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Mais ovos: desta vez enviados pelo “coelhinho” João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Mello Neto (Recife, 9 de janeiro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1999) foi um poeta e diplomata  brasileiro. Sua obra poética, caracterizada pelo rigor estético, com poemas avessos a confessionalismos e marcados pelo uso de rimas toantes, inaugurou uma nova forma de fazer poesia no Brasil.

Irmão do historiador Evaldo Cabral de Melo e primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre, João Cabral foi amigo do pintor Joan Miró e do poeta Joan Brossa. Membro da Academia Pernambucana de Letras e da Academia Brasileira de Letras, foi agraciado com vários prêmios literários. Ele não compareceu a nenhuma reunião da Academia Pernambucana de Letras como acadêmico, nem mesmo a sua posse.

Foi eleito membro da ABL em 15 de agosto de 1968 e empossado em 6 de maio de 1969. Quando morreu, em 1999, especulava-se que era um forte candidato ao Prêmio Nobel de Literatura.

Já com 18 anos, começa a frequentar a roda literária do Café Lafayette, que se reúne em volta de Willy Lewin e do pintor Vicente do Rego Monteiro, que regressara de Paris por causa da guerra.

Em 1940 viaja com a família para o Rio de Janeiro, onde conhece Murilo Mendes. Esse o apresenta a Carlos Drummond de Andrade e ao círculo de intelectuais que se reunia no consultório de Jorge de Lima. No ano seguinte, participa do Congresso de Poesia do Recife, ocasião em que apresenta suas Considerações sobre o poeta dormindo.

É removido, em 1947, para o Consulado Geral em Barcelona, como vice-cônsul. Adquire uma pequena tipografia artesanal, com a qual publica livros de poetas brasileiros e espanhóis. Nessa prensa manual imprime Psicologia da composição. Nos dois anos seguintes ganha dois filhos, Inês e Luiz. Residindo na Catalunha, escreve seu ensaio sobre Joan Miró, cujo estúdio frequüenta. Miró faz publicar o ensaio com texto em português, com suas primeiras gravuras em madeira.

Quando o leitor é confrontado com a poesia de Cabral percebe-se, a princípio, de um certo número de algumas dualidades antitéticas, por vezes obsessivas. Entre espaço  e tempo, entre o dentro e o fora, entre o maciço e o não-maciço… Entre o masculino  e o feminino, entre o Nordeste desértico e a Andaluzia  fértil, ou entre a caatinga desértica e o úmido Pernambuco. É uma poesia  que causa algum estranhamento porque não é emotiva, mas sim cerebral.  Ele não recorre ao pathos (paixão) para criar uma atmosfera poética, mas a uma construção elaborada e pensada da linguagem e do dizer da sua poesia.

Estranhamente, João Cabral escreveu um poema sobre a Aspirina, que tomava regularmente, chamando-a de Sol, de Luz… De fato, desde sua juventude João Cabral tomava de três a dez aspirinas por dia. Certa vez, em entrevista à TV Cultura, ele contava que boa parte da inspiração (inspiração sempre cerebral) provinha da aspirina, que a aspirina o salvava da nulidade.

Obras

  • Pedra do Sono (1942)
  • Os Três Mal-Amados (1943)
  • O Engenheiro (1945)
  • Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947)
  • O Cão sem Plumas (1950)
  • O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife (1954)
  • Dois Parlamentos (1960)
  • Quaderna (1960)
  • A Educação pela Pedra (1966)
  • Morte e Vida Severina (1966)
  • Museu de Tudo (1975)
  • A Escola das Facas (1980)
  • Auto do Frade (1984)
  • Agrestes (1985)
  • Crime na Calle Relator (1987)
  • Primeiros Poemas (1990)
  • Sevilha Andando (1990)

Prêmios

  • Prêmio Camões — 1990
  • Neustadt International Prize for Literature — 1992
  • Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana — 1994

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Elogios ao Ovo

I

Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.

Sem possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.

No entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:

que seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.

II

O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.

E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas

cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.

No entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.

III

A presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.

O que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.

A reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.

É a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.

IV

Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.

Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.

O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:

procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

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Ilustração: C. de A.

Octavio Paz: de poetas e poesia

Octavio Paz, ensaísta e poeta mexicano, nasceu na Cidade do México em 1914. Em seu país, é o poeta mais considerado e controvertido da segunda metade do século XX.

Foi agraciado, entre outros, com os prêmios Cervantes, em 1979, Alexis de Tocqueville, em 1989, e com o Nobel de Literatura, em 1990.

Passou a infância nos Estados Unidos, em companhia da família. Ao retornar, estudou Direito na Universidade Nacional Autônoma do México. Fez também especialização em Literatura. Morou na Espanha, onde conviveu com diversos intelectuais. Viveu também em Paris, no Japão e na Índia.

Em 1945, ingressou no serviço diplomático mexicano. Ao residir em Paris, testemunhou e viveu o movimento surrealista, sofrendo grande influência de André Breton, de quem foi amigo. Em sua criação, experimentou a escrita automática, sugerida por Breton, e que consiste em transmitir diretamente — sem refletir ou concentrar-se no que se quer dizer — as palavras que, sem tema preconcebido, vêm à mente de forma imediata. Essas frases procederiam diretamente do inconsciente e não teriam relação lógica entre si. Breton considerava a escrita automática como “texto puro”, ou poema surgido do inconsciente. Por isso, recusava o exercício da crítica sobre a que produzia com esse método.

Paz publicou mais de vinte livros de poesia e incontáveis ensaios de literatura, arte, cultura e política, desde Luna Silvestre, seu primeiro livro, de 1933. Muitos de seus livros foram traduzidos ao português. Aliás, ele era um grande admirador do idioma luso e chegou a traduzir, em uma Antologia, publicada em 1984, poemas de Fernando Pessoa, a quem chamava o “desconhecido de si mesmo”.

Em 1976 fundou a revista Plural e anos mais tarde a revista Vuelta. Publicou mais de vinte livros de poesia e inumeráveis ensaios de literatura, arte, cultura e política.

Foi um dos intelectuais mais importantes do México e um dos maiores poetas do mundo. Juntamente com Pablo Neruda e César Vallejo, Octavio Paz está no grupo dos grandes poetas latino-americanos cuja obra teve um forte impacto internacional. Suas antologias de poemas, em espanhol e em inglês, foram publicadas em 1988.

Em torno de sua obra encontram-se influências diversas como do marxismo, surrealismo, existencialismo, Budismo, Hinduísmo e do modernismo francês e anglo-americano. Muitos dos poemas de Paz são baseados em pinturas de Joan Miró, Marcel Duchamp, Antonio Tapies, Robert Rauschenberg e Roberto Matta. Em Salamandra, de 1962, Octavio Paz usa inovações advindas do cubismo francês. Sua escrita frequentemente lida com oposições, paixão e razão, sociedade e indivíduo, trabalho e sentido: “A imagem poética é o encontro de realidades opostas”, como ele mesmo escreveu em A Dupla Chama.

Epitafio para un poeta

Quiso cantar, cantar
para olvidar
su vida verdadera de mentiras
y recordar
su mentirosa vida de verdades.

Epitáfio para um poeta

Quis cantar, cantar
para esquecer
sua vida verdadeira de mentiras
e recordar
sua mentirosa vida de verdades.

Tradução de Cleto de Assis

La poesía

¿Por qué tocas mi pecho nuevamente?
Llegas, silenciosa, secreta, armada,
tal los guerreros a una ciudad dormida;
quemas mi lengua con tus labios, pulpo,
y despiertas los furores, los goces,
y esta angustia sin fin
que enciende lo que toca
y engendra en cada cosa
una avidez sombría.

El mundo cede y se desploma
como metal al fuego.
Entre mis ruinas me levanto,
solo, desnudo, despojado,
sobre la roca inmensa del silencio,
como un solitario combatiente
contra invisibles huestes.

Verdad abrasadora,
¿a qué me empujas?
No quiero tu verdad,
tu insensata pregunta.
¿A qué esta lucha estéril?
No es el hombre criatura capaz de contenerte,
avidez que sólo en la sed se sacia,
llama que todos los labios consume,
espíritu que no vive en ninguna forma
mas hace arder todas las formas
con un secreto fuego indestructible.

Pero insistes, lágrima escarnecida,
y alzas en mí tu imperio desolado.

Subes desde lo más hondo de mí,
desde el centro innombrable de mi ser,
ejército, marea.
Creces, tu sed me ahoga,
expulsando, tiránica,
aquello que no cede
a tu espada frenética.
Ya sólo tú me habitas,
tú, sin nombre, furiosa sustancia,
avidez subterránea, delirante.

Golpean mi pecho tus fantasmas,
despiertas a mi tacto,
hielas mi frente
y haces proféticos mis ojos.

Percibo el mundo y te toco,
sustancia intocable,
unidad de mi alma y de mi cuerpo,
y contemplo el combate que combato
y mis bodas de tierra.

Nublan mis ojos imágenes opuestas,
y a las mismas imágenes
otras, más profundas, las niegan,
ardiente balbuceo,
aguas que anega un agua más oculta y densa.
En su húmeda tiniebla vida y muerte,
quietud y movimiento, son lo mismo.

Insiste, vencedora,
porque tan sólo existo porque existes,
y mi boca y mi lengua se formaron
para decir tan sólo tu existencia
y tus secretas sílabas, palabra
impalpable y despótica,
sustancia de mi alma.

Eres tan sólo un sueño,
pero en ti sueña el mundo
y su mudez habla con tus palabras.
Rozo al tocar tu pecho
la eléctrica frontera de la vida,
la tiniebla de sangre
donde pacta la boca cruel y enamorada,
ávida aún de destruir lo que ama
y revivir lo que destruye,
con el mundo, impasible
y siempre idéntico a sí mismo,
porque no se detiene en ninguna forma
ni se demora sobre lo que engendra.

Llévame, solitaria,
llévame entre los sueños,
llévame, madre mía,
despiértame del todo,
hazme soñar tu sueño,
unta mis ojos con aceite,
para que al conocerte me conozca.

A poesia

Por que tocas meu peito novamente?
Chegas silenciosa, secreta, armada,
como os guerreiros a uma cidade adormecida;
queimas minha língua com teus lábios, polvo,
e despertas os furores, os gozos,
e esta angústia sem fim
que acende o que toca
e engendra em cada coisa
uma avidez sombria.

O mundo cede e se desmorona
como metal no fogo.
Entre minhas ruínas me levanto,
só, desnudo, despojado,
sobre a rocha imensa do silêncio,
como um solitário combatente
contra invisíveis hostes.

Verdade abrasadora,
para onde me impeles?
Não quero tua verdade,
tua insensata pergunta.
Aonde vai esta luta estéril?
Não é o homem criatura capaz de conter-te,
avidez que só na sede se sacia,
chama que todos os lábios consome,
espírito que não vive em forma alguma
mas faz arder todas as formas
com um secreto fogo indestrutível.

Mas insistes, lágrima escarnecida,
e alças em mim teu império desolado.

Sobes do mais profundo de mim,
desde o centro inominável de meu ser,
exército, maré.
Cresces, tua sede me afoga,
expulsando, tirânica,
aquilo que não cede
a tua espada frenética.
Já somente tu me habitas,
tu, sem nome, furiosa substância,
avidez subterrânea, delirante.

Golpeiam meu peito teus fantasmas,
despertas com meu tato,
gelas minha fronte
e fazes proféticos meus olhos.

Percebo o mundo e te toco,
substância intocável,
unidade de minha alma e de meu corpo,
e contemplo o combate que combato
e minhas bodas de terra.

Nuveiam meus olhos imagens opostas,
e às mesmas imagens
outras, mais profundas, as negam,
ardente balbucio,
águas que afogam uma água mais oculta e densa.
Em sua úmida treva vida e morte,
quietude e movimento, são o mesmo.

Insiste, vencedora,
porque tão somente existo porque existes,
e minha boca e minha língua se formaram
para dizer tão somente tua existência
e tuas secretas sílabas, palavra
impalpável e despótica,
substância de minha alma.

És tão somente um sonho,
mas em ti sonha o mundo
e sua mudez fala com tuas palavras.
Roço ao tocar teu peito
a elétrica fronteira da vida,
a treva de sangue
onde pactua a boca cruel e enamorada,
ávida ainda de destruir o que ama
e reviver o que destrói,
com o mundo, impassível
e sempre idêntico a si mesmo,
porque não se detém de forma alguma
nem se demora sobre o que engendra.

Leva-me, solitária,
leva-me entre os sonhos,
leva-me, mãe minha,
me desperta do todo,
faz-me sonhar teu sonho,
unta meus olhos com óleo,
para que, ao conhecer-te, eu possa conhecer-me.

Tradução de Cleto de Assis