenagens ao poeta que os resgatou da miséria em que viviam, às portas da Segunda Guerra Mundial, que mais tristezas causaria à Europa. Foi feita uma cerimônia no Palácio de La Moneda e alguns refugiados ainda vivos foram a Isla Negra para depositar terra espanhola no túmulo de Neruda e Matilde. Dessa época final da Guerra Civil Espanhola, Neruda também fez, como Picasso com o mural “Guernica”, a sua epopéia poética, denominada “España em el Corazón”. São 23 poemas, escritos depois que Neruda deixou a Espanha, mas editados em circunstâncias insólitas na frente de batalha, como contamos adiante. (Cleto de Assis)

Descobri, por acaso, em uma estação de metrô de Santiago, um busto de Neruda, ali colocada em homenagem ao seu esforço para transportar os refugiados espanhóis.

Descobri, por acaso, em uma estação de metrô de Santiago, um busto de Neruda, ali colocado em homenagem a seu esforço para transportar os refugiados espanhóis.

Do livro, o Banco da Poesia extraiu dois poemas – Explico algunas cosas e Generales traidores.

Explico algunas cosas 

Preguntaréis: Y dónde están las lilas? Y la metafísica cubierta de amapolas? Y la lluvia que a menudo golpeaba sus palabras llenándolas de agujeros y pájaros? Os voy a contar todo lo que me pasa. Yo vivía en un barrio de Madrid, con campanas, con relojes, con árboles. Desde allí se veía el rostro seco de Castilla como un océano de cuero. Mi casa era llamada la casa de las flores, porque por todas partes estallaban geranios: era una bella casa con perros y chiquillos. Raúl, te acuerdas? Te acuerdas, Rafael? Federico, te acuerdas debajo de la tierra, te acuerdas de mi casa con balcones en donde la luz de junio ahogaba flores en tu boca? Hermano, hermano! Todo eran grandes voces, sal de mercaderías, aglomeraciones de pan palpitante, mercados de mi barrio de Argüelles con su estatua como un tintero pálido entre las merluzas: el aceite llegaba a las cucharas, un profundo latido de pies y manos llenaba las calles, metros, litros, esencia aguda de la vida, pescados hacinados, contextura de techos con sol frío en el cual la flecha se fatiga, delirante marfil fino de las patatas, tomates repetidos hasta el mar. Y una mañana todo estaba ardiendo, y una mañana las hogueras salían de la tierra devorando seres, y desde entonces fuego, pólvora desde entonces, y desde entonces sangre. Bandidos con aviones y con moros, bandidos con sortijas y duquesas, bandidos con frailes negros bendiciendo venían por el cielo a matar niños, y por las calles la sangre de los niños corría simplemente, como sangre de niños. Chacales que el chacal rechazaría, piedras que el cardo seco mordería escupiendo, víboras que las víboras odiaran! Frente a vosotros he visto la sangre de España levantarse para ahogaros en una sola ola de orgullo y de cuchillos!

Guernica - Painel de Pablo Picasso

Guernica – Painel de Pablo Picasso

Explico algumas coisas 

Perguntareis: E onde estão os lilases? E a metafísica coberta de amapolas? E a chuva que a miúdo golpeava suas palavras enchendo-as de buracos e pássaros? Vos contarei tudo o que me passa. Eu vivia em um bairro de Madrí, com sinos, com relógios, com árvores. Dali se via o rosto seco de Castilla como un oceano de couro. Minha casa era chamada a casa das flores, porque por todas as partes estalavam gerânios: era uma bela casa com cachorros e crianças. Raúl, recordas? Recordas, Rafael? Federico, recordas debaixo da terra, recordas de minha casa com balcões onde a luz de junho afogava flores em tua boca? Irmão, irmão! Tudo eram grandes vozes, sal de mercadorias, aglomerações de pão palpitante, mercados de meu bairro de Argüelles com sua estátua como um tinteiro pálido entre as merluzas: o óleo chegava às colheres, um profundo pulsar de pés e mãos enchia as ruas, metros, litros, essência aguda da vida, peixes amontoados, contextura de tetos com sol frio no qual a flecha se fadiga, delirante marfim fino das batatas, tomates repetidos até o mar. E em uma manhã tudo estava ardendo, e em uma manhã as fogueiras saíam da terra devorando seres, e desde então fogo, pólvora desde então, e desde então sangue. Bandidos com aviões e com mouros, bandidos com anéis e duquesas, bandidos com frades negros bendizendo vinham pelo céu a matar crianças, e pelas ruas o sangue das crianças corria simplesmente, como sangue de crianças. Chacais que o chacal rejeitaria, pedras que o cardo seco morderia cuspindo, víboras que as víboras odiaram! Em frente a vós eu vi o sangue de Espanha levantar-se para afogar-vos em uma só onda de orgulho e de facões!

Generales traidores

Generales traidores: mirad mi casa muerta, mirad España rota: pero de cada casa muerta sale metal ardiendo en vez de flores, pero de cada hueco de España sale España, pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos, pero de cada crimen nacen balas que os hallarán un día el sitio del corazón. Preguntaréis por qué su poesía no nos habla del sueño, de las hojas, de los grandes volcanes de su país natal? Venid a ver la sangre por las calles, venid a ver la sangre por las calles, venid a ver la sangre por las calles!

Retrao do General Francisco Franco, comemorando o fim da Guerra Civil Espanhol

Retrato do General Francisco Franco, comemorando o fim da Guerra Civil Espanhol

Generais traidores

Generais traidores: olhai minha casa morta, olhai Espanha rota: mas de cada casa morta sai metal ardendo em vez de flores, mas de cada buraco de Espanha sai Espanha, mas de cada criança morta sai um fuzil com olhos, mas de cada crime nascem balas que vos acharão um dia o lugar do coração. Perguntareis por quê sua poesia não nos fala do sonho, das folhas, dos grandes vulcões de seu país natal? Vinde ver o sangue pelas ruas, vinde ver o sangue pelas ruas, vinde ver o sangue pelas ruas!

Versões em Português de Cleto de Assis
 

MEU LIVRO SOBRE ESPANHA

Pablo Neruda

Passou o tempo. A guerra começava a perder-se. Os poetas acompanharam o povo espanhol em sua luta. Federico já havia sido assassinado em Granada. Miguel Hernández, de pastor de cabras havia se transformado em verbo militante. Com uniforme de soldado recitava seus versos na primeira linha de fogo.

Manuel Altolaguirre seguia com suas máquinas de impressão. Instalou uma em plena frente do Este, perto de Gerona, em um velho monastério. Ali foi impresso, de maneira singular, mui livro “España en el corazón”. Creio que poucos livros, na história estranha de tantos livros, teve tão curiosa gestação e destino.

Os soldados da frente aprenderão a compor os tipos de imprensa. Mas então faltou o papel. Encontraram um velho moinho, e ali decidiram fabricá-lo. Estranha mistura a que se elaborou, entre as bombas que caíam, em meio da batalha. De tudo levavam ao moinho, desde uma bandeira do inimigo até a túnica ensanguentada de um soldado morto. Apesar dos insólitos materiais e da total inexperiência dos fabricantes, o papel ficou muito bonito. Os poucos exemplares que desse livro se conservam assombram pela tipografia e pelos cadernos de misteriosa manufatura. Anos depois vi um exemplar desta edição em Washington, na Biblioteca do Congresso, colocado em uma vitrine como um dos livros mais raros de nosso tempo.

Capa da edição original de España en el corazón, da qual existem apenas seis exemplares.

Capa da edição original de España en el corazón, da qual existem apenas seis exemplares.

Tão logo foi impresso e encadernado meu livro, se precipitou a derrota da República. Centenas de milhares de homens fugitivos encheram as estradas que saíam da Espanha. Era o êxodo dos espanhóis, o acontecimento mais doloroso na história da Espanha.

Com essas filas que marchavam rumo ao desterro iam os sobreviventes do exército do Este, entre eles Manuel Altolaguirre e os soldados que fizeram o papel e imprimiram “España en el corazón”. Meu livro era o orgulho desses homens que haviam trabalhado minha poesia em um desafio à morte. Soube que muitos haviam preferido carregar sacos com os exemplares impressos em lugar de seus próprios alimentos e roupas. Com os sacos ao ombro empreenderam a longa marcha rumo à França.

A imensa coluna que caminhava rumo ao desterro foi bombardeada centenas de vezes. Caíram muitos soldados e se esparramaram os livros na estrada. Outros continuara a inacabável fuga. Além da fronteira trataram brutalmente os espanhóis que chegavam ao exilio. Em uma fogueira foram imolados os últimos exemplares daquele livro ardente que nasceu e morreu em plena batalha.

Pablo Neruda, Confieso que he vivido. Memorias, ― España en el corazón, 1974. 

Finalmente, a primeira casa do poeta

Em La Chascona, o primeiro encontro com Neruda

Os visitantes se revesam, pois os pequenos ambientes da casa construída por Neruda para sua terceira mulher e seu grande amor, Matilde Urrutia, não permitem o trânsito de muita gente. A casa não apresenta aspectos faustosos, mas assimilou os gostos pessoais do poeta, que imprimiu detalhes fascinantes no projeto original do arquiteto catalão Germán Rodriguez Arias. O terreno, descoberto pelos dois amantes que ainda se escondiam dos olhares da sociedade (Neruda era casado com Delia del Carril quando conheceu Matilde e por ela se apaixonou) se encontra em uma das ladeiras do Cerro San Cristóbal, no bairro Bella Vista, em Santiago. O arquiteto propôs que a casa fosse voltada para o sol, mas o poeta queria uma vista para a cordilheira, o que resultou em mudança da orientação da construção. Foram tantas as intervenções de Neruda que, ao final, Germán Rodriguez reconheceu que o projeto era mais criação de Neruda do que dele. Cômodos pequenos: “para viver um grande amor”, como diria Vinicius de Moraes, amigo do poeta. Vários ambientes separados, acrescentados ao correr do tempo e ganhando espaços na montanha. Por isso, várias escadas, de um plano a outro. Até passagem secreta, simulando um armário, que conduzia à parte íntima da casa, do escritório e dos aposentos de Matilde. Um ninho de paixões astuciosamente protegido.

Visão da entrada pincipal, com as várias construções que compõem a residência.No alto, a sala envidraçada onde o poeta foi velado, em 23 de setembro de 1973

Visão da entrada principal, com as várias construções que compõem a residência.No alto, a sala envidraçada onde o poeta foi velado, em 23 de setembro de 1973

A primeira explicação é sobre o nome da casa, batizada também em homenagem a Matilde e seus cabelos ruivos. Era assim que ele a chamava, carinhosamente. A própria Matilde recordava que, quando caminhavam pelo bairro chamado Bella Vista, encontraram um terreno à venda, no início da encosta do cerro San Cristóbal. Era coberto de sarças e tinha um declive bastante pronunciado. “Estávamos como que enfeitiçados por um ruído de água, era una verdadeira catarata a que vinha pelo canal, no topo do lugar.” Tomados pelo entusiasmo, decidiram comprá-lo. Tempos depois, em seu poema “La Chascona”, del libro La barcarola, Neruda evocaria a “água que corre escrevendo em seu idioma”, e as sarças “que guardavam o lugar com sua sanguinária ramagem”.  Talvez a ondulada cabeleira ruiva de Matilde tenha sugerido a metáfora da água ondulante e das sarças vermelhas.

Em “Cem Sonetos de Amor” Neruda canta aos cabelos de Matilde, no Soneto XIV:

Me falta tiempo para celebrar tus cabellos.
Uno por uno debo contarlos y alabarlos:
otros amantes quieren vivir con ciertos ojos,
yo sólo quiero ser tu peluquero.

En Italia te bautizaron Medusa
por la encrespada y alta luz de tu cabellera.
Yo te llamo chascona mía y enmarañada:
mi corazón conoce las puertas de tu pelo.

Cuando tú te extravíes en tus propios cabellos,
no me olvides, acuérdate que te amo,
no me dejes perdido ir sin tu cabellera.

por el mundo sombrío de todos los caminos
que sólo tiene sombra, transitorios dolores,
hasta que el sol sube a la torre de tu pelo.

 ***

Falta-me tempo para celebrar teus cabelos. 
Um por um devo contá-los e louvá-los: 
outros amantes querem viver com certos olhos, 
eu quero somente ser teu cabeleireiro. 

Na Itália te batizaram de Medusa 
pela encrespada e alta luz de tua cabeleira. 
Eu te chamo chascona minha e emaranhada: 
meu coração conhece as portas de teu pelo. 

Quando tu te extravies em teus próprios cabelos, 
não me esqueças, lembra que te amo, 
não me deixes perdido ir sem tua cabeleira 

pelo mundo sombrio de todos os caminhos 
que só tem sombra, transitórias dores, 
até que o sol sobe à torre de teu pelo.

Versão ao Português de Cleto de Assis
Fragmento do Soneto XIV, de "Cem Sonetos de Amor", autografado pelo poeta

Fragmento do Soneto XIV, de “Cem Sonetos de Amor”, autografado pelo poeta

O pintor Diego Rivera, amigo do poeta, que conhecia seu amor secreto, fez um retrato de Matilde, com duas cabeças, que simbolizaria a dualidade dessa união, na fase que Neruda tramitava sua separação com Delia del Carril. Conta-se que a casa deveria denominar-se de Medusa, no início, em alusão aos cabelos encaracolados de Matilde, como sugere o soneto acima, mas Pablo Neruda decidiu batizá-la definitivamente de La Chascona.

Retrato de Matilde - pintura de Diego Rivera. No lado direito,  o artista sugeriu o perfil de Neruda, formado pelos cabelos ondulados

Retrato de Matilde – pintura de Diego Rivera. No lado direito, o artista sugeriu o perfil de Neruda, oculto nos cabelos ondulados

Com muita emoção, visitei cada canto da casa e dos terrenos que a compõem. E notei que, de certa forma, houve uma coincidência com o texto postado anteriormente, no qual anunciei a viagem ao Chile. Na montagem da ilustração da Ode ao Vinho, coloquei cachos de uva à frente de uma das casas-museu. Em La Chascona, encontrei uma parreira com uvas ainda verdes, a formar um pequeno portal no início de uma das escadas, como a demonstrar que esse símbolo que povoou a poesia nerudiana renasce todos os anos para nos provar que o poeta ainda está por ali, à espera dos amigos que ele tanto gostava de receber.

Encontrei-me com Neruda por meio de suas uvas ainda verdes. Alusão ao menino perdido em Parral (Parreiral, em Português) e recuperado na construção das casas, como se fossem brinquedos? (Foto de Teresas Vargas Sierra)

Encontrei-me com Neruda por meio de suas uvas ainda verdes. Alusão ao menino perdido em Parral (Parreiral, em Português) e recuperado na construção das casas, como se fossem brinquedos? (Foto de Teresas Vargas Sierra)

Entretanto, o encantamento que o motivou a construir La Chascona, em Santiago, La Sebastiana, em Valparaíso, e Isla Negra, em El Quisco, como se fossem brinquedos de infância, como ele mesmo reconheceria, foi substituído, na casa santiaguina, por duas tragédias. A primeira, sua semidestruição, com janelas quebradas por vândalos e inundação de parte da construção, causada pelo desvio do canal que antes regava a propriedade. A segunda, em tempo coincidente, foi a morte do poeta, doze dias após do golpe de estado liderado pelo general Augusto Pinochet. Após saber da rebelião militar e da terrível morte imposta pelos militares a Victor Jara, Neruda, que se encontrava em Isla Negra, decidiu abandonar o Chile e ir para o México, onde tentaria organizar um governo de exílio. Mas sua saúde não estava em ordem e por isso a família resolveu fazer exames em um hospital de Santiago, adiando por um dia a viagem já programada, em um avião que lhe mandara o governo mexicano. No dia seguinte, 23 de setembro de 1973 veio a falecer, segundo os médicos por problemas cardíacos. Sua morte até hoje é discutida, pois seu assessor e motorista, que o acompanhou até o hospital, levantou dúvidas, levado muita gente a acreditar que Neruda teria sido envenenado. Recentemente seus restos mortais foram exumados e três laboratórios de diferentes países fizeram análises. Nada foi encontrado que corroborasse a tese de morte causada por terceiros. Somente sinais de medicamentos utilizados para o tratamento da enfermidade – um câncer de próstata – que assaltava Neruda, na época.

Velório de Neruda, foto do jornalista brasileiro Evandro Teixeira (Jornal do Brasil), que fez a cobertura de sua morte

Velório de Neruda, foto do jornalista brasileiro Evandro Teixeira (Jornal do Brasil), que fez a cobertura de sua morte

A história registrou a coragem de Matilde, que decidiu velar o corpo de Neruda, em companhia de alguns amigos, em La Chascona. Depois ela passou a recuperar o local, pacientemente, e ali viveu até sua morte, em 5 de janeiro de 1985. Ontem, portanto, completaram-se 29 anos de seu falecimento, após o que a casa foi transformada em museu, assim como as outras duas. Porém, Matilde tinha outra missão a cumprir: levar o corpo de Pablo Neruda para Isla Negra, conforme ele havia determinado, poeticamente:

Compañeros, enterradme en Isla Negra, / frente al mar que conozco, a cada área rugosa de piedras/ y de olas que mis ojos perdidos/ no volverán a ver…” (Companheiros, enterrai-me em Isla Negra, / frente ao mar que conheço, a cada área rugosa de pedras/ e de ondas que meus olhos perdidos/ não voltarão a ver…).

Não o conseguiu em vida, mas em dezembro de 1992 finalmente seu desejo foi cumprido e ele foi enterrado em sua casa predileta ao lado da amada Matilde, frente ao Oceano Pacífico, que “saía do mapa. Não havia onde colocá-lo. Era tão grande, desordenado e azul que não cabia em nenhuma parte. Por isso o deixaram em frente a minha janela”.

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Há um texto riquíssimo que conta, em detalhes, como foi velado o corpo do poeta, em La Chascona, escrito por uma amiga que tudo viu. Como é longo, deixo o endereço eletrônico para quem quiser conhece-lo. http://www.archivochile.com/Homenajes/neruda/sobre_neruda/homenajepneruda0031.pdf

Por que NERUDA?

Ele nasceu com um nome mais extenso: Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto. Mas seu pai devia ter outros planos para seu futuro e não admitiria um poeta como filho. Aos 17 anos, já tocado pelas musas da Poesia, ele criou o pseudônimo definitivo, com o qual ascenderia à glória da literatura mundial. Em sua casa santiaguina existe uma placa de mármore, colocada no ano de 2000, na qual se oferece uma versão sobre a escolha do sobrenome, que teria sido uma homenagem ao poeta tcheco Jan Neruda (1834-1891). Dizem que o poeta chileno jamais desmentiu e também nunca confirmou essa versão. Alguns até a consideram improvável, porque o jovem Ricardo Neftalí, quando decidiu adotar o nome literário, vivia em uma época em que seria quase impossível haver livros de Jan Neruda traduzidos.

Placa da versão tcheca sobre a adoção do nome Neruda. O poeta não confirmou, nem desmentiu

Placa da versão tcheca sobre a adoção do nome Neruda. O poeta não confirmou, nem desmentiu

A versão mais verossímil diz ter sido a leitura de um livro de Arthur Conan Doyle, Um estudo em vermelho, que lhe levou a conhecer uma violinista moraviana, incluída nas aventuras de Sherlock Holmes, cujo nome de casada era Wilma Norman-Neruda, nascida Wilhelmine Maria Franziska Neruda ou Guillermina Maria Francisca Neruda (1838-1911). No livro, o detetive inglês, também apaixonado por violino, informa que iria escutar um concerto da famosa violinista. Daí teria nascido a escolha do nome do poeta.

E o prêmio não foi para...

Publicaram os jornais de Santiago do último sábado (04.jan.14), 50 anos depois de o poeta Pablo Neruda ter sido indicado ao Prêmio Nobel de Literatura (galardão que conquistaria mais tarde, em 1971), que, naquele ano de 1963, ele teria sido preterido em razão de sua militância junto ao Partido Comunista. Segundo as notícias, papéis secretos do Nobel foram finalmente liberados, dando conta que Neruda, indicado ao prêmio com mais quatro escritores (o irlandês Samuel Beckett, o japonês Yukio Mishima, o dinamarquês Aksel Sandemose, o britânico-estadunidense W. H. Auden e o grego Giorgos Seferis), teve levantada contra ele a tese de que “a tendência comunista, cada vez mais dominante em sua poesia” não seria “consistente com o propósito do Prêmio Nobel”. Na análise conclusiva do Comitê do Nobel, quando o poeta chileno já figurava entre um trio finalista, foi escolhido o grego Giorgios Seferis. A notícia cita como fonte principal o presidente do Comitê do Nobel e secretário permanente da academia naquele ano, Anders Osterling.

A informação e sua justificativa, no entanto, não coincidem com o objetivo do prêmio criado pelo sueco Alfred Nobel, que é distinguir personalidades importantes em diversas áreas, independentemente de critérios como a nacionalidade, a raça, a religião e a ideologia. Se cometido o erro, oito anos depois ele foi corrigido, com a merecida entrega do Nobel de Literatura de 1971 a Neruda.

Indicado em 1963, Neruda receberia o Prêmio Nobel de Literatura 13 anos depois

Indicado em 1963, Neruda receberia o Prêmio Nobel de Literatura 13 anos depois

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Autorretrato

Pablo Neruda

Por mi parte,
soy o creo ser duro de nariz,
mínimo de ojos,
escaso de pelos en la cabeza,
creciente de abdomen,
largo de piernas,
ancho de suelas,
amarillo de tez,
generoso de amores,
imposible de cálculos,
confuso de palabras,
tierno de manos,
lento de andar,
inoxidable de corazón,
aficionado a las estrellas, mareas, maremotos,
administrador de escarabajos,
caminante de arenas,
torpe de instituciones,
chileno a perpetuidad,
amigo de mis amigos,
mudo de enemigos,
entrometido entre pájaros,
mal educado en casa,
tímido en los salones,
arrepentido sin objeto,
horrendo administrador,
navegante de boca,
yerbatero de la tinta,
discreto entre los animales,
afortunado de nubarrones,
investigador en mercados,
oscuro en las bibliotecas,
melancólico en las cordilleras,
incansable en los bosques,
lentisimo de contestaciones,
ocurrente años después,
vulgar durante todo el año,
resplandeciente con mi cuaderno,
monumental de apetito,
tigre para dormir,
sosegado en la alegría,
inspector del cielo nocturno,
trabajador invisible,
desordenado, persistente,
valiente por necesidad,
cobarde sin pecado,
soñoliento de vocación,
amable de mujeres,
activo por padecimiento,
poeta por maldición y tonto de capirote.

Poster exposto em um dos jardins de La Chascona (foto de C. de Assis)

Poster exposto em um dos jardins de La Chascona (foto de C. de Assis)

Autorretrato

De minha parte,
sou ou creio ser duro de nariz,
mínimo de olhos,
escasso de pelos na cabeça,
crescente de abdômen,
comprido de pernas,
largo de solas,
amarelo de tez,
generoso de amores,
impossível de cálculos,
confuso de palavras,
terno de mãos,
lento de andar,
inoxidável de coração,
aficionado às estrelas, marés, maremotos,
administrador de escaravelhos,
caminhante de areias,
torpe de instituições,
perpetuamente chileno,
amigo de meus amigos,
mudo de inimigos,
intrometido entre pássaros,
mal educado em casa,
tímido nos salões,
arrependido sem objeto,
horrendo administrador,
navegante de boca,
ervateiro da tinta,
discreto entre os animais,
afortunado nos nuvarrões,
investigador em mercados,
obscuro nas bibliotecas,
melancólico nas cordilheiras,
incansável nos bosques,
lentíssimo de contestações,
ocorrente anos depois,
vulgar durante todo o ano,
resplandecente com meu caderno,
monumental de apetite,
tigre para dormir,
sossegado na alegria,
inspetor do céu noturno,
trabalhador invisível,
desordenado, persistente,
valente por necessidade,
covarde sem pecado,
sonolento por vocação,
amável com mulheres,
ativo por padecimento,
poeta por maldição e bobo com chapéu de burro.

versão ao Português de Cleto de Assis

Rumo ao berço de Neruda

Estou tomando o rumo do Sul, em direção à pátria de Pablo Neruda. Pretendo descansar, divertir-me, degustar os sabores do Chile e conhecer a nova poesia chilena. Vou percorrer o triângulo de Neruda, formado pelos vértices de Santiago, Valparaiso e El Quisco, onde se encontram as três casas do poeta – La Chascona, La Sebastiana e Isla Negra, respectivamente.

Sobre esta, considerada a principal casa-museu de Neruda, o poeta deixou escrito: “En mi casa he reunido juguetes pequeños y grandes, sin los cuales no podría vivir. Son mis propios juguetes. Los he juntado a través de toda mi vida con el científico propósito de entretenerme solo. El niño que no juega no es niño, pero el hombre que no juega perdió, para siempre al niño que vivía en él y que le hará mucha falta. He edificado mi casa también como un juguete y juego en ella de la mañana a la noche”. (Em minha casa reuni brinquedos pequenos e grandes, sem os quais não poderia viver. São meus próprios brinquedos. Juntei-os através de toda minha vida com o científico propósito de entreter-me sozinho. O menino que não brinca não é menino, porém o homem que não brinca perdeu, para sempre, o menino que vivia nele e que lhe fará muita falta. Construí minha casa também como um brinquedo e brinco nela da manhã à noite.)

Do Chile enviarei notícias poéticas. Com a Ode ao Vinho, de Neruda, ergo um brinde pela paz maior que odos desejamos para o ano novo que se iniciará dentro de algumas horas.

Oda_al_vino

ODA AL VINO

Pablo Neruda

Vino color de día
vino color de noche
vino con pies púrpura
o sangre de topacio
vino,
estrelloado hijo
de la tierra
vino, liso
como una espada de oro,
suave
como un desordenado terciopelo
vino encaracolado
y suspendido,
amoroso, marino
nunca has cabido en una copa,
en un canto, en un hombre,
coral, gregario eres,
y cuando menos mutuo.

El vino
mueve la primavera
crece como una planta de alegría
caen muros,
peñascos,
se cierran los abismos,
nace el canto.
Oh tú, jarra de vino, en el desierto
con la saborosa que amo,
dijo el viejo poeta.
Que el cántaro del vino
al peso del amor sume su beso.

Amo sobre una mesa,
cuando se habla,
la luz de una botella
de inteligente vino.
Que lo beban,
que recuerden en cada
gota de oro
o copa de topacio
o cuchara de púrpura
que trabajó el otoño
hasta llenar de vino las vasijas
y aprenda el hombre obscuro,
en el ceremonial de su negocio,
a recordar la tierra y sus deberes,
a propagar el cántico del fruto.

ODE AO VINHO

Pablo Neruda

Vinho cor do dia
vinho cor da noite
vinho com pés púrpura
o sangue de topázio
vinho,
estrelado filho
da terra
vinho, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um desordenado veludo
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso, marinho
nunca coubeste em um copo,
em um canto, em um homem,
coral, gregário és,
e quando menos mútuo.

O vinho
move a primavera
cresce como uma planta de alegria
caem muros,
penhascos,
fecham-se os abismos,
nasce o canto.
Ó tu, jarra de vinho, no deserto
com a saborosa que amo,
disse o velho poeta.
Que o cântaro do vinho
ao peso do amor some seu beijo.

Amo sobre uma mesa,
quando se fala,
à luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou copo de topázio
ou colher de púrpura
que trabalhou o outono
até encher de vinho as vasilhas
e aprenda o homem obscuro,
no cerimonial de seu negócio,
a recordar a terra e seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.

versão ao Português de Cleto de Assis

Saudação ao Outono

Ruínas

Se é sempre Outono o rir das primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair…
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruínas crescer heras.
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino de Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais altos do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!… Deixa-os tombar… deixa-os tombar…

Florbela Espanca

Crepúsculo de Outono

O crepúsculo cai, manso como uma benção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito…
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale…o horizonte purpúreo…
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.

Manoel Bandeira

Canção de Outono

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão…

Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
– a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão…

Cecília Meireles

No Ciclo Eterno

No ciclo eterno das mudáveis coisas
Novo inverno após novo outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
Porém a mim nem me acha diferente
Nem diferente deixa-me, fechado
Na clausura maligna
Da índole indecisa.
Presa da pálida fatalidade
De não mudar-me, me infiel renovo
Aos propósitos mudos
Morituros e infindos.

Fernando Pessoa / Ricardo Reis

Poema de Outono

Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.

Pablo Neruda

A água inerte de Gabriela

Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, nascida em Vicuña, Chile, a 7 de abril de 1889, escolheu um nome mais curto para assinar seu belo trabalho poético. Gabriela Mistral foi o nome que se notabilizou e alcançou o prêmio Nobel de Literatura de 1945, antes mesmo de seu patrício e colega Pablo Neruda, que o ganhou em 1971. E Mistral por quê? É o nome de um vento típico do sul da França, também chamado de vento de Outono, que transporta ar de alta densidade pelas colinas abaixo. Um vento catabático (do grego katabatikos, descendo colinas). Gabriela soube domá-lo e com ele cavalgar pelo reino da Poesia, ora a fazer emergir o amor, outras vezes a extrair emoções da memória, cheias de dor e mágoa. Mas Gabirela Mistral também cantou os elementos vitais e a própria água. Neste Dia Internacional da Água, lembramos um de seus belos poemas, em que observa a chuva, “este fino pranto amargo” que verte sobre a terra.

LA LLUVIA LENTA

Esta agua medrosa y triste,
como un niño que padece,
antes de tocar la tierra
……….desfallece.

Quieto el árbol, quiero el viento,
¡y en el silencio estupendo,
este fino llanto amargo
……….cayendo!

El cielo es como un inmenso
corazón que se abre, amargo.
No llueve: es un sangrar lento
……….y largo.

Dentro del hogar, los hombres
ni sienten esta amargura,
este envío de agua triste
……….de la altura.

Este largo y fatigante
descender de agua vencida.
hacia la Terra yacente
……….y transida.

Bajando el agua inerte,
callada como un ensueño,
como las criaturas leves
……….de los sueños.

Llueve… y como chacal lento
La noche acecha en la tierra.
¿Qué va a surgir, en la sombra,
……….de la Tierra?

¿Dormiréis, mientras afuera
cae, sufriendo, esta agua inerte,
esta agua letal, hermana
……….de la Muerte?

A CHUVA LENTA

Trad. de Ruth Sylvia de Miranda Salles

Esta água medrosa e triste,
como criança que padece,
antes de tocar a tierra,
……….desfalece.

Quietos a árvore e o vento,
e no silêncio estupendo,
este fino pranto amargo,
……….vertendo!

Todo o céu é um coração
aberto em agro tormento.
Não chove: é um sangrar longo
……….e lento.

Dentro das casas, os homens
não sentem esta amargura,
este envio de água triste
……….da altura;

este longo e fatigante
descer de água vencida,
por sobre a terra que jaz
……….transida.

Em baixando a água inerte,
calada como eu suponho
que sejam os vultos leves
……….de um sonho.

Chove… e como chacal lento
a noite espreita na serra.
Que irá surgir na sombra
……….da Terra?

Dormireis, quando lá foram
sofrendo, esta água inerte
e letal, irmã da Morte
……….se verte?

Um poeta andino mais alto que os Andes

Os 120 anos de Vallejo

No último dia 16 de março completaram-se os 120 anos de nascimento do poeta peruano César Abraham Vallejo Mendoza (Santiago de Chuco, 1892 – Paris, 1938). O escritor uruguaio Mario Benedetti o considerava o mais influente poeta das letras hispano-americanas do mundo moderno e o chileno Pablo Neruda dizia que Vallejo era melhor poeta do que ele próprio. De vida atribulada, pendente entre a religiosidade com que foi criado em uma família pobre e a rebeldia política que o conduzia a denunciar o sofrimento dos mais pobres, César Vallejo  viveu seus 46 anos com a alma amargurada, sentindo-se desamparado a ponto de dizer que havia nascido em um dia em que Deus estava enfermo. Mas os grandes poetas são grandes até mesmo na tristeza e na desesperança. Foi o que percebeu o nosso poeta Manoel de Andrade no livro que escreve sobre suas andanças pela América Latina, ao dedicar um sólido capítulo sobre o poeta peruano. Vamos publicá-lo em homenagem ao aniversariante – por seu nascimento de março e por sua morte em 15  abril próximo, quando somar-se-ão  46 anos desde sua partida. Dada a riqueza de detalhes que compõe a vida de Vallejo, o texto é extenso, mas vale a pena registrá-lo, em face do cuidadoso e sensível tratamento dado por Manoel de Andrade. (C. de A.)

CESAR VALLEJO: Um coração dividido (*)

Manoel de Andrade

Eu conhecia apenas alguns poemas esparsos de Cesar Vallejo quando encontrei, entre os livros de Francisco Macias, – meu anfitrião em Lima em fins de 69 – o poemário Trilce.

Publicada em 1922, sob a influência das vanguardas europeias e rompendo com a tradição poética peruana, a obra lembrava-me a renovação da linguagem e a liberdade na criação poética apresentadas pelo movimento modernista brasileiro de 22, que também rompera com os cânones parnasianos e românticos da poesia brasileira, influenciada pelos ismos europeus e sobretudo pelo Futurismo de Maninetti.

Como nunca aceitei o radical rompimento com os ideais estéticos do século XIX, proposto pela Semana da Arte Moderna de São Paulo – que foi um modernismo meramente paulista, marcado pela irreverência e o ufanismo, ideologicamente reacionário e com uma insensata aversão pelo lirismo –  não  me identifiquei com o discurso poético do segundo livro de Vallejo. Trilce surgiu numa época em que, na literatura hispânica, estava em moda a poesia “experimental” como uma reação em marcha contra o modernismo e foi  um desesperado manifesto de liberdade do poeta, expresso por sua íntima intuição, mas marcado então por uma liberdade literária ainda sem norte. “Quero ser livre  – declara, na época, em carta, a seu amigo Antenor Orrego  – ainda que a troco de todos os sacrifícios. Por ser livre, me sinto ocasionalmente rodeado de espantoso  ridículo  com o ar de um menino que leva a colher às narinas…1 O resultado desse íntimo desencontro é uma atitude poética audaciosa e original, mas expresso em versos sem lógica, frases  fragmentadas, espaços em branco, letras invertidas, neologismos, imagens herméticas, numa linguagem extraída do caos e do absurdo que maculam a  imagem da poesia.

Como a postura de vanguarda, em Trilce, pertencia a uma fase da linguagem poética que eu já havia superado, – sobretudo pelo engajamento político da minha poesia na década de 60, no Paraná – mas sabendo da consagração mundial da poesia de Vallejo e das providências que, naqueles anos, tomava a intelectualidade peruana, para consagrar a imagem do seu maior poeta – desprezado e autodesterrado para sempre da pátria, quarenta anos antes –, me isolei por uma semana, na Biblioteca Nacional do Peru, para ler a tão comentada primeira edição nacional de sua obra poética completa,  lançada no país, no ano anterior pelo editor Francisco Moncloa. (2)

Excetuando-se quatro poemas, toda a obra poética de Vallejo, escrita depois de Trilce, somente foi publicada depois de sua morte. Contudo, seu livro Poemas Humanos, última fase de sua produção poética, continuaria marcado pelo binômio metafísico do tempo e da morte, ante a ironia e a orfandade do homem diante do destino, mas agora enriquecido pelo comprometimento político, pelo seu despojamento social e solidário com o ser humano onde sua poesia conquista o merecido reconhecimento mundial e a cidadania da universalidade. Percebe-se claramente nessa obra o resgate poético do vazio com que ele próprio declarou ter escrito Trilce: “ O livro nasceu no maior vazio” – escreveu ao amigo Antenor Orrego, logo após seu lançamento –“Sou responsável por ele. Assumo toda a responsabilidade de sua estética”.3 Essa discreta “mea culpa” prematura de Vallejo será reassumida abertamente, alguns anos depois em Paris, quando ele renega Trilce depois que adere ao marxismo e ao ativismo ideológico.

1. Los heraldos negros

Mas além da grandeza e da qualidade social dos Poemas Humanos, tocou-me sobretudo, o lirismo de seu primeiro livro, Los Heraldos Negros, de 1918, obra com a qual inaugurou uma nova fase da poesia peruana. O primeiro poema, que dá o nome ao livro, aqui apresentado na excelente tradução de Felipe José Lindoso4, nos leva a profundas reflexões sobre o significado da vida, com seus golpes, poucos, mas cruéis, que nos são enviados como os arautos da morte:

Os arautos negros

Há golpes na vida, tão fortes… Não sei!
Golpes como o ódio de Deus; como se diante deles
A ressaca de todo o sofrido
Encharcasse a alma… Não sei!
São poucos;  mas são… Abrem valas escuras
 no rosto mais duro e no lombo mais forte.
Serão talvez os potros de bárbaros átilas;
ou os arautos negros que nos manda a morte.
São as quedas profundas dos Cristos da alma,
de alguma fé adorável que o Destino blasfema.
Esses golpes sangrentos são as crepitações
de algum pão que nos queima na  porta do forno.
E o homem… Pobre… pobre! Volta os olhos, como
quando por cima do ombro nos chama uma palmada;
volta os olhos loucos, e todo o vivido
se empoça, como charco de culpa, na mirada.
Há golpes na vida, tão fortes… Não sei!”5

Todo o simbolismo que permeia Los Heraldos Negros ultrapassa esse estilo, meramente literário, para identificar-se com a própria simbologia da vida no seu cotidiano como um todo e a uma particular expressão nostálgica das imagens antropomórficas da cultura andina.  Talvez, por isso mesmo e por sua origem e aparência de mestiço, sua poesia não foi aceita, na época, pela “aristocrática” intelectualidade limenha. Na atualidade, Vallejo é a glória da poesia peruana, mas Mariátegui colocou abertamente, já em 1928, o dedo nessa preconceituosa  ferida cultural ao afirmar que  “Essa arte assinala o nascimento de uma nova sensibilidade. É uma arte nova, uma arte rebelde, que quebra com a tradição cortesã de uma literatura de bufões e lacaios. Essa linguagem é a de um poeta e de um homem. O grande poeta de Los heraldos negros e de Trilce  –  esse grande poeta que passou ignorado e desconhecido pelas ruas de Lima tão propícias e subservientes aos louros dos jograis de feira  —  se apresenta, em sua arte, como um precursor do novo espírito, da nova consciência”. (6)

2. O indigenismo de Vallejo

Vallejo foi amigo do grande ensaísta peruano José Carlos Mariátegui, com quem conviveu e depois manteve o mais estreito contato do exterior publicando seus textos na Revista Amauta fundada em Lima no ano de 1926, por Mariátegui,  levantando com ele as bandeiras do indigenismo andino – empunhadas primeiramente pelo pensamento lúcido e acusador de Manuel Gonzáles Prada, “descobridor” do índio peruano,7 e, depois, respectivamente,  por Ciro Alegria, José Maria Arguedas e  Manuel Scorza   –  e referindo-se poeticamente ao incário em sua histórica grandeza, quando o perfil do Império do Sol se justapunha á silhueta litorânea e a paisagem andina do continente americano do sul da Colômbia até o norte do Chile. “Consiste o indigenismo de Cesar Vallejo em mostrar seus antepassados não como débeis criaturas, mas sim pelo contrário” —  é o que afirma o escritor colombiano Miguel Manrique, mostrando a clara disposição de Vallejo para o melhor indigenismo, não somente na poesia, mas também como prosador em sua novela Hacia el Reino de los Sciris: Ressaltando a pompa de uma civilização na plenitude de sua glória e não na apresentação melindrosa da arquisabida má história da conquista. O que  melhor,  para alguém que se considera membro ou natural de uma coletividade, que representá-la com o brilho que Cesar Vallejo faz com esta curta porém imensa novela. Muito melhor do que se o escritor se colocasse na chorosa  tarefa de encenar a captura de Atahualpa e as exigências para o seu resgate. Vallejo se converte assim em um Homero quíchua que tece com luminosidade o esplendor de sua civilização, do outro costado do seu ser. Os dois sangues nunca o abandonarão nem muito menos o trairão, um em benefício covarde do outro. Vallejo soube toda a vida ser índio e espanhol, desfraldando uma mestiçagem fidalga, fiel descendente do quixotesco e do quíchua”.8

E agora, é novamente Mariáteghi quem declara: “Vallejo é o poeta de uma estirpe, de uma raça. Em Vallejo se encontra, pela primeira vez em nossa literatura, sentimento indígena virginalmente expresso.9 Contudo é um pouco diferente a opinião contemporânea do poeta e ensaísta peruano Américo Ferrari — talvez o melhor conhecedor da poesia de Vallejo  –  quando se refere a’Os Heraldos Negros: “O tema indigenista e telúrico é, de todos os modos, n’Os Heraldos Negros, secundário: a vocação do verdadeiro Vallejo é ruminar obsessões mais que descrever paisagens ou cantar a raça.” E contudo é o mesmo Ferrari quem escreve anteriormente: (…)“E, não obstante, existe algo mais: sob o espartilho das novas formas palpita a emoção e a nostalgia, o apego à terra andina de um homem que já antes de sair do Peru, na cidade costeira de Trujillo primeiro, em Lima depois, se sentia desterrado: desterrado do lar, que se confunde com o lugar onde nasceu, que se confunde com a pátria. A pátria é o entorno andino, com seu povoador, o camponês índio e serrano. Mais tarde, em Paris, o índio, essencializado e agigantado pela distância e a nostalgia, será protótipo de humanidade: “Índio depois de homem e antes dele”; e a serra peruana, símbolo de pátria universal: “Serra do meu Peru, Peru do mundo/ e Peru ao pé do orbe; eu concordo!”10

O fato é que sua condição de mestiço está sempre presente na sua assumida postura quíchua e castelhana, índia e espanhola, marcada pelo seu amor ao Peru e à Espanha, pela sua vida quixotesca e sempre iluminada pela luz e o calor de Inti, o deus Sol dos seus antepassados. “Había en Vallejo esa ‘inocencia candorosa’ que ha visto bien Larrea, pero oculta tras una máscara algo dura: la de su ‘pathos’ indígena, difícil en el primer momento de traspasar, llegando al transfondo puro, más allá del mestizaje sufrido. ‘Mineraloide’, incaico, andino  – se ha dicho.”11

Há também, na fase inicial da poesia de Vallejo, uma contraditória religiosidade e uma imagem de Deus ora evocada com amargura e hostilidade (“golpes como o ódio de Deus”) ora com o sentimento de piedade pelos homens:12

Sinto Deus que caminha
tão em mim, com a tarde e com o mar.
Com ele vamos juntos. Anoitece
Como ele anoitecemos. Orfandade…
 
Mas eu sinto Deus. E até parece
que ele me dita nem sei que boa cor.
Como um hospitaleiro, e bom e triste;
languesce um doce desdém  de apaixonado:
deve doer-te muito o coração.
 
Oh, Deus meu, só agora a ti chego
hoje que amo tanto esta tarde; hoje
que na balança falsa de uns seios
olho e choro uma frágil Criação.
 
E tu, o que chorarás… tu, apaixonado
de tão enorme seio girador…
Eu te consagro Deus, porque amas tanto;
porque jamais sorris; porque sempre
deve doer-te muito o coração.13

3. A pobreza, a indiferença e os caminhos do mundo

Nascido em 1892 em Santiago de Chuco, numa região montanhosa a quinhentos quilômetros ao norte de Lima, décimo primeiro filho de uma família de origem indígena e espanhola, Cesar Abraham Vallejo Mendoza sempre se identificou com os pobres e desamparados do mundo porque essa foi a imagem que trouxe da infância e adolescência marcada por dificuldades familiares próximas da miséria.. Viveu sua juventude com a intelectualidade de Trujillo em cuja Universidade estudou e onde publicou seus primeiros poemas. Foi lá que  entrou em contato com a poesia de Juan Ramón Jimenez, Miguel de Unamuno, Rubén Darío, Walt Whitman, Julio Herrera y Reissig e Chocano.14

Chega a Lima em 1917 e no ano seguinte publica Los Heraldos Negros, onde transparece a influência e sua admiração por Darío, a afinidade com Herrera, onde usa e abusa do valor dos símbolos. Talvez tenha sido a indiferença com que os limenhos trataram  a poesia de seus dois primeiros livros e sua injusta prisão de quatro meses, em Trujillo, por sua suposta participação em um incidente público ao visitar sua terra natal em 1920,  que o levou em 1923, a deixar o Peru para sempre, indo viver em Paris onde passará fome, dormirá algumas noites ao relento e depois sobrevive da atividade gráfica, jornalística, de traduções e docência. É ali que conhece os grandes poetas e pintores da época como Vicente Huidobro, Pablo Neruda, Juan Gris, Pablo Picasso, Antonin Artaut, Jean Cocteau, Tristan Tzara e o poeta espanhol Juan Larrea, que seria seu grande amigo, futuro biógrafo e com quem funda, em 1926, a Revista Favorables Paris Poema.  Em 1928 viaja a Moscou, onde conhece Maiakovski. Retorna a Paris, onde abre a  primeira célula parisiense do Partido Socialista do Peru e no ano seguinte, em companhia de Georgette Marie Philippart Travers – com quem passa a viver – viaja novamente à Rússia, retornando pela Hungria, Áustria, Tchecoslováquia, Polônia, Alemanha e Itália.

Em 1930 chega à Espanha para o lançamento da segunda edição de Trilce, voltando em seguida a Paris de onde é expulso por propagar o comunismo. Em 1931 está novamente na Espanha onde testemunha a queda da monarquia e a ascensão republicana. Relaciona-se com o filósofo Miguel de Unamuno, com António Machado e com os poetas mais jovens, da chamada “geração de 27”, como Federico Garcia Lorca e Rafael Alberti, Jorge Guillen, Miguel Hernandez, Luis Cernuda, Dámaso Alonso ePedro Salinas, entre outros e quase todos vítima da Guerra Civil Espanhola. Neste mesmo ano publica suas crônicas e ensaios sobre a Rusia en 1931 e Reflexiones al pie del Kremlin, título cujo sucesso de vendas levou os editores espanhóis a publicar três edições em quatro meses. Ainda em 1931, atendendo a uma proposta editorial de uma novela proletária, escreve em três semanas e publica em Madri o livro El tungsteno, onde recorda seu tempo de adolescente e o contacto com trabalhadores da Empresa Minimo Society, no assentamento mineiro de Quiruvilca, perto de sua cidade natal. Denuncia as injustiças por que passam os mineiros, acusando os “gringos” e autoridades peruanas que defendem os interesses dos exploradores norte-americanos em detrimento dos abusos contra os mineiros e, sobretudo, pela exploração de uma coletividade indígena da etnia sora, submetida pelos atos mais cruéis e iníquos de arbitrariedade e cuja revolta é sufocada com o sangue dos caídos.

Em 1931 realiza sua última viagem a Moscou para participar do Congresso Internacional de Escritores Solidários com o Regime Soviético, de onde retorna a Madrid e encontra as portas editoriais fechadas a seus novos livros em razão do caráter marxista e revolucionário de suas obras. Recomeça a escrever poesia cujos versos serão publicados, postumamente, com o título de Poemas Humanos.

Em 1932 filia-se ao Partido Comunista Espanhol e regressa a Paris onde vive na clandestinidade, organizando, posteriormente, com Neruda, a coleta de fundos para a causa republicana na guerra civil espanhola. Em 1937 volta pela última vez à Espanha para participar do Congresso Internacional de Escritores Antifascistas, e talvez porque sua precária saúde o impedisse de empunhar um fuzil para defendê-la, escreve seu grande poema político: España, aparta de mí este cáliz, que deu título ao livro de quinze poemas, publicado postumamente, em 1939, como um verdadeiro testamento poético, por sua viúva, Georgette Vallejo.

4. Cesar Vallejo, um coração dividido.

Vallejo foi homem repartido. Filho da consanguinidade indígena e espanhola, sentiu seu coração dividir-se pelos caminhos da vida. Primeiro sentiu sua alma partir-se, dolorosamente, entre a imagem querida da mãe e a imperecível saudade que chegou com sua morte, em 1918.  Repartiu-se entre o idílio e a separação da mulher que amou, num romance tormentoso e frustrado de sua juventude como professor em Lima. Sentiu sempre o coração dividido entre a pátria e o mundo e culturalmente entre o Peru e a Espanha.  Vallejo viveu dividido entre Paris e a sua crônica nostalgia da paisagem andina. Pablo Neruda, seu grande amigo, afirma que: “Vallejo era sério e puro. Morreu em Paris. Morreu no ar sujo de Paris, do rio sujo de onde tiraram tantos mortos. Vallejo morreu de fome e asfixia. Se o tivéssemos trazido para o Peru, se o tivéssemos feito respirar ar e terra peruana, talvez estivesse vivo e cantando.15

O poeta  transitou balizado pelas  ironias da vida, pelos golpes do destino, entre o desespero e a esperança, que atormentaram sua alma sobretudo depois dos quarenta anos, onde sua poesia mantém sempre aquela obscuridade tatuada pela dor dos homens, pela perplexidade ante o grande mistério da vida e o significado da morte: “Haver nascido para viver de nossa morte”, e assim sempre dividido entre o imenso vazio do mundo e seu sonho de plenitude espiritual e de uma eterna felicidade. “E se alguém fica perplexo ante esse universo de trevas, de limites, é sobretudo o próprio poeta que o revela em seu poema; (Panteón)  daí o acento de angústia que raramente abandona Vallejo; daí essas yuntas, essas parelhas de significações em conflito que não são nunca abolidas nem superadas: o todo – o nada, a alma – o corpo, o alto – o baixo, o nunca – o sempre, o tempo – a eternidade, a vida – a morte, Deus – nada”.16

Vallejo viveu repartido entre sua íntima plenitude, filosófica e poética, e sua fidelidade ao marxismo. Conforme carta datada em 29 de Janeiro de 1932 ao poeta e amigo Juan Larrea, Vallejo confessa: “Comparto a minha vida entre a inquietação política e social e a minha inquietação introspectiva e pessoal minha para dentro. Ou seja, O poeta sentia-se, pois, dividido, sem conseguir unificar as duas partes de que se sentia feito: uma de inquietação política e social, que o marxismo satisfazia; outra introspectiva e pessoal minha para dentro para a qual nunca encontrou resposta que o satisfizesse, nem mesmo a religião que desde os primeiros tempos pulsava no seu íntimo, sem que por isso possa entender-se a adesão a uma igreja. Essa angústia persistirá até a sua morte, não sem um vislumbre de esperança que o levará a ditar a sua mulher, poucos dias antes de morrer, estas palavras: Qualquer que seja a causa que tenha de defender perante Deus, para além da morte, tenho um defensor:Deus.”17

Vallejo, cuja poesia foi desprezada por seus contemporâneos, é tido hoje como o maior poeta peruano de todos os tempos e talvez a figura mais proeminente da poesia hispano-americana depois de Pablo Neruda, o qual declarou que a poesia de Vallejo era maior que sua própria poesia.  Foi um homem marcado por transes pedregosos, por uma infância de misérias e penitências, e sua pobreza o obrigou a abandonar, em 1910, o curso de Letras na Universidade de Trujillo – somente concluído em 1915 –  para dar aulas particulares e depois trabalhar na administração de uma fazenda açucareira no vale de Chicama, onde presencia o drama cruel e cotidiano da exploração do trabalho indígena. Ciro Alegria – que depois se tornaria um dos grandes romancistas peruanos – conta que foi aluno de Vallejo no Colégio San Juan, de Trujillo, e que (…) “De todo seu ser fluía uma grande tristeza. Nunca  vi um homem que parecesse mais triste. Sua dor era como  uma secreta e ostensível condição, que terminou por contagiar-me.(…)  Ainda que à primeira vista pudesse parecer tranquilo, havia algo profundamente desgarrado naquele homem que eu não entendi mas senti com toda minha desperta e alerta sensibilidade de menino.(…) Foi assim como encontrei a  César Vallejo e como o vi, como se fosse pela primeira vez. As palavras que dele ouvi sobre a Terra são também  as que mais  gravei na memória. O tempo haveria de revelar-me novos aspectos de sua pessoa, os longos silêncios em que caía, sua atitude de tristeza infindável…(…)”18

5. “O poeta dos vencidos”

Eu nasci num dia em que Deus estava enfermo”, afirma ele, reiteradamente, em seu poema Espergegia. E apesar de tudo, do sentimento pessimista pela sua dor e por compreender a imensa dor humana, do desamparo que colheu da vida, nunca permitiu que suas dolorosas experiências alterassem seu espírito solidário com os pobres, os injustiçados do mundo e apagassem de sua alma a fé revolucionária e a esperança com que o marxismo prometia a construção de uma sociedade mais justa para todos os homens.

É, por isso mesmo, chamado o poeta dos pobres, da dor dos homens, o “poeta dos vencidos” na ótica histórica de Eduardo Galeano, e esse é o retrato que está por trás dos 76 poemas que integram os seus Poemas Humanos, escritos entre 1931 e 1937, e publicados, postumamente, em Paris, em 1939. “Aí o poeta exprimiu o sofrimento próprio e dos outros, o absurdo da existência, o sentimento de culpa que sentia pelos direitos em que se baseia a sociedade que fazia parte, e revolta perante a injustiça que era gritante ao seu redor, o horror da guerra vista como conflito global, sem rosto, e como tragédia dos seus humildes protagonistas anônimos, as contradições de um ser tenso entre pontos opostos que não param de enfrentar-se, a esperança num mundo de compreensão entre os homens, que ele sabia ser uma utopia”19

O seu sentimento poético de solidariedade e de piedade pelos desamparados e humildes, cujos primeiros passos são dados n’Os Heraldos Negros, – como neste fragmento do poema El pan nuestro:

Todos meus ossos são alheios;
quem sabe os tenha roubado!
Dei-os a mim mesmo o que talvez estivesse
designado para outro;
e penso que, se não tivesse nascido,
outro pobre tomaria este café!
Sou um mau ladrão… Para onde irei?

E nesta hora fria, em que a terra
recende a pó humano e é tão triste,
quisera eu bater em todas as portas
e suplicar a não sei quem, perdão,
e fazer-lhe pedacinhos de pão fresco
aqui,  no forno do meu coração…!
(20)

– caminham ao longo de toda sua vida de escritor e chegam ainda mais comoventes em tantos de seus últimos poemas, como a perplexidade ante a dor humana em Los Nueve Monstruos e nestes versos fraternos de Traspié entre dos estrellas, ambos do livro Poemas Humanos:

Amado seja aquele que tem percevejos,
o que anda sob a chuva com sapatos furados
o que vela o cadáver de um pão com dois fósforos,
o que prende um dedo  numa porta,
o que não tem aniversário,
o que perdeu sua sombra num incêndio,
o animal, o que parece um papagaio,
o que parece um homem, o pobre rico,
o puro miserável, o pobre pobre!
21

6. O pressentimento e a morte

Na poesia dos últimos tempos de Vallejo, apesar do engajamento político dos seus  versos, persistirão sempre a sua obsessão pelo metafísico, que já existia com a feição religiosa  n’Os Heraldos Negros e ressurgindo somente em Espanha, aparta de mi este cáliz,  e nos Poemas Humanos onde o social e o metafísico se abraçam solidariamente nas emoções e sentimentos dos homens diante  da pobreza, do abandono, da injustiça e da morte. O tema da morte é uma constante na poesia de Vallejo e, à medida que o poeta dela se avizinha, vai registrando com seus versos sua despedida do mundo, como no poema París, octubre 1936:

De tudo isto sou o único que parte.
vou-me deste banco vou-me , de meus calções,
de minha  grande situação, de minhas ações,
de meu número fendido parte a parte,
de tudo isto sou o único que parte.

Dos Campos Elíseos ao dar volta
à estranha viela da Lua,
meu féretro se vai, parte de meu berço,
e, rodeada de gente, sozinha, solta,
minha semelhança humana dá a volta
e despacha suas sombras uma a uma.

E afasto-me de tudo, porque o todo
fica para ser restringido:
meu sapato, sua botoeira,  seu lodo
e até a dobra do  cotovelo
de minha própria camisa abotoada.
2

Há também um claro pressentimento de sua morte no poema Pedra negra sobre uma pedra branca. Não morreu na quinta, como supôs, mas no dia seguinte, numa sexta-feira chuvosa. Era outono em Lima, mas primavera em Paris. Este é um dos seus poemas mais conhecidos e dos mais reproduzidos nas antologias e seu estranho título deriva de uma tradição dos habitantes de Santiago de Chuco, sua cidade natal: o de colocar uma pedra negra sobre uma pedra branca para assinalar os enterros. Eis um fragmento:

Morrerei em Paris com aguaceiro
num dia do qual já tenho a lembrança.
Morrerei em Paris — de onde não saio —
talvez numa quinta, como hoje, de outono.(…)
23

No início de 1938 leciona Língua e Literatura em Paris, quando tem um forte esgotamento físico. Foi internado em 24 de março com sintomas indefinidos que o levaram a uma forte crise e à morte em 15 de abril daquele ano, numa sexta-feira chuvosa. O poeta e romancista francês, Louis Aragon, um dos iniciadores do surrealismo, fez o elogio fúnebre a Vallejo, cujos restos repousam no cemitério de Montparnasse com o epitáfio: “He nevado tanto, para que duermas”.

“Esta primavera da Europa está  crescendo sobre mais um, um inesquecível entre os mortos, nosso bem-admirado, nosso bem-querido César Vallejo. Por estes tempos de Paris, ele vivia com a janela aberta, e  sua pensativa cabeça de pedra peruana recolhia o rumor de França, do mundo, da Espanha… Velho combatente da esperança, velho querido. É possível? E que faremos neste mundo para sermos  dignos de tua silenciosa obra duradoura, do teu interno crescimento essencial? Já em teus últimos tempos, irmão, teu corpo, tua alma te pediam terra americana, mas a fogueira da Espanha te retinha na França, onde ninguém foi mais estrangeiro.Porque eras o espectro americano  – indo-americano como vós outros preferis dizer  – , um espectro de nossa martirizada América, um espectro maduro na liberdade e na paixão. Tinhas algo de mina, de socavão lunar, algo terrenamente profundo.

“Rendeu tributo a suas muitas fomes” –  me escreve Juan Larrea. Muitas fomes, parece mentira…  As muitas fomes, as muitas solidões, as muitas léguas de viagem, pensando nos homens, na injustiça sobre a terra, na covardia de meia humanidade. O caso da Espanha já te ia roendo a alma. Essa alma roída por teu próprio espírito, tão despojada, tão ferida por tua própria necessidade ascética. O caso da Espanha foi a verruma diária para a tua imensa virtude. Eras grande, Vallejo. Eras interior e grande, como um grande palácio de pedra subterrânea, com muito silêncio mineral, com muita essência de tempo e de espécie. E ali no fundo, o fogo implacável do espírito, brasa e cinza…   Salve, grande poeta, salve irmão!”24

Pablo Neruda25

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Notas e textos em espanhol

(*) Este artigo integra o texto de um livro que o autor está escrevendo sobre os anos que passou na  América Latina , nas décadas de 60/70.

1. O texto original em espanhol pode ser encontrado em: FERRARI, Américo. César Vallejo entre la angústia y la esperanza. In: FERRARI, Américo (int.). Cesar Vallejo: Obra poética completa. Madrid: Alianza ,1983, p. 20.

2. O reconhecimento literário de toda obra poética de Vallejo chegou, editorialmente, trinta anos atrasado em seu próprio país. A primeira edição de Poemas Humanos (1923-1938) foi publicada  por Editions des Press Modernes, Paris, 1939, um ano depois de sua morte.  Já na América do Sul, foi a editora argentina Losada que tomou a dianteira na publicação de toda a sua poesia, editando, em  1949, as Poesías Completas (1918-1938). Em 1959, Los Heraldos Negros e Poemas Humanos foram publicados em Lima, em edições separadas, pela Editora Peru Nuevo. Contudo a publicação de  Cesar Vallejo, Obra poética completa, somente foi lançada no Peru em 1968, pelo editor Francisco Moncloa. Essa edição tornou-se clássica, servindo de base para muitas outras edições latino-americanas,  espanholas e portuguesas. Além do excelente prólogo de  Américo Ferrari, a obra, com 510 páginas, foi supervisionada por Georgette Vallejo, esposa do poeta, e sua originalidade está em apresentar  os fac-smiles dos poemas póstumos, quase todos datilografados e corrigidos pelo próprio Vallejo. Em 1970, a Casa das América editou em Havana Cesar Vallejo, obra poética completa, com prólogo do poeta cubano Roberto Fernández Retamar, reproduzindo o título e o texto da edição Moncloa.

3. FERRARI, Américo. Obra citada.

 4. MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Tradução Felipe José Lindoso. São Paulo: Clacso. 2008. p. 291/292.

5.  Hay golpes en la vida, tan fuertes… Yo no sé!/ Golpes como del odio de Dios; como si ante ellos,/ la resaca de todo lo sufrido/ se empozara en el alma… Yo no sé./ Son pocos; pero son… Abren zanjas oscuras/ en el rostro más fiero y en el lomo más fuerte./ Serán talvez los potros de bárbaros atilas;/ o los heraldos negros que nos manda la Muerte./ Son las caídas hondas de los Cristos del alma,/ de alguna fe adorable que el Destino blasfema./ Esos golpes sangrientos son las crepitaciones/ de algún pan que en la puerta del horno se nos quema./ Y el hombre… Pobre… pobre! Vuelve los ojos, como/ cuando por sobre el hombro nos llama una palmada;/ vuelve los ojos locos, y todo lo vivido/ se empoza, como un charco de culpa, en la mirada./ Hay golpes em la vida, tan fuertes… Yo no sé! (N.A.)

 6.  MARIÁTEGUI, José Carlos. Obra citada, p. 299.

7. A importância do indigenismo, no Peru, surge somente com as obras de Gonzalo Prada, estabelecendo, entre 1900 e 1930, o início da grande  polémica entre hispanismo e indigenismo que dominariam todo o pensamento social do Peru durante o século XX e marcam os conflitos culturais até os dias de hoje no país, cujas negociações têm buscado, sem sucesso, a igualdade cultural sem desconsiderar as diferenças.

8. MANRIQUE, Miguel. El hombre vallejiano. Cuadernos Hispanoamericanos, Madrid. v. I. n. 456/457, junio/julio 1988, p.531.

 9. MARIÁTEGUI, José Carlos. Op. cit., p. 291.

 10. FERRARI, Américo. Op. cit., p. 12.

 11. TORRE, Guillermo de. Tres conceptos de la literatura Hispanoamericana. Buenos Aires, Losada, 1963, p., 164.

 12. MARIÁTEGUI, José Carlos. Op. cit., p.296.

 13. Siento a Dios que camina/ tan  en mí, con la tarde y con el mar./  Con  él nos vamos juntos. Anochece./ con él anochecemos. Orfandad…/ Pero yo siento a Dios. Y hasta parece/ que él me dicta no sé qué buen color./ Como un hospitalario, es bueno y triste;/ mustia un dulce desdén de enamorado:/ debe dolerle mucho el corazón./ Oh, Dios mío, recién a ti me llego,/ hoy que amo tanto en esta tarde; hoy/  que en la falsa balanza de unos  senos,/ miro y lloro una frágil Creación./ Y tú, cuál llorarás… tú, enamorado/ de tanto enorme seno girador…/  Yo te consagro Dios, porque amas tanto;/ porque jamás sonríes; porque siempre/  debe dolerte mucho el corazón. (N.A.)

 14. José Santos Chocano, destacado poeta modernista peruano nascido em 1875, em Lima, também conhecido pelo pseudônimo de O Cantor da América. Foi uma estranha figura literária.  Polêmico e aventureiro, foi secretário de Pancho Villa, escapou por pouco do fuzilamento na Guatemala, em 1920, e matou em Lima, num duelo o jovem escritor Edwim Elmore. Morreu em 1934 em Santiago, assassinado por  um demente que acreditava ter Chocano  o mapa de um tesouro.

 15. NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. São Paulo: Difel, 1979, p.285.

 16. FERRARI, Américo. Op. cit., p.39.

 17. VALLEJO, César. Antologia poética. Tradução, seleção, prólogo e notas de José Bento. Lisboa: Relógio D’Água, 1992, p.19/20.

 18. ALEGRÍA, Ciro. El César Vallejo que yo conocí. Cuadernos Hispanoamericanos. México, ano III, vol. XVIII, n. 6, nov/dez 1944.

 19. VALLEJO, César. Op. cit., p 18.

 20. Todos mis huesos son ajenos/ yo talvez los robé!/ Yo vine a darme lo que acaso estuvo/ asignado para otro;/ y pienso que, si no hubiera nacido,/ otro pobre tomara este café!/ Yo soy un mal ladrón… A dónde iré!/ Y en esta hora fría, en que la tierra/ trasciende a polvo humano y es tan triste,/ quisiera yo tocar todas las puertas,/ y suplicar a no sé quién, perdón,/ y hacerle pedacitos de pan fresco/ aquí, en el horno de mi corazón…! (Tradução e nota do autor)

 21. ¡Amado sea aquel que tiene chinches,/   el que lleva zapato roto bajo la lluvia,/el que vela el cadáver de un pan con dos cerillas,/el que se coge un dedo en una puerta,/ el que no tiene cumpleaños,/ el que perdió su sombra en un incendio,/el animal, el que parece un loro, el que parece un hombre, el pobre rico,/ el puro miserable, el pobre pobre!  (Tradução e nota do autor)

 22. De todo esto yo soy el único que parte./ De este banco me voy, de mis calzones, de mi gran situación, de mis acciones,/ de mi número hendido parte a parte,/ de todo esto yo soy el único que parte./De los Campos Elíseos al dar vuelta/ la extraña callejuela de la luna,/ mi defunción se va, parte de mi cuna,/ y, rodeada de gente, sola, suelta,/ mi semejanza humana dase vuelta/ y despacha sus sombras una a una./ Y me alejo de todo, porque todo/ se queda para hacer la coartada:/ mi zapato, su ojal, también su lodo/ y hasta el doblez del codo/ de mi propia camisa abotonada.(Tradução e nota do autor)

 23. Me moriré en París con aguacero,/ un día del cual tengo ya el recuerdo./ Me moriré en París —y no me corro— / tal vez un jueves, como es hoy, de otoño.(Tradução e nota  do autor)

 24. NERUDA, Pablo. Para nascer nasci. São Paulo: Difel, 1979, p.66.

 25.  Este texto foi escrito quando Cesar Vallejo morreu e posteriormente publicado, em Santiago do Chile, pela revista Aurora, em 1° de agosto de 1938.

Nilson Monteiro, novo e ilustre correntista

A estréia bancária de Nilson Monteiro

O Banco da Poesia recebe mais um correntista ilustre, que demorou a chegar mas, com certeza, estará sempre por aqui a enriquecer sua conta poética. Orgulho-me por tê-lo como amigo e ter participado de sua formação profissional, como jornalista, no tempo em que ele, um jovem entusiasmado pela área, mostrava o seu talento numa experiência inovadora, o Novo Jornal, por mim editado em Londrina.

Nilson Monteiro nasceu em Presidente Bernardes, no interior de São Paulo, Aportou  em Curitiba ainda aos 10 anos de idade, por força da profissão do pai, que era representante comercial. Um ano e meio depois, por volta de 1964, mudou-se com a família para Londrina, onde se estabeleceu e pôde desenvolver seus estudos, dividindo-se entre os cursos de Letras e Literatura Francesa e Comunicações, na Universidade Estadual de Londrina .

O grande estímulo para ingressar na profissão veio através do jornalista e escritor Domingos Pellegrini, que o levou para o Diário de Londrina, de Edson Maschio, onde, ainda adolescente, foi responsável pela coluna “No Mundo Estudantil”.

Sempre pelas mãos de Pellegrini deu o passo seguinte, que o conduziu à redação do semanário Novo Jornal, ao lado de Marcelo Oikawa, Roldão Arruda e Carlos Eduardo Lourenço Jorge, no início da década de 1970.

O convite para ingressar na Folha de Londrina surgiu na sequência, por intermédio de Walmor Macarini, em 1973. Lá permaneceu por cerca de cinco anos, passando por diversas editorias, com ênfase para a de Cultura. Simultaneamente, desenvolvia trabalhos em rádio e televisão e fazia incursões no terreno da literatura, escrevendo contos e poemas. Passou também por agências de publicidade e ajudou a fundar a Cooperativa de Jornalistas do Paraná, que produzia o jornal Paraná Repórter.

Ainda em meados de 1970 fez parte da redação do lendário Panorama, uma experiência ousada capitaneada pelo empresário e ex-governador Paulo Pimentel, que teve vida breve, porém marcou  história no jornalismo paranaense. Após seu fechamento, Nilson foi para São Paulo, trabalhar no jornal Movimento, o principal porta-voz da esquerda no país à época da ditadura militar. Voltou depois para a Folha de Londrina, onde atuou como repórter especial e editor do Caderno de Cultura, angariando vários prêmios por reportagens que publicou.

Em 1986 transferiu-se para o jornal O Estado de São Paulo, depois para a Gazeta Mercantil, onde editou o Caderno Regional do Paraná e, finalmente, para a revista Isto É.

Nesse meio tempo continuou produzindo poemas e contos. O livro de poemas “Simples” foi editado em 1984. Depois vieram “Curitiba Vista por um Pé Vermelho”, editado pela Fundação Cultural de Curitiba, “Ferroeste, um novo Rumo para o Paraná”, “Itaipu, a Luz”, e, finalmente, “Madeira de Lei”, que narra a trajetória do empresário Miguel Zattar, um pioneiro na área da silvicultura, na condução das Indústrias João José Zattar S/A.

Atualmente lotado no gabinete do governador Beto Richa, Nilson fez assessoria de imprensa no Banco Regional de Desenvolvimento Econômico (BDRE), na Companhia de Habitação do Paraná – Cohapar – e na Associação Comercial do Paraná – ACP. Também assessorou o ex-governador José Richa em sua última campanha para o Senado, na década de 1990.

Seu trabalho recebe, neste momento de sua vida, reconhecimento público, ao ser diplomado como Cidadão Honorário do Paraná, título que receberá no próximo dia 20 de março.

Bem vindo, Nilson poeta, ao nosso Banco. (Cleto de Assis, con informações da Assessoria de Impnresa da Assembléia Legislativa do Paraná)

Impressões de viagem

(crônica a Neruda)

 
Onde andas, poeta, como fantasma
grunhindo as tábuas do convés?

Onde passeias, leve, pipa entre as cores
dos varais e das casas penduradas nas escarpas?

Onde choras, líquido, em meio
às ondas largas e geladas do Pacífico?

Onde, plantas, mágico, teu coração
nas pedras, gelatinas de ostras endurecidas?

Onde, esfarinhas, versejador, tua alma
em estrelas, uvas bêbadas, cafés franceses?

Onde, fincas, amante, as âncoras
na vida, feira livre, de teu povo?

Onde, espalhas, boiadeiro, as crinas
de teus cavalos, relinchos selvagens?

Onde, anjo, sem alas, sem religião,
feito de renda branca da cordilheira,
tateias a pele desses muros?

Aqui, poeta,
aqui entre livros, mapas, bússolas, bananeiras
cerâmicas
e escadas,
as pessoas te chamam neste inferno de paixões
de anjo

Nesta cidade feita de ruelas,
peles, ondas, vinho, fumaça,
bodegas, teias, dores,
empanadas, penhascos que arranham o céu,
choclo e palta nos beiços dos pratos,
pisco e pinga nos copos,
funiculares ensandecidos

Descubro, num átimo, que amo
o atômico explodir da vida,
pedaços de gente esparramados
ao pé do cerro
sortidos em meio ao sebo do porto,
sentimentos espalhados sem cercas

Descubro que amo
cada arrulho de seus colegiais,
meias de lã, gravatas inglesas
achadas no passado,
maritacas de azul
gritando alegrias e mirando futuros
nas rachaduras da arquitetura

Descubro que amo
cada lágrima que desce
nas fendas molhadas da montanha,
vidro, cristal safira que fura os olhos
para embrulhar-se nos lençóis do Pacífico

Descubro que amo
cada suspiro de teu ar,
o cheiro pastoso de teu mercado,
cada célula de teus mariscos,
cada ensaio de voo
de teus copos suados

Descubro que amo
cada farelo de tuas pedras
cada dor de seu paraíso
cada ritmo de teus versos
cada sentimento de entranhas,
das putas e das guitarras,
de ventanas, de pinturas
em paredes sem casca

Onde, poeta, é permitido sonhar
com este prelúdio salgado
desta sinfonia doce que
deram o nome de Neruda?

Aqui,
neste chão agarrado em Valparaíso,
madeira de porão do mar
tua casa de degraus
de mastros eriçados,
La Sebastiana.
____________

Ilustrações: C. de A.

Octavio Paz: de poetas e poesia

Octavio Paz, ensaísta e poeta mexicano, nasceu na Cidade do México em 1914. Em seu país, é o poeta mais considerado e controvertido da segunda metade do século XX.

Foi agraciado, entre outros, com os prêmios Cervantes, em 1979, Alexis de Tocqueville, em 1989, e com o Nobel de Literatura, em 1990.

Passou a infância nos Estados Unidos, em companhia da família. Ao retornar, estudou Direito na Universidade Nacional Autônoma do México. Fez também especialização em Literatura. Morou na Espanha, onde conviveu com diversos intelectuais. Viveu também em Paris, no Japão e na Índia.

Em 1945, ingressou no serviço diplomático mexicano. Ao residir em Paris, testemunhou e viveu o movimento surrealista, sofrendo grande influência de André Breton, de quem foi amigo. Em sua criação, experimentou a escrita automática, sugerida por Breton, e que consiste em transmitir diretamente — sem refletir ou concentrar-se no que se quer dizer — as palavras que, sem tema preconcebido, vêm à mente de forma imediata. Essas frases procederiam diretamente do inconsciente e não teriam relação lógica entre si. Breton considerava a escrita automática como “texto puro”, ou poema surgido do inconsciente. Por isso, recusava o exercício da crítica sobre a que produzia com esse método.

Paz publicou mais de vinte livros de poesia e incontáveis ensaios de literatura, arte, cultura e política, desde Luna Silvestre, seu primeiro livro, de 1933. Muitos de seus livros foram traduzidos ao português. Aliás, ele era um grande admirador do idioma luso e chegou a traduzir, em uma Antologia, publicada em 1984, poemas de Fernando Pessoa, a quem chamava o “desconhecido de si mesmo”.

Em 1976 fundou a revista Plural e anos mais tarde a revista Vuelta. Publicou mais de vinte livros de poesia e inumeráveis ensaios de literatura, arte, cultura e política.

Foi um dos intelectuais mais importantes do México e um dos maiores poetas do mundo. Juntamente com Pablo Neruda e César Vallejo, Octavio Paz está no grupo dos grandes poetas latino-americanos cuja obra teve um forte impacto internacional. Suas antologias de poemas, em espanhol e em inglês, foram publicadas em 1988.

Em torno de sua obra encontram-se influências diversas como do marxismo, surrealismo, existencialismo, Budismo, Hinduísmo e do modernismo francês e anglo-americano. Muitos dos poemas de Paz são baseados em pinturas de Joan Miró, Marcel Duchamp, Antonio Tapies, Robert Rauschenberg e Roberto Matta. Em Salamandra, de 1962, Octavio Paz usa inovações advindas do cubismo francês. Sua escrita frequentemente lida com oposições, paixão e razão, sociedade e indivíduo, trabalho e sentido: “A imagem poética é o encontro de realidades opostas”, como ele mesmo escreveu em A Dupla Chama.

Epitafio para un poeta

Quiso cantar, cantar
para olvidar
su vida verdadera de mentiras
y recordar
su mentirosa vida de verdades.

Epitáfio para um poeta

Quis cantar, cantar
para esquecer
sua vida verdadeira de mentiras
e recordar
sua mentirosa vida de verdades.

Tradução de Cleto de Assis

La poesía

¿Por qué tocas mi pecho nuevamente?
Llegas, silenciosa, secreta, armada,
tal los guerreros a una ciudad dormida;
quemas mi lengua con tus labios, pulpo,
y despiertas los furores, los goces,
y esta angustia sin fin
que enciende lo que toca
y engendra en cada cosa
una avidez sombría.

El mundo cede y se desploma
como metal al fuego.
Entre mis ruinas me levanto,
solo, desnudo, despojado,
sobre la roca inmensa del silencio,
como un solitario combatiente
contra invisibles huestes.

Verdad abrasadora,
¿a qué me empujas?
No quiero tu verdad,
tu insensata pregunta.
¿A qué esta lucha estéril?
No es el hombre criatura capaz de contenerte,
avidez que sólo en la sed se sacia,
llama que todos los labios consume,
espíritu que no vive en ninguna forma
mas hace arder todas las formas
con un secreto fuego indestructible.

Pero insistes, lágrima escarnecida,
y alzas en mí tu imperio desolado.

Subes desde lo más hondo de mí,
desde el centro innombrable de mi ser,
ejército, marea.
Creces, tu sed me ahoga,
expulsando, tiránica,
aquello que no cede
a tu espada frenética.
Ya sólo tú me habitas,
tú, sin nombre, furiosa sustancia,
avidez subterránea, delirante.

Golpean mi pecho tus fantasmas,
despiertas a mi tacto,
hielas mi frente
y haces proféticos mis ojos.

Percibo el mundo y te toco,
sustancia intocable,
unidad de mi alma y de mi cuerpo,
y contemplo el combate que combato
y mis bodas de tierra.

Nublan mis ojos imágenes opuestas,
y a las mismas imágenes
otras, más profundas, las niegan,
ardiente balbuceo,
aguas que anega un agua más oculta y densa.
En su húmeda tiniebla vida y muerte,
quietud y movimiento, son lo mismo.

Insiste, vencedora,
porque tan sólo existo porque existes,
y mi boca y mi lengua se formaron
para decir tan sólo tu existencia
y tus secretas sílabas, palabra
impalpable y despótica,
sustancia de mi alma.

Eres tan sólo un sueño,
pero en ti sueña el mundo
y su mudez habla con tus palabras.
Rozo al tocar tu pecho
la eléctrica frontera de la vida,
la tiniebla de sangre
donde pacta la boca cruel y enamorada,
ávida aún de destruir lo que ama
y revivir lo que destruye,
con el mundo, impasible
y siempre idéntico a sí mismo,
porque no se detiene en ninguna forma
ni se demora sobre lo que engendra.

Llévame, solitaria,
llévame entre los sueños,
llévame, madre mía,
despiértame del todo,
hazme soñar tu sueño,
unta mis ojos con aceite,
para que al conocerte me conozca.

A poesia

Por que tocas meu peito novamente?
Chegas silenciosa, secreta, armada,
como os guerreiros a uma cidade adormecida;
queimas minha língua com teus lábios, polvo,
e despertas os furores, os gozos,
e esta angústia sem fim
que acende o que toca
e engendra em cada coisa
uma avidez sombria.

O mundo cede e se desmorona
como metal no fogo.
Entre minhas ruínas me levanto,
só, desnudo, despojado,
sobre a rocha imensa do silêncio,
como um solitário combatente
contra invisíveis hostes.

Verdade abrasadora,
para onde me impeles?
Não quero tua verdade,
tua insensata pergunta.
Aonde vai esta luta estéril?
Não é o homem criatura capaz de conter-te,
avidez que só na sede se sacia,
chama que todos os lábios consome,
espírito que não vive em forma alguma
mas faz arder todas as formas
com um secreto fogo indestrutível.

Mas insistes, lágrima escarnecida,
e alças em mim teu império desolado.

Sobes do mais profundo de mim,
desde o centro inominável de meu ser,
exército, maré.
Cresces, tua sede me afoga,
expulsando, tirânica,
aquilo que não cede
a tua espada frenética.
Já somente tu me habitas,
tu, sem nome, furiosa substância,
avidez subterrânea, delirante.

Golpeiam meu peito teus fantasmas,
despertas com meu tato,
gelas minha fronte
e fazes proféticos meus olhos.

Percebo o mundo e te toco,
substância intocável,
unidade de minha alma e de meu corpo,
e contemplo o combate que combato
e minhas bodas de terra.

Nuveiam meus olhos imagens opostas,
e às mesmas imagens
outras, mais profundas, as negam,
ardente balbucio,
águas que afogam uma água mais oculta e densa.
Em sua úmida treva vida e morte,
quietude e movimento, são o mesmo.

Insiste, vencedora,
porque tão somente existo porque existes,
e minha boca e minha língua se formaram
para dizer tão somente tua existência
e tuas secretas sílabas, palavra
impalpável e despótica,
substância de minha alma.

És tão somente um sonho,
mas em ti sonha o mundo
e sua mudez fala com tuas palavras.
Roço ao tocar teu peito
a elétrica fronteira da vida,
a treva de sangue
onde pactua a boca cruel e enamorada,
ávida ainda de destruir o que ama
e reviver o que destrói,
com o mundo, impassível
e sempre idêntico a si mesmo,
porque não se detém de forma alguma
nem se demora sobre o que engendra.

Leva-me, solitária,
leva-me entre os sonhos,
leva-me, mãe minha,
me desperta do todo,
faz-me sonhar teu sonho,
unta meus olhos com óleo,
para que, ao conhecer-te, eu possa conhecer-me.

Tradução de Cleto de Assis