Arquivo do mês: março 2009

Ronda Cósmica

rondacosmica

Projeto meu pensamento em linha reta até a cordilheira
(e sei que esta reta, em razão da curvatura da Terra,
se recurva suave, passando pelas altas árvores da floresta,
após um curso exato sobre o paralelo de Capricórnio,
pelo pantanal e também refletindo-se nas águas do Madeira, do Purus, do Juruá
e do Solimões, nomes do grande rio
antes de se encontrarem com o Negro.

Subo as faldas da montanha da montanha ao Oriente
e, em seu ponto culminante, procuro outro claro pensamento,
em cujas janelas de vidro castanho quero ver
a luz provinda de um sol interior.

E embora a reta seja necessariamente curva,
em razão da curvatura do próprio Universo,
ainda é a distância mais curta entre dois pontos:

eis que faço dela um ponto único
concentrado em dois corpos
que podem ocupar um mesmo lugar no espaço e no tempo.
Faço do ponto um momento absoluto de amor
em que teu corpo se funde ao meu.
E navegamos por todas as galáxias
na viagem cósmica de alguns eternos segundos.

Não há tempo, não há hora.
No repouso, minhas mãos
continuam a viagem por teu corpo,
explorando cordilheiras e vales,
enquanto murmúrios de acalanto
chegam aos meus ouvidos,
conduzidos pelos ventos alísios que nascem de altas pressões subtropicais
e de baixas pressões equatoriais.

Tu jazes, quieta, sob o encanto da viagem.
E teu corpo abriga, em gotas de suor,
milhares de estrelas novas,
que, aos poucos, vão se transformando em supernovas,
explodindo na umidade de minhas mãos.

Tu jazes, letárgica,
enfeitiçada pela surpresa sempre renovada do abraço repetido.
Pouco a pouco, teus olhos voltam a se abrir
e é ao redor deles que eu gravito
adivinhando os mistérios da vida e da morte.

Refaz-se a calma da chegada
dessa viagem sem rumo conhecido
qual cometa errante a cumprir derrota divinamente imposta.

Para Teresa

Cleto de Assis
Curitiba
1980

A Paixão, segundo Manoel de Andrade

Lembro-me de meus tempos de catecismo. Mais ou menos aos oito anos de idade. Era tempo de ver a vida do lado de fora da família, onde certas conversas ainda eram reservadas a adultos. Era tempo de descoberta da leitura, ou a arte de associar letrinhas a coisas e sensações conhecidas e desconhecidas. Foi tempo da descoberta do cinema, lugar onde temas maiores que os familiares eram colocados ante os olhos infantis. E havia o amor e havia a paixão. Amor era meta permanente, dominante; paixão, coisa secreta, quase fulminante. Amor era a chama a ser conservada tranquila, apenas calorosa, para durar até a eternidade. Paixão era chama sem controle, incendiária, a queimar rapidamente toda a lenha. Por amor se vivia; por paixão se morria.

E eis que surge, frente ao menino, a Paixão de Cristo. Assim mesmo, com inicial maiúscula. E quem era – perguntava a criança curiosa – o objeto de tamanha, arrepiante, dolorosa paixão? No drama apresentado, não havia amor ou paixão entre um homem e uma mulher. Tratava-se – diziam os mais sábios – de um dos mistérios eclesiásticos, um dos tantos que a razão humana não alcançava explicar e deveria ser aceito pela fé, outro dos tantos mistérios. Quase a mesma coisa que o menino ouvia em família: isso você vai entender quando crescer. Mas esse mistério ficou entalado na cabeça infantil que, se presume, cresceu e não entendeu o mistério da Paixão. A explicação circunloquial poderia ter sido mais simples, mais construtiva.

Independentemente do que sabemos ou não sabemos sobre tais mistérios (passei a contentar-me e extasiar-me com o grande e belo e infindo mistério da Vida), a celebração da Semana Santa, entre os cristãos, que culmina no domingo de Páscoa, assinala também momentos de reflexão sobre a crueldade que pessoas podem infligir a outras pessoas, muitas vezes porque apenas as separam pensamentos e idéias diferentes. No filme de Mel Gibson sobre o sofrimento de Cristo, a crueldade é mostrada em detalhes, quase num assomo de sadomasoquismo. Mas aquelas cenas não deixam de ser simbólicas, num momento de nossa sociedade em que a violência do homem contra o homem, talvez pela dinâmica instantânea da comunicação, está cada vez mais presente em nossas vidas.

Assim também o faz, por meio da poesia, Manoel de Andrade, no depósito feito no Banco da Poesia, para publicação na chamada Semana Santa. Somos todos gratos a você, Manoel, pela beleza de seu poema.

ECCE HOMO

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Levam ao Sinédrio o humilde Nazareno
para que se julgue o amor e a inocência
e  diante  da  judaica  prepotência
o Mestre se mantém doce e sereno.

Por ser blasfemador é réu de morte
diz  Caifás com desprezo ao acusado
e  depois  de  cuspido e  maltratado
aos romanos entregam a  sua  sorte.

No pátio do palácio a massa se aglutina
e um prenúncio sinistro percorre a multidão
traído e abandonado à própria provação
aguarda  o  prisioneiro  a  sua  sina.

– É um visionário, um sonhador  somente,
e me comove sua mansidão, sua pobreza…
diz Pilatos…, convicto  da  certeza
de estar frente a um homem inocente.

Diante da  injustiça  e  do  impasse
transfere  a  Antipas  a  sentença
mas o tetrarca  devolve-lhe a presença
com os espinhos ensangüentando a face.

Coberto com  o  manto  da ironia
e como cetro uma cana  retorcida
nessa  imagem de realeza  escarnecida
trazem novamente o Rabi à pretoria.

Tenta Pilatos um último  artifício
para acalmar a plebe alucinada
e espera que a espádua açoitada
salve  o  Galileu  do sacrifício.

Rasga-lhe  a  carne  o  látego  cruel
e nem um murmúrio de dor ante o flagelo.
Envilecido e ultrajado, invencível e belo
cumpre a Trágica Figura o seu papel.

Mas ainda assim a turba em desatino
exige que a condenação seja mantida
e Pilatos propõe à massa ensandecida
que  delibere  sobre  o  seu  destino.

Diante do pretório e amotinado
o  povo  absolve  Barrabás
e movido pelos asseclas de Caifás
exige o Galileu crucificado.

Ante a sentença e os gritos do estrupício
e entre a verdade e o interesse dos seus atos
lava  as  suas  mãos  Pôncio  Pilatos
e  entrega  o  Cordeiro  ao  sacrifício.

Na mais ingrata e suprema solidão
maltrapilho,  descalço  e  abatido
para o meio da escória é conduzido
sob o escárnio  cruel  da  multidão.

Passos  cambaleantes,  dor,  delírio
toda a ignomínia no símbolo da cruz
o madeiro infame nos ombros de Jesus
e o lancinante caminho do martírio.

Ergue-se o holocausto ao amor crucificado
na  dor  que  esmaga,  na  sede  insaciável
no estóico silêncio, no deboche intolerável
no lento suplício de um Homem sem pecado.

E na agonia do Calvário, rumo à glória,
roga  a  Deus  perdão  para  os  algozes…
Por tanto amor recebe os golpes mais atrozes
e o julgamento mais iníquo da história.

Manoel de Andrade

Curitiba,   26/02/04
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NOTAS

Ecce homo – Eis o homem. Palavras de Pilatos ao apresentar Jesus aos judeus
Ilustração: “Ecce homo”
Georges Rouault (Paris, 1871 – 1958),
Pintura completada entre 1937-41.
Óleo sobre tela colada em madeira, 34 x 24.4 cm
Museu Nacional de Arte Moderna, Paris

Nova conta: Marilda Confortin

Recolhi no site www.palavreiros.org uma definição do poeta baiano Goulart Gomes sobre a sua proposta literária Poetrix, hoje um movimento ao qual aderiram muitos poetas. O poetrix deriva do hai-kai, (também grafado haiku ou haiko), composição poética japonesa, popularizada no Brasil,de certa forma, por Millôr Fernandes, que a utiliza de quando em quando, sempre com seu humor inteligente. No Paraná, pelo três poetas expressivos marcaram suas obras com hai-kais: Helena Kolody, Paulo Leminski e Alice Ruiz .

Explica Goulart Gomes: “Foi Aníbal Beça, um dos maiores pesquisadores brasileiros de Hai-Kai, quem gentilmente me falou: ‘Goulart, pode chamar seus inventivos tercetos do que quiser, menos de Hai-Kais’. E ele estava absolutamente certo. Não podemos dizer que suco de uva
é vinho sem álcool. O Hai-Kai (ou Haiko) é uma milenar arte oriental, que vem aprimorando-se com o passar dos séculos. Mexer na essência das coisas significa criar uma coisa nova, diferente da anterior”.

“Assim, necessariamente, o Hai-Kai deve possuir 17 sílabas, divididas em 3 versos de 5, 7 e 5 sílabas; conter alguma referência à Natureza; referir-se a um evento particular e ater-se ao Presente.”

“O que apresento … – e que também é feito por muitos outros poetas – é o que agora proponho se chame POETRIX (poe, de poesia, poema; trix, de três, terceto), ou seja, a poesia em três versos, o terzetto, originalmente chamado na Itália.”

Com,o exemplo, um poetrix de Goulart:

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Em Curitiba, também temos uma poetrixta. Marilda Confortin adeiru com toda força (e muita sensibilidade) ao movimento e foi signatária do segundo manifesto Poetrix, abaixo reproduzido. Segundo a própria poeta, “esse tipo de terceto me caiu do céu. Despencou de uma nuvem de informação chamada internet, empurrado por um diabinho baiano chamado Goulart Gomes, no momento em que eu não escrevia nem lia mais poesia, exatamente por acreditar que era algo inútil”.

marilda11Estivemos juntos na última sexta-feira, na véspera do lançamentro do livro de Dante Mendonça (ver abaixo), com alguns amigos, numa plantação de abobrinhas  com lambaris fritos e  filé mignon no palito. Brincamos de poetas, falamos do humor rápido de Manuel Maria Barbosa du Bocage e Emilio de Menezes. Ela, sempre preocupada com seu trabalho na Prefeitura Municpal, com o qual colabora signficativamente na divulgação da cultura, princpalmente junto à população escolar, prometeu abrir sua conta no Banco da Poesia. Hoje, no final de domingo, quando cheguei em minha casa, após rever Rio Negro e Mafra (minha terra natal) e comer deliciosos pirogues elaborados por D. Leonarda França (que, além de excelente gourmetrice, é professora de literatura), encontrei um comentário de Marilda Confortin no relato de Manoel de Andrade sobre a revista FORMA. Em razão do carinho com o qual foi composto, reproduzo aqui o recado de Marilda e o seu primeiro depósito em forma de poetrix, com minha intromissão gráfica.

Queridos Manoel e Cleto,
sinto uma baita inveja por não ter participado dessa história. Mas, sinto-me privilegiada por ter a oportunidade de conhecê-los, lê-los, ouvi-los e dividir uma mesa de um bar, um lançamento de livro, um cofre nesse banco de poesias ou uma página virtual.
Permitam-me traduzir essa convivência pacífica entre passado, presente e futuro com um Poetrix de minha autoria (o poetrix é o mais recente estilo/jeito/fenômeno/movimento poético internacional, com milhares de adeptos, com coordenação e oficinas virtuais e encontros presenciais)
.

poetrixaldente1

Grande abraço

Marilda

SEGUNDO MANIFESTO POETRIX

Dos males, o menor!

Toda vanguarda será retaguarda: se não podemos ser eternos, sejamos pós-modernos; se não somos pós-doutores, sejamos pós-autores. Todas as ideologias estão mortas, todos os sujeitos fora de lugar.

Viva o Minimalismo e vamos flanar! O poetrixta desfolha a bandeira: descerrar é melhor que dissertar.

Nada se cria, tudo se copia, concluíram Bakhtin e Chacrinha. Então, vamos hiper, intra e intertextualizar, sejamos dialéticos, digitais e dialógicos. Queremos a inter/ação, queremos o simulacro, a paródia, o pastiche, o duplix, o triplix, o multiplix, o grafitrix, o clonix, o concretrix! Viva a ciberpoesia!

Fazer poetrix não é fatiar uma frase em três partes. Viva a insubordinação gramatical, a desobediência civil! Abaixo as orações coordenadas e subordinadas!

Fora do título não há salvação.

Não mais que trinta sílabas para dizer o máximo.

E viva o canibal! Viva o caeté que comeu sardinha e viva o Cabral!

Vamos privilegiar a inteligência do leitor! Que ele morda, mastigue, engula e faça a digestão. Que se vire! Abaixo os derramamentos da poesia fast-food! Dizer muito, falando pouco. Concisão e coerência. Exploremos os significados polissêmicos das frases, a riqueza semântica
das palavras, valorizemos as metáforas.

Queremos o salto
o susto
a semântica

a leveza
a rapidez
a exatidão
a visibilidade
a multiplicidade
a consistência

Queremos o Século XXI! Vamos acordar o Novo Milênio!

O poetrix é um projétil que se aloja na alma. O poetrix é um vírus em nossa memória discursiva. É a suprasíntese.

Viva Bakhtin, Kristeva, Calvino, Oswald e Drummond!

E viva a Poesia! E viva o Poetrix!

Viva a alegria e viva um planeta chamado Bahia!

Viva eu, viva tu e viva o rabo do tatu!

Maior é Deus.

Bahia, Brasil, 28/07/2002.

Goulart Gomes
Sonia Godoy
Edison Veiga Júnior
Oswaldo Francisco Martins
Marcos Gimenes Salun
Isar Maria Silveira
Angela Bretas
Antonio Carlos Menezes
Marilda Confortin
José Nêumanne Pinto
Aila Magalhães
Jussara Midlej

Céus e Infernos de Curitiba, por Dante

Dante Mendonça lançou ontem (28/03/2009) seu livro Curitiba – Melhores defeitos, piores qualidades, com o selo da Bernúncia Editora, de Florianópolis. O cenário escolhido foi o restaurante do Passeio Público, que já foi ponto de encontro de artistas, jornalista e políticos, quando era “Lá no Pasquale”. Muita gente prestigiando o evento, acompanhado também pelo editor Vinicius Alves e sua esposa Teresa, além de Maí Nascimento Mendonça, identificada no livro como “companheira de vida, revisora nas dúvidas e coautora nas certezas”.
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Dante Mendonça e seu editor Vinicius Alves, com Cleto de Assis (à esquerda) como papagaio de pirata

O humor fino de Dante, que nasceu na charge e caminha também perfeitamente na crônica de costumes da cidade que adotou há 39 anos, torna ainda mais atraentes as qualidades de Curitiba e até mesmo possíveis defeitos que são apenas aspectos curiosos de uma cidade com muita personalidade. Mas não há uma Curitiba maniqueista, dividida entre o céu e inferno. Até porque o tema já foi esgotado por outro Dante, o italiano, que não possuia o humor sutil do Dante curitibano. Curitiba é uma cidade única, com qualidade de vida invejável e, mesmo quando seu céu anuncia chuva e frio, há bons motivos para o curitibano se orgulhar de sua terra. Dante conta muitos desses motivos em saborosas crônicas selecionadas entre as publicadas nos últimos oito anos nos jornais O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná.

Mas ele recolheu jóias de outros escritores e artistas. As capas interiores do livro sãoi ilustradas com o mapa afetivo de Curitiba elaborado por Poty Lazzarotto, outro curitibano ilustre. Reproduz desenhos de colegas – como Solda e Tiago Recchia. Dante ganhou também orelha especial lavrada por Jaime Lerner, que diz ser o livro “leitura obrigatória para curitibanos e não curitibanos”. Transcrevo, abaixo, o aval de Lerner. Na tarde de sábado, li quase todo o livro, revendo lugares, personagens e, sobretudo, as idiossincrasias da urbe curitibana, habitada primitivamente por índios Tingui (que perderam o trema, mas conservam o hiato), todos comedores de pinhão, e desde o Séc. XVII povoada por brasileiros e estrangeiros de todos os jeitos e cores (tem até loiros de olhos azuis, presidente Lula!) que continuam comendo pinhão e vivem uma fantástica sinfonia racial. Muita gente já falou e escreveu sobre Curitiba. Mas Dante Mendonça dá a sua cidade adotiva, que hoje completa 316 invernos, o cartão de visitas que lhe faltava. Com muita graça. c. de a.

CUQUE COM ROLLMOPS

Jaime Lerner

Afinal, que é este Catarina que continua frestando Curitiba e tentando colocar consoantes eslavas em seu sotaque, misturando cuque com rollmops?

Pois este é Dante Mendoça, de Nova Trento. Um renascentista que mescla o Concílio de Trento (1545-1563), que discutiu as reformas que trouxeram grupos dissidentes de volta à igreja, com a Câmara Municipal de Nova Trento, cuja mão Dona Cremilda foi presidente e abriu ao questionamento mundial as reformas de sua cidade.

Curitiba é conhecida como túmulo de orquestras espanholas (Suspiros de Espanha, Castrito e Csassino de Sevilha), porque os músicos acabavam se apixonando por alguma polaca e aqui encerravam suas carreiras. Também assim termibou a carreira de boêmio do Dante ao se apaixonar pela Maí.
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Até hoje não se sabe se a união do Dante com a Maí inspirou o casamento de Michael Corleone com sua italianinha, no filme O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, ou se foi o cntrário. O que se sabe é que foi a Maí que botou o Dante nos trilhos.

Dante começou como mascote do time de cartunistas de Curitiba e hoje navega nas letras, à altura de seus mais ilustres cronistas.

O livro é um delicioso passeio pela história de Curitiba. Leitura obrigatória para curitibanos e não curitibanos, neotrentinos entre eles.

Este livro marca a passagem do Dante do desenho para a crônica, do sonho para a descrição do mesmo.

E agora com vocês, Vila Nossa Senhora da luz e Bom Jesus dos Pinhais, doravante Curitiba, e seu bardo emérito, doravante Dante.

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Livro: Curitiba: melhores defeitos, piores qualidades.
Autor: Dante Mendonça.
Editora: Bernúncia Editora.
Páginas: 287.
Preço: R$ 50,00

Dicas de Fernando Pessoa – 02

fernandopdesA finalidade da arte não é agradar. O prazer é aqui um meio; neste caso não é um fim. A finalidade da arte é elevar.

Perante este princípio, é bem fácil de solucionar a famosa questão da arte e da moralidade. Não elevamos uma coisa fazendo-a tender para o mal.

Mas não será, então, a filosofia uma arte? O objetivo da filosofia não é também elevar? É, pois o conhecimento eleva – não pode rebaixar ninguém. A minha definição da finalidade da arte é, pois, demasiado ampla, demasiado extensa. Considerando melhor, a finalidade da arte é a ele¬vação do homem por meio da beleza. A finalidade da ciência é a elevação do homem por meio da verdade. A finalidade da religião é a elevação do homem por meio do bem.

Esta classificação permite-nos ver o motivo por que a religião tanto significa e porque é tão difícil levar os homens a abandoná-la. É que a religião é a arte prática.

Mas estou longe de pretender defender a religião. Na realidade, a minha esperança é que fundemos uma religião sem Deus – uma religião puramente do homem, cuja base sejam a benevolência e a bondade, em vez de a fé e a crença.

Por religião, note-se, não quero dizer teologia. Se alguma coisa é, a teologia é uma ciência, parte da metafísica. Sendo assim, a teologia é teórica; a religião é prática. O credo de Auguste Comte é mais religião do que teologia – é, talvez, mais ainda, pois não possui o elemento egoísta da preocupação com a salvação própria.

Como explicamos o gosto que tantos autores revelam por assuntos grosseiros, desagradáveis, repugnantes? Como poderemos explicar (…) de Zola; a Gato Preto, de Edgar Allan Poe?

Um motivo para este gosto encontramo-lo, segundo julgo, no espírito científico e analítico do autor. Outra razão consiste na originalidade do tema. Estará ela no cultivo de sensações novas?

Será tal gosto patológico ou não?

Como Baudelaire no seu Le Voyage, descerão “au fond de l’enfer pour trouver du nouveau”?
Em composições idealísticas, a símbolo tem de ser vago. Por vago, porém, não quero dizer obscuro. O seu significado deveria ser apreendido como vago nos seus limites e nos seus termos – em si próprio deve ser claro. O símbolo idealístico deve parecer-se com as nobres criações femininas de Shelley, as silhuetas, os contornos de cuja beleza inefável são incertos e indefinidos.

O símbolo satírico, por outro lado, deve ser claro, muito claro. Se for vago, deixa de produzir impacto no espírito.

(de Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias. Organização de Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.Lisboa: Edições Ática, s.d.)

Está chegando a edição brasileira de Poemas para la Libertad

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Até agora inédito no Brasil, o sucesso editorial de Poemas para a Liberdade, do poeta Manoel de Andrade, foi tão considerável quanto seu alcance político. A obra estreou em 1970, na Bolívia. A 2ª edição, colombiana, esgotou-se em poucas semanas nas livrarias de Cali e Bogotá. A 3a edição, lançada em San Diego, em 1971, espalhou-se pela Califórnia e pelo sudoeste dos EUA, levada pelos estudantes e intelectuais chicanos. Suas primeiras edições panfletárias, lançadas em 1970 em Cuzco e Arequipa, espalharam-se pelo meio estudantil do Peru e percorreram a América nas mochilas de estudantes latino-americanos. Seus poemas foram publicados em jornais, revistas, opúsculos, cartazes e panfletos.

A nova edição de Poemas para a Liberdade, agora bilíngue, será lançada em Curitiba no próximo dia 15 de abril, a partir das 20 horas, no Espaço Cultural Alberto Massuda (Rua Trajano Reis, 453 -Centro Histórico)

O autor, Manoel de Andrade, é catarinense radicado no Paraná, onde se formou em Direito. Deixou o Brasil em março de 1969, perseguido em razão da panfletagem de seu poema Saudação a Che Guevara, em uma época em que sua poesia começava a ser conhecida nacionalmente por meio de jornais e publicações como a Revista Civilização Brasileira. Seu relacionamento com o movimento estudantil da Bolívia lhe custo a expulsão daquele país, em fins de 1969.  Ali havia chegado em setembro para se integrar ao movimento guerrilheiro comandado por Inti Peredo. Foi preso e expulso do Peru e da Colômbia em 1970. Seus Poemas para la Libertad tiveram uma trajetória política e uma aventura literária que dificilmente outro livro tenha tido. Como falam da luta armada e cantam a saga guerrilheira em uma América Latina então controlada por ditaduras militares, cruzaram clandestinamente certas fronteiras, como uma mala com 200 exemplares da edição boliviana, que chegou a Guayaquil por via fluvial, trazida do Peru por contrabandistas equatorianos.

Poemas para a Liberdade consta de vários catálogos da literatura latino-americana e seus poemas foram inluídos em várias antologias, como Poesia Latinoamericana – Antología Bilingue, publicada em 1998 pela Epsilon Editores de México, em que o autor partilha suas páginas com consagrados poetas, como Mario Benedetti, Juan Gelman e Jaime Sabines.

A capa do livro da nova edição foi inspirada em cartaz de um recital do autor em 1970, na Universidad de Los Andes, Bogotá, Colômbia.

Sobre o autor

Manoel de Andrade nasceu em 1940, em Rio Negrinho, SC. Graduado em Direito no Paraná, começa a publicar seus versos na imprensa curitibana em 1962. Em 1965, recebe o 1º prêmio no Concurso de Poesia Moderna promovido pelo Centro de Letras do Paraná. Ainda em 1965, participa da Noite da Poesia Paranaense, no Teatro Guaíra. Em 1966, a Revista Forma publica seu premiado Poema Brabo. Em 1968, sua Canção para os homens sem face é publicada pela Revista Civilização Brasileira e, ainda naquele ano, junto com Dalton Trevisan e Jamil Snege, é apontado pela imprensa local, como um dos três destaques literários no Paraná. Na época, foi chamado de “poeta maior” pelo jornalista Aroldo Murá Haygert e, posteriormente, destacado pelo crítico Wilson Martins pela sua “grande poesia”. Manoel de Andrade fugiu do Brasil em março de 1969, pela repercussão da panfletagem de seus poemas políticos. Atravessou 15 países da América publicando livros,promovendo debates, dando palestras e declamando seus versos em teatros, universidades e sindicatos. Seu primeiro livro, Poemas para la Libertad é publicado em junho de 1970 na Bolívia e, em janeiro de 1971, Canción de amor a América y otros poemas é editado na Nicarágua e em El Salvador. Em fevereiro daquele ano, Francisco Julião, exilado no México, abre seu primeiro recital de poesia na capital mexicana e, em seguida participa, em Tampico, das comemorações do 37º aniversário de morte de Augusto Cesar Sandino. Em março, viaja à Califórnia, para palestras e recitais nas universidades de San Diego, Los Angeles, Berkeley e São Francisco. Em agosto é convidado pela Universidade Central do Equador a apresentar um ciclo de palestras sobre problemas centro-americanos. Em 1972 retorna anonimamente ao Brasil.

Afastado 30 anos da literatura, participa, em 2002, da coletânea paranaense Próximas Palavras. Volta a publicar em 2007, com o lançamento de seu livro Cantares, publicado pela Escrituras Editora, também responsável pela edição brasileira de Poemas para a Liberdade.

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Retrato do poeta quando jovem, de 1964, obra do artista Juarez Machado
41x61cm – nanquim e guache sobre papel

Poema inédito de João Batista do Lago

Palavra

palavra

Coisa estranha este fenômeno: Palavra!
Nela tudo se decompõe
Numa razão assimétrica
Incoerente e disfuncional
Para no ato seguinte
Ser toda ela funcional
De toda metafísica que se impõe

Não conheço qualquer ser
Que dela não dependa
Nada se lhe escapa
– seja na vida;
seja na morte

Tudo dela depende:
Paz e guerra
Homem e mulher
Criança e adulto
Fome e fartura
Miséria e riqueza
Leis e anomia
Patrão e empregado
Trabalho e desemprego
Céu e terra
Deus e diabo…

Não há na vida
Nem na morte
Sujeito de tamanha grandeza
Dela tem-se toda verdade
Mas a mentira nela invade

Ó, a Palavra!
Reina de todos Poetas
Dela fazem uso os Filósofos
A ela se quedam os cientistas
Diante dela ajoelham religiosos
Na retórica é brinquedo de sofistas

Santa e demoníaca é a Palavra!
Desperta amor e ódio
Fere a alma e o espírito como faca de dois gumes
Rasga a carne do verbo
Dilacera corações de amantes (e)
Beija as mãos que apedreja

Palavra! Ó tu, meiga e doce Palavra!
Rude e azeda como o fel da ponta da lança
Voraz, caidiça, decrépita e senil
Bela, altiva, nobre e digna
Arrogante, soberba e presunçosa
Sou-te o mais humilde escravo na floresta do discurso

Nada – desde a poeira do nada – define-te. Nada!
Explicar-te é todo o mistério
Entender-te é tudo que se deseja
És toda possibilidade do Ser – deus ou diabo –
Habitas no sonho, na realidade e no real
Constróis e desconstróis paraísos e infernos

És o símbolo oculto da mandala
De Parmênides a Sócrates
De Platão a Aristóteles
Sânscrita, ó Palavra, tu és
És mestre do hinduismo e do budismo e do tantrismo
És, enfim, a Paidéia de tudo ser

Francisco Cenamor, poeta de Leganés

Conheci Francisco Cenamor em uma visita ao Palavras, todas palavras, dias atrás. Vidal publicou um poema do poeta espanhol e eu, logo em seguida a leitura, deixei um elogio ao poema e ao poeta. No dia seguinte, ao retornar ao Palavras…, notei que havia outro registro no post do poema. Curioso, fui ler o que pensava ser comentário de outro leitor e, para minha surpresa, era o próprio poeta a agradecer minha leitura.

Como a assinatura estava lincada,viajei instantaneamente até a Espanha e me deparei com um blog literário, mantido por Cenamor, com farto conteúdo. Conheci seu perfil de trabalho, sua intensa atividade de blogueiro poético e a imensa rede de enlaces que já possui. Lá estão vários de seus livros em versão eletrônica, que incluem poemos, contos e peças teatrais.

Outro impulso e enviei um e-mail ao poeta, identificando-me e pedindo permissão para publicar seu trabalho no Banco da Poesia. Sua atenção foi imediata. Poucas horas mais tarde, chegava sua resposta, na qual não só permitia a publicação de qualquer poema seu (“puedes usar para tu blog cuantos poemas quieras. En eso no hay problema, al contrario” ), mas também dizendo estar abeerto a um intercâmbio com este nascente blog brasileiro (“será un honor colaborar en un acercamiento entre estos dos idiomas nuestros, tan bellos para la poesía).

Portanto, comecemos com alguns dados biográficos do poeta, traduzidos de seu blog Asamblea de Palabras (Assembléia de Palavrashttp://franciscocenamor.blogspot.com).

Biografia

franciscocenamorfotografic2a6c3bcapriscillalumbrerasmaquillajealejandracantero09Francisco Cenamor gosta de dizer que nasceu em Leganés (região metroplitana de Madri), em 1965. A parteira disse a sua mãe que, pelo umbigo do bebê, podia dizer que seu filho ia ser artista. Curioso, porém certo. Filho de pais que possuíam um pequeno negócio familiar, destacou-se no colégio até os 14 anos, quando decidiu abandonar os estudos e trabalhar no negócio da família: um açougue de carne de cavalo no bairro madrileno de Vallekas.

Desde menino se dedicou ao teatro e à literatura. Mas continou trabalhando em açougues até os 17 anos. Depois trabalhou em mil atividades, inclusive recolhendo papel e ferro velho. Seu feito mais destacado, nesses anos, além de pertencer desde muito jovem a numerosas associações juvenis e sociais, foi ter se tornado a Quarta Dama de Honra nas festas patronais de Leganés em 1984, notícia que deu a volta ao mundo e obrigou a mudar as normas de participação nos concursos de misses. (Leia a notícia aqui) Também ganhou, no período, algum prêmio literário.

Por fim, em um dia de…, não recordo o ano, passou a trabalhar na revista de atualidades sociais e culturais Página abierta, onde depurou sua técnica literária e adquiriu prática na condensação de textos. Seis anos mais tarde foi admitido como auxiliar de biblioteca na Real Academia Espanhola. Em sua biblioteca descobre milhares de obras em verso e prosa em castelhano, que devora com avidez. Também nessa época entra en contato com um grupo de poetas pela primeira vez, no qual se encontravam alguns jovens que, mais tarde, dariam o que falar no mundo literário.

Em novembro de 2004 abandona a Real Academia para viver da interpretação e de outros trabalhos, inclusive como professor de teatro. Aparece, então, em capítulos de conhecidas séries de televisão, anúncios publicitários e diversos filmes espanhóis.

Atualmente edita o blog literário Asamblea de Palabras e coordena o Clube de Leitura da Universidade Carlos III.

Participa nos Encontros Literários em instituições de ensino superior da Direção Geral do Livro, dentro do Plano de Fomento da Leitura.

Seus libros publicados são:

Amando nubes. Talasa Ediciones, Madri, 1999.
Ángeles sin cielo. Ediciones Vitruvio, Madri, 2003.
Asamblea de palabras. Ediciones Vitruvio, Madri, 2007.

Aparece nas antologias:

Poemas contra la guerra. Edições Vitruvio, Madri, 2003.
Salida de emergencia. Nosomoscómodos Producciones, Madri, 2004.
Pázsalo. Multitud en rebelión. Editorial Fundamentos e Plataforma Cultura Contra la Guerra, Madri, 2004.
Vida de perros. Poemas perrunos. Editorial Buscarini e Ediciones del 4 de agosto, Logroño, 2007.
Bukowski Club 06-08. Jam session de poesia. Ediciones Escalera, Segovia, 2008.
Rósea. Ediciones Bohodón, Madri, 2008.
La mujer rota. Literalia Ediciones, Guadalajara, México, 2008.
Fuga de nada. Ediciones Bohodón, Madri, 2009,

Três Poemas de Francisco Cenamor

cansancio ajeno


hay cada mañana una mujer maría
que se sienta al borde del abismo de su cama
mira hacia abajo antes de saltar
y duda sin remedio de si irá al trabajo

hay cada tarde un hombre manuel
que se sienta cansado en un banco del gimnasio
mira su peluda barriga que no baja
y piensa en sacar mañana todo su dinero e irse

hay también cada mañana un joven raúl
que coge sus libros para ir al instituto
mira con ojos dormidos el desorden de su mesa
y encuentra el cedé que le gustaría quedarse a escuchar

hay cada atardecer una abuela cipriana
que abandona con paso cansado el cementerio
mira con envidia la tumba del marido
y siente que pronto se liberará de su pesado cuerpo

hay cansancio en estos días extraños
y aunque me levanto de la mesa y lo dejo
me dan ganas de escribir al final del poema
que tal vez sean mis ojos los que se han cansado

maldita espiral infinita

unaespiralinfinita rodea mi cabeza
unaespiraldeespirales cuyos trazos
son a la postre mis barrotes
y yo ahora siento que necesito
bajar por un hilo de seda
mecido por una blanca brisa
estar tumbado en una dulce sauna eterna
que en mi sudor se vayan los días trabajados
y que un espejo refleje los ojos que vi esta mañana

niños y niñas

estás y ya no estás
dicen que hay muchos niños
que mueren de hambre cada día
estás y ya no estás

y otros niños nacen cada mañana
como las nubes que no sabes donde
qué tierras mojarán

a veces hay nubes que están
en el cielo mucho tiempo
y un día ya no están
como los niños que a veces ya no están

pero el agua que dejaron las nubes
pueblan cada tierra de raíces
como los niños muertos

Banco novo na praça

No dia 12 de março de 2009 inauguramos o Banco da Poesia, que pretende ser mais um ponto de apoio para essa modalidade literária nem sempre valorizada  em nossa cultura. A essência da poesia está em todas as artes, fundamentais  para a própria vida. Só quem sonha pode criar. Só quem cria faz o mundo evoluir. E quem provoca a evolução da sociedade, gera maior comunicação e reunião solidária entre as pessoas. Fernando Pessoa já vaticinava, há mais de 50 anos: O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho. Para ler mais, clique aqui.

Mais um livro de João Batista do Lago

capa_canticos

CÂNTICOS VISCERAIS, do poeta maranhense (de Itapecurumirim) João Batista do Lago estará à disposição para o público a partir do próximo mês de abril. O livro não serácomercializado pelas livrarias convencionais ou tradicionais. As pessoas que desejarem adquirir devem fazê-lo por meio do e-mail:

joaobatistalagoster@gmail.com

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Cânticos Viscerais é o terceiro livro de João Batista do Lago que, acertadamente, em suas próprias palavras, o define como seu “ponto ideal”. Não se trata de mais um livro de poesias; são poesias de um novo espírito poético, poesias que se esteiam na polêmica da razão… ou das razões. São arguições profundas que se ultrapassam num devir poético.

Simpatizante das concepções bachelardianas, João Batista sente ser necessário adentrar os caminhos de uma poética que recorde à razão sua função agressiva, turbulenta, em que se multiplicam as “ocasiões de pensar”. Esta razão necessariamente há de ser polêmica, há de provocar, de desancorar do local onde naufragou – este, já agora, inútil destroço.

Há uma tensão dinâmica, fluida, e não uma cisão entre a poética de João e seu pensar racional sobre o real. Para além de uma inserção advém uma complementariedade; há um poeta no racional extraindo insights, compreensões retiradas a fórceps, dores “viscerais” por trás da persona alegre…

Trata-se aqui de uma construção que desfragmenta, fractaliza e se recria a partir de blocos de uma linguagem assimétrica: a obra? Estética harmoniosa, cromática, ferina de palavras-sílex, suaves, e fertilizadas flores beijadas por beija-flores…

A crise inserta na Pós-Modernidade (leia-se aqui a ruptura da legitimidade das meta-narrativas) gerou um mal-estar na confiabilidade, na credibilidade dos grandes discursos. João não consegue esconder esse mal-estar e, para além disso, revela-o pela – metaforicamente – face mareada, pré-emética, deixando-se ver sinal e sintoma.

A dor em João é-lhe tão “visceral”, que por vezes beira a impotência de um moribundo. Quais as dores que o exasperam? São as dores do (des)conhecimento e mesmo do conhecimento, as dores da inconformação frente às ideologias que espalham subserviência e misérias, as dores que se mimetizam em prazeres, que se escondem por trás das máscaras assépticas, as dores da inocência perdida, do abuso criminoso, da inocência de si; as dores de abortos covardes das utopias felizes; de caminhar solitário num mar de dores anestesiadas.

Com uma pitada de Bachelard, diria que João vê o estrume, mas também vê a flor! E de ambos aspira-lhes a essência do perfume… mesmo que fatal. Aspira convicto, consciente do mal que pode evolar da flor ou do bem que pode estar mimetizado no estrume. Porque o João se debruça sobre ambos – independente, objetivo e total no seu conhecer, na sua contemplação. E, por isso, apreende no instante… e retifica a apreensão – dolorido – no próximo apreender…

A apreensão causa dor. A noção de dor em João, como já foi dito, é dilacerante: do fundo de suas entranhas, no estranho ventre algo chegou a termo! O concepto, pronto para vir à luz, tem de rasgar-lhe por dentro e não é possível adiar… Há dor no concepto e no parturiente. O pósparto exige recuperação; o recém-NATO, adaptação. É João a sentir a ferida de si a doer, a dor dos feridos todos, a dor de ser e de existir consciente, a dor da inconsciência no outro de que lhe crescem feridas…

Por que o “visceral”? Porque a dura palavra coaduna-se com o real; é-lhe velha irmã, conhecida, companheira do dia a dia. Porque a estética virtuosa já carece de sentido, já não mais perturba a desvirtuose em que estamos imersos; já não é mais capaz de perfumar o que se apresenta pútrido na ausência de virtude das cidades, dos países, dos escravos felizes de senhores vis.
João, voyeur de si, artífice de metáforas como pendular meta-fora de si, delator nobre do injusto/covarde/leviatânico grande outro… Seu escancaramento de si e do real, apesar do que lhe causa, tão bem expresso nas suas viscerais palavras, não lhe é obstáculo, não lhe convida a participar do banquete dos acomodados. São, antes, “pontos vélicos” bergsonianos a lhe impulsionar a busca.

João Batista do Lago evidencia nas contradições, nas antíteses tão bem insertas, a dualidade mal encoberta que se revela à análise crítica – do olho que quer ver. Assim, enriquece seus gritos-denúncia contra uma exploração de ideologias e dogmas, deixando a descoberto o amontoado de inúteis discursos desumanizados, desarraigados…

Há no poeta uma inquietação tanto com a tentativa de reencontro de sua dimensão universal, quanto com a miserável condição humana que se esconde nos becos das cidades, ou que escoa a céu aberto, onde caminham outros homens-cidades humanos poluídos de exploração homo homini lupus na alcatéia de um “deus mercado”…

Nosso poeta, de tímpanos feridos, mostra o grito calado, ouvido dentro de si que é abafado pelo ensurdecedor ruído uníssono de caducos filosofares, que deixa proscritos os quereres, que torna impossível os pensares…

Lembra-me ele um rebelde aluno em casarões-escolas mofados a distrair a atenção para o principal – que não é ensinado; bêbado feliz que faz escárnio da abstinência alheia: ora sem bandeira de si, ora fractal bandeira de todas as cores… Tal qual o pintor que se utiliza das cores na criação de suas obras, João Batista vai customizando, ao buscar novos matizes, dentre os espectros visíveis do real; vai decompondo fractais sintonizado na frequência espectral de tons monocromáticos; vai tingindo os degradês de braços, pernas e pés explorados com cores carregadas – irônicas, sarcásticas linhas poéticas viscerais…

Essa visceralização ocorre no instante instintual, onde o experienciar converte-se em impressão-explosão poética. Há um grito em João Batista do Lago que o ensurdece e berra para a Ágora sonolenta; um grito que quer que seja pública, não rês, bovina resignação de homens tangidos por uma sorte não pressentida.

Falo de um João que se insurge primeiro dentro de si e, aos poucos, transborda para o outro que também carrega em si. Assim como quer a este outro desperto, desperta atônito de seu próprio despertar.

Na sua orfandade de origens é um homem distanciado de si, na miserabilidade de se contemplar em uma vida que é um reflexo de sua condição atual, numa época desarraigada, inconsciente, repetidora (de iguais!).

Ao carregar nos ombros seu próprio sofrimento de ser dor e de ver as dores do mundo, imola-se em cada verso que destrincha com os talheres baratos e descartáveis que lhe são oferecidos tão “gentilmente”. Cada palavra que liberta, cada frase que solta das brancas e suadas páginas é um pedido sempre último de que se nidifique fertilizado em úteros-mentes que gestarão versos vivos. E, pelo amor de Deus, ou dos deuses, que não se aborte a Poesia!

É visceral a dor da certeza de que é humana a mão (de carne e ossos que irão apodrecer); que, à semelhança do conto da árvore a reconhecer ser de madeira o cabo do machado que lhe abaterá, também são humanas as mãos que distribuem a fome, os sermões que excomungam, que expõem mãos diferentes em circos de horrores modernos… E por isso, a fumaça dos turíbulos já não sobe aos céus: seus ductos e ictos apenas conduzem às profundezas torpes do ser (des)humano. Há um lobo no altar da ovelha; há filhotes de lobos a beijar ovelhas…

“Poeta maldito”, herege a blasfemar contra seu alienofágico “deus mercado”… Bendito rebelde que incita, concita seus pares, excita-se com o sonho de se acabarem os matadouros onde se prepara o banquete de duras carnes humanas. É dilacerante a dor que calcina os ossos, a dor de se sentir brasa viva de si, a dor nos ouvidos onde ecoa o tropéu dos cascos a espezinhar as dignidades, onde se escuta centauros chicoteando os direitos…

O sujeito da poética de João é um João cognoscente, ávido e árido de si; é um João que se oferece sacrificialmente, que faz libações ao sensório cru – e nu – de seu próprio experienciar… irrepetível conhecimento. João oferece o que não é de se oferecer; se angustia por oferecer o que, neste carecer do ofertar, não será compreendido, será mesmo até inconveniente: será um choque visceral… algo, por certo, a ser evitado…

A poesia lá está, às vezes, pregada no âmago da cruz-poeta; quando ele a desprende, há a sensação de um chute “na boca do estômago”, há uma dor visceral, que parte das entranhas da cruz e perpassa – dolorida e pulsante – pelas veias do real. E o que é este real? É o instante no homem que jaz liberto na cruz… Do alto de seu madeiro, não se queda – alheio e surdo – aos choros: vê tanto a funcionalidade deste como o despropósito de chorar. Do alto de sua cruz implora a morte: que a todos iguala, que revela e retira as algemas da verdade, tão insistentemente escondida no viver; a morte que é símbolo do fim da procrastinação da procura, da morte dos regimes, sistemas, filosofias, dogmas, ideologias, procuras de João… Jaz na cruz um João, pássaro na mira do caçador de si…

É o nosso poeta um buscador de si. Na busca de seu perfil esbarra nos obstáculos – seus perfis escondidos. É, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhecimento de si e por isso, inevitáveis são o conflito e a dor oriundos do próprio ato de conhecer. No enfrentamento de seus obstáculos, de certa forma, sentimento de caos, supera-se avançando para outro caos. Ao mesmo tempo que retifica seus perfis, alarga sua via crucis e segue na “intensidade de presença” de um novo João.

Sua poética, qual bisturi a lhe cortar o corpus, desfolha-lhe as camadas, textos de si mesmo, expondo-lhe à luz do dia os nervos-análise que se permitiu dissecar. A cortar-lhe: um insensível bisturi; a ser cortado: já um meta-corpus. Na alcova fértil de seu “quarto”, seus frios/quentes suores são rimas, por vezes ásperas; ei-las avesso do cetim, doloridos chutes que a esperança lhe dá do âmago de seu ventre grávido. A poesia aqui é um pensamento que se aventura, uma aventura que se pensou. Dinâmica e intuída, insights de si, direciona-se redirecionando, compreende-se além de si. Em sua alcova, João biparte-se, reformula seus signos: há significado e significados, há mais nulos significantes… João decifra-se e devora-se…

A vertente “noturna” de João revela-se na poesia que, ora o faz precipitar-se nos abismos, ora o leva a despencar, ele mesmo, impelido e seduzido pelo abismo de sua (in)compreensão. O lado “noturno” ri-se do lado “diurno” de João e o provoca no leito de seu “quarto”… E as palavras, situações, estupefações, ao passarem pelo crivo de um João racional, amalgamam-se no instante – amante – capturado e traduzem-se no verso em gozo…

Caminhante – dos irmãos, o caçula de Dante -, o poeta vai tropeçando sobre si, por entre as ruínas de suas construções mentais, coletando as cinzas-amostras, material de estudo em seu laboratório de cientista-poeta.

Já de outras vezes, João navega turbulento, singrando os mares cheios dos monstros dos erros e ilusões. Açoitam-lhe os ventos da linguagem que, racionalmente tenta usar, fustigam-lhe as tempestades de incoerência… mas continua a proteger a bússola sonhando com o farol (gedanken) que, intui, está a se ocultar por trás do vagalhão de suas ancestrais paixões… Por vezes a vontade louca de se lançar ao mar, de se oferecer ao altar de Netuno como um lobo a se redimir perante a ovelha cobiçada outrora: seu intuito é o de libertar rebanhos.

A tentativa de descontrução na palavra da dor embutida nas guerras, nas misérias cotidianas coloca na face do poeta um olhar que irrompe da noite, ao modo do Sol, e escancara à luz (razão) do dia as mazelas, a podridão mal encoberta, o fétido cheiro que já não mais incomoda, pois os olfatos já se acostumaram e as máscaras também fedem…

Uma preocupação assola a alma: será possível ser a si mesmo se há moldes em todo lugar? Na família, na escola, na igreja, no trabalho, na sociedade? Será que tudo já foi dito, será possível a desalienação, libertar-se do jugo ideologizante e ideologizado?

E surge, por vezes, o medo de abrir “as gavetas do Eu”, o medo de se ver desnudo, sem máscaras frente a si mesmo; o medo do confronto consigo mesmo, das fragilidades visceralmente expostas… É um medo que queima e enregela qual arrepio de alma…

Os olhos – janelas d’alma – refletem tanto a visão de si, interno-olhar, quanto releituras, (re)visões do que se apresenta ao olhar. Se leitura hoje, releitura amanhã e, para além do amanhã, leituras outras existirão… Quais olhares surgirão? Existirão olhares? Será pura e vã inquietação?… Existem as leituras dos vencedores; as esquecidas estórias dos vencidos; há espaços reais aos seus tempos; há verdades forjadas, mentiras transmutadas em verdade única; há vidas ceifadas cheias de verdades amordaçadas… De onde o direito de espalhar o ódio que contamina os inocentes, os civis que ainda não estão na guerra?

Por ser um buscador, o poeta recorda-se do realismo ingênuo, subjetivo e egocêntrico e passa épido por um empirismo “claro”, qualitativo e quantitativo de si. Do racionalismo tradicional extrai-se como noção de um João relativo inserto num paradigma racional e, refeito de si, pulando as pedras limosas da razão, ainda meio zonzo já escorrega em seus referenciais e se estatela na grande pedra… surracionalmente feliz. Já agora é um João simultâneo a se olhar; não mais absoluto, nem relativo. Compõe-se (ou fragmenta-se?) a partir do dual na dimensão quadridimensional do espaço-tempo.

Seduz-lhe a pedra, por ora. E maravilha-se, angustia-se, devaneia, filosofa oniricamente na poesia! Sente-se arquetípico, pressente um meta-João a ferir-lhe as entranhas feitas de todos os “Joões”. A taça não transbordou. Saboreia-se pressentindo a dor da cicuta que ingere e, digere – antropofágico – cada um de seus pedaços, enquanto o “dia” não vem. João sonha desperto (devaneia) enquanto é tecida a “noite” em que cabem seus versos, mas, serve-se destes para antever o pesadelo do diurno sonhar… A cada nova poesia: a experiência do instante, do tapa do real na ilusão, do novo e do velho, do profundo que diz Não ao Sim da razão. E o poeta se alarga, se retifica dolorido, “visceral” eternum retorno e perda de si, lato e strictu sensu João… Ah, João, já a pensar em outras pedras ou está a pedra a golpear por Amor?

São feitas nesta poética várias alusões aos quatro elementos: água, ar, fogo, terra. Podem ser escritos tratados (e já foram) sobre a simbologia oculta nesses elementos alquímicos, elementos de criação, elementos poéticos. Mas, num recorte, que nos interessa aqui, cabe atentar para a decomposição que o poeta faz criando desses símbolos metáforas de metáforas.

Assim, na busca do ouro alquímico de seu próprio ser e de sua consciência no real, o fogo tanto pode servir-se de seu papel de nilificador (uma espécie de redução a cinzas), quanto de purificador (uma espécie de lapidação das imperfeições). Poderá ser símbolo de paixão, do íntimo, do instintual que queima, de corporificação do desejo que consome. Há, porém, um sentido maior, não excludente dos demais, o de transcendência: o fogo, ao consumir matéria (e, aqui também, espírito) dialetiza o sujeito e o objeto João, purifica-o e lapida-o em suas arestas antagônicas… e que dor inevitável, que luz que cega!

Já da Água nos vem à mente a noção de fluidez, de uma poesia que é afluente (deságua e compõe rios), que João faz fluidicamente, como fecundante rio a fertilizar margens. Mas na água se lavam também os pecados originais, nela nasce o novo homem… Ecce homo…; dela bebe-se iniciaticamente a “Verdade” que sustenta. Águas há assassinas, violentas, profundas nas quais submergem homens que convivem com as águas primaveris e claras em que se banham despreocupados os jovens corpus amantes. Já aqui, em meio às águas, João até pensa irônico no peixe-poeta, crístico símbolo a se deixar pescar, pois que peixes e água são partes de um todo só…

Do Ar, capta-lhe, em seu movimento ascensional, a dupla face da queda e do vôo. Sobe assim, pleno em devoção, buscando o elevado Olimpo no qual fará uma oblação de si. Há vestígios arqueológicos de deuses no Olimpo? E como se livrar das impurezas que o alçaram lá?

Já agora é a Terra, pois, a lhe avisar de suas raízes, do repouso e do ventre que lhe germina e sepulta. É a terra a lhe fazer brotar uma nostalgia do vivido e do que poderia ser… Saudade menina de um menino João… um bem querer de Pátria amada, de uma amada distante no tempo, de chão natal amado, inocente pandoravelmente a espiar… E assim as antíteses diurno/noturno (racional/onírico) amam-se despudoradas e inocentes no universo alquímico de João…

Penso (será que realmente existo no meu pensar?) agora (serei mais uma na Ágora sonolenta?), por fim, na impressão que me fica após a leitura deste livro. Pareceu-me que o poeta envia aos seus leitores a seguinte mensagem: – “É preciso reaprender a capacidade de se espantar; é urgente adentrar, pela iniciação poética, o umbral do conhecimento; é imperioso o despertar consciente e atuante diante do que é dado, do que é imposto, levantar o véu da essência que a aparência encobre. É necessário também sentir que há sangue tanto nas próprias veias quanto na história da humanização; é urgente também redescobrir-se numa reinserção. Porque é um desrespeito valer-se da poesia de uma forma vil… é proibido alienar-se a poesia!”

Obrigada pelos mergulhos no abismo, por dar voz aos gritos tão nossos, pela denúncia (porém atente: Si vis pacem para bellum… se queres a Paz, prepara-te para a guerra!), pelo fogo, pela água… e pelo ar e pela terra… Obrigada pelo ocaso-interregno; pelas primaveras que estão contidas nas geleiras… Obrigada, mais que simplesmente, visceralmente… Lembrei-me de um trecho de um imortal, nosso poeta Carlos Drummond de Andrade, de sua magnífica poesia intitulada Procura da poesia; dizia ele: – “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ pobre ou terrível que lhe deres:/ Trouxeste a chave?” Creio que João Batista do Lago a tem…

Alpha Leninha (http://alfaleninha.spaces.live.com)