Arquivo do mês: abril 2012

Cardenal fala de amor e perda

Al perderte yo a ti

Ernesto Cardenal /Nicarágua

Al perderte yo a ti tú y yo hemos perdido:
yo porque tú eras lo que yo más amaba
y tú porque yo era el que te amaba más.
Pero de nosotros dos tú pierdes más que yo:
porque yo podré amar a otras como te amaba a ti
pero a ti no te amarán como te amaba yo.

Ao perder-te eu a ti

Ao perder-te eu a ti, tu e eu muito perdemos:
eu, porque tu eras o que eu mais amava
e tu, porque eu era o que te amava mais.
Mas, entre nós dois, tu perdes mais que eu:
porque eu poderei amar a outras como amava a ti
porém a ti não te amarão como te amava eu.

Versão: Cleto de Assis

Uma incelença entrou no Paraíso

Humor no céu

Walter Bezerra / de Alagoas

No translado para o céu, Chico Anysio ficou na dúvida sobre com qual caricatura iria se apresentar no paraíso. Silva, Popó, Coalhada, Haroldo, Salomé, Azambuja, Alberto Roberto, Painho, Bento Carreiro, Tavares, Gaspar, Canavieira, Quem, Quem… ou Justo Veríssimo, representante legítimo da corruptocracia?

Chico levava na bagagem a criação de 209 personagens memoráveis, entre os por ele interpretados e os que ele criou para outros humoristas, como o Seu Peru (Orlando Drummond), e o Seu Boneco (Lug de Paula). Com passagem pelo jornalismo esportivo, rádio, TV, teatro, literatura, música, dublagem, imitação e pintura, Chico fora, ainda em vida, idolatrado como ídolo, sábio, gênio, mito, fenômeno. Sociólogo do riso, iconoclasta, Deus do humor, Chico, porém, não se gabava com essas alusões ou – como diria ele – bajulações. Dizia-se simplesmente ”humorista do povo”.

Chegando ao céu, vestindo a camisa do Vasco, ele ouviu um background de risadas de auditório. Dava para distinguir inequivocamente a gargalhada inconfundível de boas-vindas de Nair Belo. Chico deparou logo com uma galera da pesada, donos também de um humor refinado e inteligente, segurando uma faixa: “Bem-vindo, Chico Total!” Era a bancada brasileira do riso no Planalto Celestial: Mazzaropi, José Vasconcelos, Ivon Curi, Costinha, Paulo Gracindo, Walter D’Ávila, Renato Corte Real, Grande Otelo, Golias, Mussum, Zacarias, Brandão Filho, Zezé Macedo, Rony Cócegas e Francisco Milani, liderados pela lendária Dercy Gonçalves, que, de cara, à sua maneira escrachada, quis confortar:

— Fica triste não, Pantaleão, a vida aqui não tem mentiras, não é lá muito engraçada, mas é melhor do que aquela porra lá embaixo!

Nesse ínterim, Chico ouve passadas vindo em sua direção. De súbito, à sua frente, surge um personagem histórico, dentro de uma túnica marrom. Era o seu xará Francisco, o de Assis, figura religiosa à esquerda do salafrário Tim Tones, ao qual Chico dedicara fiel adoração profissional. Devoto e seguidor de carteirinha do Protetor dos Animais, Chico acenou ajoelhar-se, no que foi repreendido:

— Não, não precisas, irmão. Somos da mesma estatura espiritual e intelectual. Vimos das mesmas origens e comungamos lutas, buscas e objetivos parecidos. Eu por minha opção pelos pobres e oprimidos e pela minha abnegação material. Tu pela generosidade humana e pela postura crítica da tua verve criativa e irreverente. Vamos por ali, ao encontro do Onisciente. Ele te espera para uma conversa informal. “É vapt-vupt!”- disse São Francisco, sorridente, ressuscitando a frase do velho Professor Raimundo, enquanto apontava para o Portão da Eternidade.

Chico apressou os passos e entrou no Recinto dos Justos. Deus, de cima de sua onisciência, saudou o humorista já com uma lisonja desnorteante, dessas que massageiam os mais despretensiosos e acanhados egos:

— É, Anysio, o Jô Soares tem razão. Tu realmente desmentes a frase “ninguém é insubstituível”.

— “Nem tanto, Mestre!” – rebateu Chico, acuado, meio sem graça, citando um bordão de um dos tipos da Escolinha.

— Verdade! Tu só não foste considerado o melhor e o mais conhecido humorista do mundo porque eu não te batizei com uma língua inglesa. Se tu tiveste nascido norte-americano ou inglês, com certeza tua fama teria corrido o mundo. E pensar que tu querias ser jogador de futebol! Isso não aconteceu porque assim estava escrito. Seria uma perda para a infinita comédia humana. Não tinhas vocação para Pelé. Mas, no humor, foste, sim, um craque. “Queria ter um filho assim!” – revelou Deus, com soberba paternal.

— Mas, Divino, por que me deletasse? Eu não estava a fim de embarcar agora não. Tinha umas coisinhas ainda a fazer. Quando o Senhor convocou a Darcyr, ela tinha 1001 anos. Por que não me permitisse a mesma data de validade, pelo menos uns 95, 98 anos? – reclamou Chico.

— Cada caso é um caso, “meu garoto”! Aliás, essa conversa eu já tive com o Calcanhar de Ouro e com O Anjo das Pernas Tortas, entre outros. É aquela história da livre escolha. Eles escolheram o álcool; tu, o cigarro. Lembras que disseste que fumar foi o teu grande arrependimento?! “Saúde é o que interessa; o resto não tem pressa. Iiiissa!” “Bateu pra tu!?” – explanou Deus, homenageando o recém-chegado com bordões de sua intimidade.

O cearense de Maranguape meteu o rabo entre as pernas e se rendeu:

— É… fumar, sinceramente, foi…

— “Não precisa explicar. Eu só queria entender!” – satirizou Deus, invocando a frase predileta do Sócrates, personagem do Planeta dos Macacos e também da Escolinha.

— Digníssimo, e a corrupção, as tramóias, os escândalos?  Os pobres lá embaixo… como ficam? – quis saber Chico, preocupado.

Deus, em conspiração, piscou o olho para São Francisco, que ouvia o diálogo desde o início, e alfinetou, em alto e bom som:

— “Tenho horror a pobre! Quero que pobre se exploda!” Ser dono do mundo não é nada engraçado e nem gratificante. Eu faço tudo por aquele povo lá de baixo. Apesar de sua insistente gula material, suas babaquices egocêntricas, suas lambanças judiciais e trapaças políticas, dou oportunidades para arrependimentos e correções. Através de poucos homens probos, faço refletir, oriento, aponto os caminhos a trilhar. Vez em quando, só para alertar que ainda estou vivo, faço alguns milagrezinhos. Faço tudo que posso e até o que não devo. E só exijo uma bagatela: a FÉ! “E o salário, ó!”

Depois do desabafo irado, Deus saiu à francesa e às gargalhadas. Diante daquela cena ímpar, Francisco, seguindo o estilo do Eterno, despediu-se, espirituoso:

— “Beijinho, beijinho, pau, pau!”

Minutos depois, Rogério Cardoso – esperançoso – aproximou-se e murmurou para Chico:

— E aí, Amado Mestre, a Escolinha vai rolar aqui ma cobertura? Chico evocou um dos seus personagens preferidos e, amuado, prometeu:

—  “Bento Carneiro, vampiro brasileiro… Deixa eles, minha vingança será malígrina!”