Arquivo da categoria: homenagem

Sensações outonais

Centenário do Caqui

caqui-full

 

        Nesta semana são comemorados muitos eventos. Ao Dia da Poesia já fiz homenagem especial. Mas há também o Dia Internacional da Síndrome de Down (21/03), ao qual também dedicamos especial atenção, há algum tempo, assim como ao Dia Mundial da Água (22/03). No dia 21 também se comemora o Dia Universal do Teatro, do qual poucos falaram.

Mas o início do Outono, tão lembrado no Banco da Poesia: em 2009, Mais Outonos franceses; em 2012, Saudação ao Outono e Nesses veludos pálidos de Outono; repeteco em 2014, com Bem vindo, Outono. E esta estação do ano, que carrega um pouco das outras três e se associa à vida humana como metáfora dos derradeiros anos, tem, para mim, além do sentido figurado da idade avançada, um imenso gosto de infância. Porque o Outono é também a estação das frutas, que amadurecem nas árvores enquanto as folhas secam. E uma das boas lembranças é o variado sabor dos caquis que aprendi a amar lá no começo de minha história.

Na pequena Mafra, em Santa Catarina, onde vivi os melhores anos (quem inventou a bobagem de que a velhice é a melhor idade?), saboreei as melhores peras, as melhores ameixas e os melhores caquis. Destes, havia várias espécies. O amargo, que só se podia comer quando bem maduro (quando pouco maduro, causa aquela sensação de “amarrar a boca”); o café ou chocolate, de doçura especial mesmo ainda verdolengo; o coração-de-boi, gigante que equivalia a uma refeição, já incluída a sobremesa. Nunca os tive no quintal de minha casa, mas era fácil encontrá-los nos pomares dos vizinhos e dos conhecidos de meus pais, sempre dispostos a dividir a colheita anual. Mais tarde, travei relações gastronômicas com outras espécies, já cultivadas pelos japoneses que se estabeleceram principalmente em São Paulo, na região de Mogi das cruzes. A produção em grande escala fixou espécies comerciais, como o Taubaté, Rama Forte e Fuyu e, de país receptor da fruta trazida pelos colonos japoneses, o Brasil já se torna exportador, ainda que em pequenos volumes.

O caqui maduro, quase gelatinoso, desmancha-se na boca de quem os consome quase voluptuosamente, devagarzinho, parcimoniosamente, diria até com certa avareza, que é para não degluti-lo rapidamente. Dá gosto permanecer com ele na boca, sentindo seus sabores, apesar de dispensar mastigação. Não é à toa que ele carrega em seu nome científico o gênero dióspyrus, que significa “alimento de Zeus”. Aliás, em Portugal ele conserva seu nome tradicional: lá não pergunte pelo caqui (do japonês kaki), mas pelo dióspiro.

Mas o que faz o caqui neste blog dedicado à Poesia? Em primeiro lugar, porque boa recordação da infância é poesia pura. Depois, porque amizade também é poesia e ganhei, na última semana, belos caquis produzidos na chácara de Neiva e Manoel de Andrade, diletos amigos. Também porque o bom alimento do corpo é também alimento prazeroso para a alma, o que também pode ser transmutado em poesia. E ainda guardo a imagem de uma grande plantação de caqui do interior de São Paulo, com os caquizeiros repletos de frutos alaranjados, sem vestígios de folhas, causando a impressão de um quadro vivo pintado por Van Gogh: também puríssima poesia. Finalmente, porque acabei de descobrir que o caqui veio para o Brasil em 1916, exatamente há cem anos. E caqui é fruta típica do outono brasileiro.

Notaram como o Outono é inspirador? Portanto, saudações ao Outono de 2016, com sabor de centenários caquis maduros.

Cleto de Assis – março de 2016

Parabéns para nós

Cinco anos do Banco da Poesia

animated-birthday-cake

O Banco da Poesia nasceu no dia 12 de março de 2009. Teve uma gestação de apenas seis meses, fecundada com o poema inaugural, conservado até hoje no topo da página de abertura. Mostrou para o que vinha, ao seu final, como uma promessa:

O que quer? É quase nada.
Só reunir na estrada
os escribas já sem rumo
que semeiam bons valores
com muito amor ou com dores
no parto amargo da letra
sem ajuda de obstetra.
Vamos fundar, sim senhores,
novo banco – quem diria! –
um banco imune a assaltos
com dividendos mais altos:
é o Banco da Poesia!

Hoje, 12 de março de 2014, completamos cinco anos. Vamos comemorá-los com mais poesia — do grego ποίησις ‘criação’ < ποιέω ‘criar’ — essa quintessenciada linguagem humana que transcende a palavra, embora dela se utilize como chave de comunicação. Linguagem que faz do poeta um verdadeiro alquimista da palavra, com a união de sentimentos refinados, buscas psicológicas, construções estéticas, harmonias e ritmos, transformações metafóricas das coisas reais, interpretações estéticas da vida que levamos neste grãozinho de poeira cósmica conhecido como Terra. Mas a poesia transcende a própria literatura e se integra a outras visões artísticas, a todas as artes. E vai além delas, pois nossas percepções podem enxergar poesia num simples raio de luz, nos reflexos da água, no cantar dos pássaros, no perfume de uma flor.

Somos pequeninos, no mundo eletrônico. Talvez pela própria escolha de nosso caminho, pouco trilhado em nossa sociedade. Mas podemos festejar nossa satisfação com o resultado das estatísticas de visualização de nosso blog, sempre ampliadas a cada ano que passa. Até o dia de hoje, fomos visitados 296.420 vezes, com uma constância de visualizações que conserva uma média de mais de 160 visitantes diários. Se o leitor observar o mapa à direita da página, verá que, em qualquer momento, há pontos amarelos no Brasil e fora dele, o que significa visualizações recentes. Aumentamos também nosso número de seguidores espontâneos, sem recorrer a qualquer ferramenta de conquista de novos engajamentos.

E por aí vamos. Um banco nada fácil de administrar, mas agradabilíssimo de conservar. Embora tenha apenas um funcionário, que se traveste de presidente, gerente, caixa, operadores, seguranças, office-boys etc. O que compensa é que temos selecionados correntistas para manter a riqueza de nosso cofre.

Parabéns para nós e, principalmente, para nossos correntistas, que ajudam a manter viva esta ideia.

Uma incelença entrou no Paraíso

Humor no céu

Walter Bezerra / de Alagoas

No translado para o céu, Chico Anysio ficou na dúvida sobre com qual caricatura iria se apresentar no paraíso. Silva, Popó, Coalhada, Haroldo, Salomé, Azambuja, Alberto Roberto, Painho, Bento Carreiro, Tavares, Gaspar, Canavieira, Quem, Quem… ou Justo Veríssimo, representante legítimo da corruptocracia?

Chico levava na bagagem a criação de 209 personagens memoráveis, entre os por ele interpretados e os que ele criou para outros humoristas, como o Seu Peru (Orlando Drummond), e o Seu Boneco (Lug de Paula). Com passagem pelo jornalismo esportivo, rádio, TV, teatro, literatura, música, dublagem, imitação e pintura, Chico fora, ainda em vida, idolatrado como ídolo, sábio, gênio, mito, fenômeno. Sociólogo do riso, iconoclasta, Deus do humor, Chico, porém, não se gabava com essas alusões ou – como diria ele – bajulações. Dizia-se simplesmente ”humorista do povo”.

Chegando ao céu, vestindo a camisa do Vasco, ele ouviu um background de risadas de auditório. Dava para distinguir inequivocamente a gargalhada inconfundível de boas-vindas de Nair Belo. Chico deparou logo com uma galera da pesada, donos também de um humor refinado e inteligente, segurando uma faixa: “Bem-vindo, Chico Total!” Era a bancada brasileira do riso no Planalto Celestial: Mazzaropi, José Vasconcelos, Ivon Curi, Costinha, Paulo Gracindo, Walter D’Ávila, Renato Corte Real, Grande Otelo, Golias, Mussum, Zacarias, Brandão Filho, Zezé Macedo, Rony Cócegas e Francisco Milani, liderados pela lendária Dercy Gonçalves, que, de cara, à sua maneira escrachada, quis confortar:

— Fica triste não, Pantaleão, a vida aqui não tem mentiras, não é lá muito engraçada, mas é melhor do que aquela porra lá embaixo!

Nesse ínterim, Chico ouve passadas vindo em sua direção. De súbito, à sua frente, surge um personagem histórico, dentro de uma túnica marrom. Era o seu xará Francisco, o de Assis, figura religiosa à esquerda do salafrário Tim Tones, ao qual Chico dedicara fiel adoração profissional. Devoto e seguidor de carteirinha do Protetor dos Animais, Chico acenou ajoelhar-se, no que foi repreendido:

— Não, não precisas, irmão. Somos da mesma estatura espiritual e intelectual. Vimos das mesmas origens e comungamos lutas, buscas e objetivos parecidos. Eu por minha opção pelos pobres e oprimidos e pela minha abnegação material. Tu pela generosidade humana e pela postura crítica da tua verve criativa e irreverente. Vamos por ali, ao encontro do Onisciente. Ele te espera para uma conversa informal. “É vapt-vupt!”- disse São Francisco, sorridente, ressuscitando a frase do velho Professor Raimundo, enquanto apontava para o Portão da Eternidade.

Chico apressou os passos e entrou no Recinto dos Justos. Deus, de cima de sua onisciência, saudou o humorista já com uma lisonja desnorteante, dessas que massageiam os mais despretensiosos e acanhados egos:

— É, Anysio, o Jô Soares tem razão. Tu realmente desmentes a frase “ninguém é insubstituível”.

— “Nem tanto, Mestre!” – rebateu Chico, acuado, meio sem graça, citando um bordão de um dos tipos da Escolinha.

— Verdade! Tu só não foste considerado o melhor e o mais conhecido humorista do mundo porque eu não te batizei com uma língua inglesa. Se tu tiveste nascido norte-americano ou inglês, com certeza tua fama teria corrido o mundo. E pensar que tu querias ser jogador de futebol! Isso não aconteceu porque assim estava escrito. Seria uma perda para a infinita comédia humana. Não tinhas vocação para Pelé. Mas, no humor, foste, sim, um craque. “Queria ter um filho assim!” – revelou Deus, com soberba paternal.

— Mas, Divino, por que me deletasse? Eu não estava a fim de embarcar agora não. Tinha umas coisinhas ainda a fazer. Quando o Senhor convocou a Darcyr, ela tinha 1001 anos. Por que não me permitisse a mesma data de validade, pelo menos uns 95, 98 anos? – reclamou Chico.

— Cada caso é um caso, “meu garoto”! Aliás, essa conversa eu já tive com o Calcanhar de Ouro e com O Anjo das Pernas Tortas, entre outros. É aquela história da livre escolha. Eles escolheram o álcool; tu, o cigarro. Lembras que disseste que fumar foi o teu grande arrependimento?! “Saúde é o que interessa; o resto não tem pressa. Iiiissa!” “Bateu pra tu!?” – explanou Deus, homenageando o recém-chegado com bordões de sua intimidade.

O cearense de Maranguape meteu o rabo entre as pernas e se rendeu:

— É… fumar, sinceramente, foi…

— “Não precisa explicar. Eu só queria entender!” – satirizou Deus, invocando a frase predileta do Sócrates, personagem do Planeta dos Macacos e também da Escolinha.

— Digníssimo, e a corrupção, as tramóias, os escândalos?  Os pobres lá embaixo… como ficam? – quis saber Chico, preocupado.

Deus, em conspiração, piscou o olho para São Francisco, que ouvia o diálogo desde o início, e alfinetou, em alto e bom som:

— “Tenho horror a pobre! Quero que pobre se exploda!” Ser dono do mundo não é nada engraçado e nem gratificante. Eu faço tudo por aquele povo lá de baixo. Apesar de sua insistente gula material, suas babaquices egocêntricas, suas lambanças judiciais e trapaças políticas, dou oportunidades para arrependimentos e correções. Através de poucos homens probos, faço refletir, oriento, aponto os caminhos a trilhar. Vez em quando, só para alertar que ainda estou vivo, faço alguns milagrezinhos. Faço tudo que posso e até o que não devo. E só exijo uma bagatela: a FÉ! “E o salário, ó!”

Depois do desabafo irado, Deus saiu à francesa e às gargalhadas. Diante daquela cena ímpar, Francisco, seguindo o estilo do Eterno, despediu-se, espirituoso:

— “Beijinho, beijinho, pau, pau!”

Minutos depois, Rogério Cardoso – esperançoso – aproximou-se e murmurou para Chico:

— E aí, Amado Mestre, a Escolinha vai rolar aqui ma cobertura? Chico evocou um dos seus personagens preferidos e, amuado, prometeu:

—  “Bento Carneiro, vampiro brasileiro… Deixa eles, minha vingança será malígrina!”

Parabéns pra você, Juan Gris!

23 de março de 1887: nasce um grande artista

Juan Gris era o nome artístico do pintor e escultor espanhol José Victoriano (Carmelo Carlos) González-Pérez (Madri, 23 de março de 1887 – Boulogne-sur-Seine, Paris, 11 de maio  de 1927. Ele viveu e trabalhou na França na maior parte de sua vida, convivendo com os grandes da época, conectado com o novo movimento artístico que então surgia, o Cubismo.  Ainda como José Gonzales, Gris estudou, em 1902 e durante dois anos, na Escola de Artes e Ofícios de Madri e, logo após, teve aulas de pintura com o artista acadêmico José Maria Carbonero.

Passou a viver em Paris em 1906, onde se tornou amigo de outros pintores, como Henri Matisse, Georges Braque, Fernand Léger e Amedeo Modigliani, que pintou seu retrato em 1915. Mas foi seu encontro com outro artista e patrício, Pablo Picasso, que deu a Gris nova rota para sua arte. Também estreitou amizades com outros intelectuais, entre os quais os poetas Guillaume Apollinaire, André Salmon e Max Jacob. Para viver, continuou a fazer o que já havia feito na Espanha: colaborar,  como ilustrador, com jornais e revista. Mas seu casamento com a arte o dirigiu a desenvolver um estilo pessoal na nova escola cubista, da qual Picasso seria o líder. Seu retrato de Picasso, pintado em 1912 e que apresentamos aqui, tornou-se exemplo do cubismo inicial, mais do que as primeiras obras de outros importantes artistas do movimento, como Braque e o próprio Picasso.

Juan Gris morreu em 1927, com apenas 40 anos e saúde debilitada. Deixou sua mulher, Josette, e um filho, Georges. Sua obra não se restringiu às artes plásticas: deixou também escritos trabalhos sobre teorias estéticas, por volta de 1924 e 1925, entre os quais se sobressai o que entregou à Sorbonne, com o título Des possibilités de la peinture.

Para quem quiser saber mais sobre a vida e obra do aniversariante, vai aqui o endereço do Web Museum, de Paris, e da página do Google com boas informações. (C. de A.)

Juan Gris – Retrato de Picasso – óleo sobre tela, 93×74 cm – Instituto de Arte de Chicago, Illinois, EUA

Um poeta andino mais alto que os Andes

Os 120 anos de Vallejo

No último dia 16 de março completaram-se os 120 anos de nascimento do poeta peruano César Abraham Vallejo Mendoza (Santiago de Chuco, 1892 – Paris, 1938). O escritor uruguaio Mario Benedetti o considerava o mais influente poeta das letras hispano-americanas do mundo moderno e o chileno Pablo Neruda dizia que Vallejo era melhor poeta do que ele próprio. De vida atribulada, pendente entre a religiosidade com que foi criado em uma família pobre e a rebeldia política que o conduzia a denunciar o sofrimento dos mais pobres, César Vallejo  viveu seus 46 anos com a alma amargurada, sentindo-se desamparado a ponto de dizer que havia nascido em um dia em que Deus estava enfermo. Mas os grandes poetas são grandes até mesmo na tristeza e na desesperança. Foi o que percebeu o nosso poeta Manoel de Andrade no livro que escreve sobre suas andanças pela América Latina, ao dedicar um sólido capítulo sobre o poeta peruano. Vamos publicá-lo em homenagem ao aniversariante – por seu nascimento de março e por sua morte em 15  abril próximo, quando somar-se-ão  46 anos desde sua partida. Dada a riqueza de detalhes que compõe a vida de Vallejo, o texto é extenso, mas vale a pena registrá-lo, em face do cuidadoso e sensível tratamento dado por Manoel de Andrade. (C. de A.)

CESAR VALLEJO: Um coração dividido (*)

Manoel de Andrade

Eu conhecia apenas alguns poemas esparsos de Cesar Vallejo quando encontrei, entre os livros de Francisco Macias, – meu anfitrião em Lima em fins de 69 – o poemário Trilce.

Publicada em 1922, sob a influência das vanguardas europeias e rompendo com a tradição poética peruana, a obra lembrava-me a renovação da linguagem e a liberdade na criação poética apresentadas pelo movimento modernista brasileiro de 22, que também rompera com os cânones parnasianos e românticos da poesia brasileira, influenciada pelos ismos europeus e sobretudo pelo Futurismo de Maninetti.

Como nunca aceitei o radical rompimento com os ideais estéticos do século XIX, proposto pela Semana da Arte Moderna de São Paulo – que foi um modernismo meramente paulista, marcado pela irreverência e o ufanismo, ideologicamente reacionário e com uma insensata aversão pelo lirismo –  não  me identifiquei com o discurso poético do segundo livro de Vallejo. Trilce surgiu numa época em que, na literatura hispânica, estava em moda a poesia “experimental” como uma reação em marcha contra o modernismo e foi  um desesperado manifesto de liberdade do poeta, expresso por sua íntima intuição, mas marcado então por uma liberdade literária ainda sem norte. “Quero ser livre  – declara, na época, em carta, a seu amigo Antenor Orrego  – ainda que a troco de todos os sacrifícios. Por ser livre, me sinto ocasionalmente rodeado de espantoso  ridículo  com o ar de um menino que leva a colher às narinas…1 O resultado desse íntimo desencontro é uma atitude poética audaciosa e original, mas expresso em versos sem lógica, frases  fragmentadas, espaços em branco, letras invertidas, neologismos, imagens herméticas, numa linguagem extraída do caos e do absurdo que maculam a  imagem da poesia.

Como a postura de vanguarda, em Trilce, pertencia a uma fase da linguagem poética que eu já havia superado, – sobretudo pelo engajamento político da minha poesia na década de 60, no Paraná – mas sabendo da consagração mundial da poesia de Vallejo e das providências que, naqueles anos, tomava a intelectualidade peruana, para consagrar a imagem do seu maior poeta – desprezado e autodesterrado para sempre da pátria, quarenta anos antes –, me isolei por uma semana, na Biblioteca Nacional do Peru, para ler a tão comentada primeira edição nacional de sua obra poética completa,  lançada no país, no ano anterior pelo editor Francisco Moncloa. (2)

Excetuando-se quatro poemas, toda a obra poética de Vallejo, escrita depois de Trilce, somente foi publicada depois de sua morte. Contudo, seu livro Poemas Humanos, última fase de sua produção poética, continuaria marcado pelo binômio metafísico do tempo e da morte, ante a ironia e a orfandade do homem diante do destino, mas agora enriquecido pelo comprometimento político, pelo seu despojamento social e solidário com o ser humano onde sua poesia conquista o merecido reconhecimento mundial e a cidadania da universalidade. Percebe-se claramente nessa obra o resgate poético do vazio com que ele próprio declarou ter escrito Trilce: “ O livro nasceu no maior vazio” – escreveu ao amigo Antenor Orrego, logo após seu lançamento –“Sou responsável por ele. Assumo toda a responsabilidade de sua estética”.3 Essa discreta “mea culpa” prematura de Vallejo será reassumida abertamente, alguns anos depois em Paris, quando ele renega Trilce depois que adere ao marxismo e ao ativismo ideológico.

1. Los heraldos negros

Mas além da grandeza e da qualidade social dos Poemas Humanos, tocou-me sobretudo, o lirismo de seu primeiro livro, Los Heraldos Negros, de 1918, obra com a qual inaugurou uma nova fase da poesia peruana. O primeiro poema, que dá o nome ao livro, aqui apresentado na excelente tradução de Felipe José Lindoso4, nos leva a profundas reflexões sobre o significado da vida, com seus golpes, poucos, mas cruéis, que nos são enviados como os arautos da morte:

Os arautos negros

Há golpes na vida, tão fortes… Não sei!
Golpes como o ódio de Deus; como se diante deles
A ressaca de todo o sofrido
Encharcasse a alma… Não sei!
São poucos;  mas são… Abrem valas escuras
 no rosto mais duro e no lombo mais forte.
Serão talvez os potros de bárbaros átilas;
ou os arautos negros que nos manda a morte.
São as quedas profundas dos Cristos da alma,
de alguma fé adorável que o Destino blasfema.
Esses golpes sangrentos são as crepitações
de algum pão que nos queima na  porta do forno.
E o homem… Pobre… pobre! Volta os olhos, como
quando por cima do ombro nos chama uma palmada;
volta os olhos loucos, e todo o vivido
se empoça, como charco de culpa, na mirada.
Há golpes na vida, tão fortes… Não sei!”5

Todo o simbolismo que permeia Los Heraldos Negros ultrapassa esse estilo, meramente literário, para identificar-se com a própria simbologia da vida no seu cotidiano como um todo e a uma particular expressão nostálgica das imagens antropomórficas da cultura andina.  Talvez, por isso mesmo e por sua origem e aparência de mestiço, sua poesia não foi aceita, na época, pela “aristocrática” intelectualidade limenha. Na atualidade, Vallejo é a glória da poesia peruana, mas Mariátegui colocou abertamente, já em 1928, o dedo nessa preconceituosa  ferida cultural ao afirmar que  “Essa arte assinala o nascimento de uma nova sensibilidade. É uma arte nova, uma arte rebelde, que quebra com a tradição cortesã de uma literatura de bufões e lacaios. Essa linguagem é a de um poeta e de um homem. O grande poeta de Los heraldos negros e de Trilce  –  esse grande poeta que passou ignorado e desconhecido pelas ruas de Lima tão propícias e subservientes aos louros dos jograis de feira  —  se apresenta, em sua arte, como um precursor do novo espírito, da nova consciência”. (6)

2. O indigenismo de Vallejo

Vallejo foi amigo do grande ensaísta peruano José Carlos Mariátegui, com quem conviveu e depois manteve o mais estreito contato do exterior publicando seus textos na Revista Amauta fundada em Lima no ano de 1926, por Mariátegui,  levantando com ele as bandeiras do indigenismo andino – empunhadas primeiramente pelo pensamento lúcido e acusador de Manuel Gonzáles Prada, “descobridor” do índio peruano,7 e, depois, respectivamente,  por Ciro Alegria, José Maria Arguedas e  Manuel Scorza   –  e referindo-se poeticamente ao incário em sua histórica grandeza, quando o perfil do Império do Sol se justapunha á silhueta litorânea e a paisagem andina do continente americano do sul da Colômbia até o norte do Chile. “Consiste o indigenismo de Cesar Vallejo em mostrar seus antepassados não como débeis criaturas, mas sim pelo contrário” —  é o que afirma o escritor colombiano Miguel Manrique, mostrando a clara disposição de Vallejo para o melhor indigenismo, não somente na poesia, mas também como prosador em sua novela Hacia el Reino de los Sciris: Ressaltando a pompa de uma civilização na plenitude de sua glória e não na apresentação melindrosa da arquisabida má história da conquista. O que  melhor,  para alguém que se considera membro ou natural de uma coletividade, que representá-la com o brilho que Cesar Vallejo faz com esta curta porém imensa novela. Muito melhor do que se o escritor se colocasse na chorosa  tarefa de encenar a captura de Atahualpa e as exigências para o seu resgate. Vallejo se converte assim em um Homero quíchua que tece com luminosidade o esplendor de sua civilização, do outro costado do seu ser. Os dois sangues nunca o abandonarão nem muito menos o trairão, um em benefício covarde do outro. Vallejo soube toda a vida ser índio e espanhol, desfraldando uma mestiçagem fidalga, fiel descendente do quixotesco e do quíchua”.8

E agora, é novamente Mariáteghi quem declara: “Vallejo é o poeta de uma estirpe, de uma raça. Em Vallejo se encontra, pela primeira vez em nossa literatura, sentimento indígena virginalmente expresso.9 Contudo é um pouco diferente a opinião contemporânea do poeta e ensaísta peruano Américo Ferrari — talvez o melhor conhecedor da poesia de Vallejo  –  quando se refere a’Os Heraldos Negros: “O tema indigenista e telúrico é, de todos os modos, n’Os Heraldos Negros, secundário: a vocação do verdadeiro Vallejo é ruminar obsessões mais que descrever paisagens ou cantar a raça.” E contudo é o mesmo Ferrari quem escreve anteriormente: (…)“E, não obstante, existe algo mais: sob o espartilho das novas formas palpita a emoção e a nostalgia, o apego à terra andina de um homem que já antes de sair do Peru, na cidade costeira de Trujillo primeiro, em Lima depois, se sentia desterrado: desterrado do lar, que se confunde com o lugar onde nasceu, que se confunde com a pátria. A pátria é o entorno andino, com seu povoador, o camponês índio e serrano. Mais tarde, em Paris, o índio, essencializado e agigantado pela distância e a nostalgia, será protótipo de humanidade: “Índio depois de homem e antes dele”; e a serra peruana, símbolo de pátria universal: “Serra do meu Peru, Peru do mundo/ e Peru ao pé do orbe; eu concordo!”10

O fato é que sua condição de mestiço está sempre presente na sua assumida postura quíchua e castelhana, índia e espanhola, marcada pelo seu amor ao Peru e à Espanha, pela sua vida quixotesca e sempre iluminada pela luz e o calor de Inti, o deus Sol dos seus antepassados. “Había en Vallejo esa ‘inocencia candorosa’ que ha visto bien Larrea, pero oculta tras una máscara algo dura: la de su ‘pathos’ indígena, difícil en el primer momento de traspasar, llegando al transfondo puro, más allá del mestizaje sufrido. ‘Mineraloide’, incaico, andino  – se ha dicho.”11

Há também, na fase inicial da poesia de Vallejo, uma contraditória religiosidade e uma imagem de Deus ora evocada com amargura e hostilidade (“golpes como o ódio de Deus”) ora com o sentimento de piedade pelos homens:12

Sinto Deus que caminha
tão em mim, com a tarde e com o mar.
Com ele vamos juntos. Anoitece
Como ele anoitecemos. Orfandade…
 
Mas eu sinto Deus. E até parece
que ele me dita nem sei que boa cor.
Como um hospitaleiro, e bom e triste;
languesce um doce desdém  de apaixonado:
deve doer-te muito o coração.
 
Oh, Deus meu, só agora a ti chego
hoje que amo tanto esta tarde; hoje
que na balança falsa de uns seios
olho e choro uma frágil Criação.
 
E tu, o que chorarás… tu, apaixonado
de tão enorme seio girador…
Eu te consagro Deus, porque amas tanto;
porque jamais sorris; porque sempre
deve doer-te muito o coração.13

3. A pobreza, a indiferença e os caminhos do mundo

Nascido em 1892 em Santiago de Chuco, numa região montanhosa a quinhentos quilômetros ao norte de Lima, décimo primeiro filho de uma família de origem indígena e espanhola, Cesar Abraham Vallejo Mendoza sempre se identificou com os pobres e desamparados do mundo porque essa foi a imagem que trouxe da infância e adolescência marcada por dificuldades familiares próximas da miséria.. Viveu sua juventude com a intelectualidade de Trujillo em cuja Universidade estudou e onde publicou seus primeiros poemas. Foi lá que  entrou em contato com a poesia de Juan Ramón Jimenez, Miguel de Unamuno, Rubén Darío, Walt Whitman, Julio Herrera y Reissig e Chocano.14

Chega a Lima em 1917 e no ano seguinte publica Los Heraldos Negros, onde transparece a influência e sua admiração por Darío, a afinidade com Herrera, onde usa e abusa do valor dos símbolos. Talvez tenha sido a indiferença com que os limenhos trataram  a poesia de seus dois primeiros livros e sua injusta prisão de quatro meses, em Trujillo, por sua suposta participação em um incidente público ao visitar sua terra natal em 1920,  que o levou em 1923, a deixar o Peru para sempre, indo viver em Paris onde passará fome, dormirá algumas noites ao relento e depois sobrevive da atividade gráfica, jornalística, de traduções e docência. É ali que conhece os grandes poetas e pintores da época como Vicente Huidobro, Pablo Neruda, Juan Gris, Pablo Picasso, Antonin Artaut, Jean Cocteau, Tristan Tzara e o poeta espanhol Juan Larrea, que seria seu grande amigo, futuro biógrafo e com quem funda, em 1926, a Revista Favorables Paris Poema.  Em 1928 viaja a Moscou, onde conhece Maiakovski. Retorna a Paris, onde abre a  primeira célula parisiense do Partido Socialista do Peru e no ano seguinte, em companhia de Georgette Marie Philippart Travers – com quem passa a viver – viaja novamente à Rússia, retornando pela Hungria, Áustria, Tchecoslováquia, Polônia, Alemanha e Itália.

Em 1930 chega à Espanha para o lançamento da segunda edição de Trilce, voltando em seguida a Paris de onde é expulso por propagar o comunismo. Em 1931 está novamente na Espanha onde testemunha a queda da monarquia e a ascensão republicana. Relaciona-se com o filósofo Miguel de Unamuno, com António Machado e com os poetas mais jovens, da chamada “geração de 27”, como Federico Garcia Lorca e Rafael Alberti, Jorge Guillen, Miguel Hernandez, Luis Cernuda, Dámaso Alonso ePedro Salinas, entre outros e quase todos vítima da Guerra Civil Espanhola. Neste mesmo ano publica suas crônicas e ensaios sobre a Rusia en 1931 e Reflexiones al pie del Kremlin, título cujo sucesso de vendas levou os editores espanhóis a publicar três edições em quatro meses. Ainda em 1931, atendendo a uma proposta editorial de uma novela proletária, escreve em três semanas e publica em Madri o livro El tungsteno, onde recorda seu tempo de adolescente e o contacto com trabalhadores da Empresa Minimo Society, no assentamento mineiro de Quiruvilca, perto de sua cidade natal. Denuncia as injustiças por que passam os mineiros, acusando os “gringos” e autoridades peruanas que defendem os interesses dos exploradores norte-americanos em detrimento dos abusos contra os mineiros e, sobretudo, pela exploração de uma coletividade indígena da etnia sora, submetida pelos atos mais cruéis e iníquos de arbitrariedade e cuja revolta é sufocada com o sangue dos caídos.

Em 1931 realiza sua última viagem a Moscou para participar do Congresso Internacional de Escritores Solidários com o Regime Soviético, de onde retorna a Madrid e encontra as portas editoriais fechadas a seus novos livros em razão do caráter marxista e revolucionário de suas obras. Recomeça a escrever poesia cujos versos serão publicados, postumamente, com o título de Poemas Humanos.

Em 1932 filia-se ao Partido Comunista Espanhol e regressa a Paris onde vive na clandestinidade, organizando, posteriormente, com Neruda, a coleta de fundos para a causa republicana na guerra civil espanhola. Em 1937 volta pela última vez à Espanha para participar do Congresso Internacional de Escritores Antifascistas, e talvez porque sua precária saúde o impedisse de empunhar um fuzil para defendê-la, escreve seu grande poema político: España, aparta de mí este cáliz, que deu título ao livro de quinze poemas, publicado postumamente, em 1939, como um verdadeiro testamento poético, por sua viúva, Georgette Vallejo.

4. Cesar Vallejo, um coração dividido.

Vallejo foi homem repartido. Filho da consanguinidade indígena e espanhola, sentiu seu coração dividir-se pelos caminhos da vida. Primeiro sentiu sua alma partir-se, dolorosamente, entre a imagem querida da mãe e a imperecível saudade que chegou com sua morte, em 1918.  Repartiu-se entre o idílio e a separação da mulher que amou, num romance tormentoso e frustrado de sua juventude como professor em Lima. Sentiu sempre o coração dividido entre a pátria e o mundo e culturalmente entre o Peru e a Espanha.  Vallejo viveu dividido entre Paris e a sua crônica nostalgia da paisagem andina. Pablo Neruda, seu grande amigo, afirma que: “Vallejo era sério e puro. Morreu em Paris. Morreu no ar sujo de Paris, do rio sujo de onde tiraram tantos mortos. Vallejo morreu de fome e asfixia. Se o tivéssemos trazido para o Peru, se o tivéssemos feito respirar ar e terra peruana, talvez estivesse vivo e cantando.15

O poeta  transitou balizado pelas  ironias da vida, pelos golpes do destino, entre o desespero e a esperança, que atormentaram sua alma sobretudo depois dos quarenta anos, onde sua poesia mantém sempre aquela obscuridade tatuada pela dor dos homens, pela perplexidade ante o grande mistério da vida e o significado da morte: “Haver nascido para viver de nossa morte”, e assim sempre dividido entre o imenso vazio do mundo e seu sonho de plenitude espiritual e de uma eterna felicidade. “E se alguém fica perplexo ante esse universo de trevas, de limites, é sobretudo o próprio poeta que o revela em seu poema; (Panteón)  daí o acento de angústia que raramente abandona Vallejo; daí essas yuntas, essas parelhas de significações em conflito que não são nunca abolidas nem superadas: o todo – o nada, a alma – o corpo, o alto – o baixo, o nunca – o sempre, o tempo – a eternidade, a vida – a morte, Deus – nada”.16

Vallejo viveu repartido entre sua íntima plenitude, filosófica e poética, e sua fidelidade ao marxismo. Conforme carta datada em 29 de Janeiro de 1932 ao poeta e amigo Juan Larrea, Vallejo confessa: “Comparto a minha vida entre a inquietação política e social e a minha inquietação introspectiva e pessoal minha para dentro. Ou seja, O poeta sentia-se, pois, dividido, sem conseguir unificar as duas partes de que se sentia feito: uma de inquietação política e social, que o marxismo satisfazia; outra introspectiva e pessoal minha para dentro para a qual nunca encontrou resposta que o satisfizesse, nem mesmo a religião que desde os primeiros tempos pulsava no seu íntimo, sem que por isso possa entender-se a adesão a uma igreja. Essa angústia persistirá até a sua morte, não sem um vislumbre de esperança que o levará a ditar a sua mulher, poucos dias antes de morrer, estas palavras: Qualquer que seja a causa que tenha de defender perante Deus, para além da morte, tenho um defensor:Deus.”17

Vallejo, cuja poesia foi desprezada por seus contemporâneos, é tido hoje como o maior poeta peruano de todos os tempos e talvez a figura mais proeminente da poesia hispano-americana depois de Pablo Neruda, o qual declarou que a poesia de Vallejo era maior que sua própria poesia.  Foi um homem marcado por transes pedregosos, por uma infância de misérias e penitências, e sua pobreza o obrigou a abandonar, em 1910, o curso de Letras na Universidade de Trujillo – somente concluído em 1915 –  para dar aulas particulares e depois trabalhar na administração de uma fazenda açucareira no vale de Chicama, onde presencia o drama cruel e cotidiano da exploração do trabalho indígena. Ciro Alegria – que depois se tornaria um dos grandes romancistas peruanos – conta que foi aluno de Vallejo no Colégio San Juan, de Trujillo, e que (…) “De todo seu ser fluía uma grande tristeza. Nunca  vi um homem que parecesse mais triste. Sua dor era como  uma secreta e ostensível condição, que terminou por contagiar-me.(…)  Ainda que à primeira vista pudesse parecer tranquilo, havia algo profundamente desgarrado naquele homem que eu não entendi mas senti com toda minha desperta e alerta sensibilidade de menino.(…) Foi assim como encontrei a  César Vallejo e como o vi, como se fosse pela primeira vez. As palavras que dele ouvi sobre a Terra são também  as que mais  gravei na memória. O tempo haveria de revelar-me novos aspectos de sua pessoa, os longos silêncios em que caía, sua atitude de tristeza infindável…(…)”18

5. “O poeta dos vencidos”

Eu nasci num dia em que Deus estava enfermo”, afirma ele, reiteradamente, em seu poema Espergegia. E apesar de tudo, do sentimento pessimista pela sua dor e por compreender a imensa dor humana, do desamparo que colheu da vida, nunca permitiu que suas dolorosas experiências alterassem seu espírito solidário com os pobres, os injustiçados do mundo e apagassem de sua alma a fé revolucionária e a esperança com que o marxismo prometia a construção de uma sociedade mais justa para todos os homens.

É, por isso mesmo, chamado o poeta dos pobres, da dor dos homens, o “poeta dos vencidos” na ótica histórica de Eduardo Galeano, e esse é o retrato que está por trás dos 76 poemas que integram os seus Poemas Humanos, escritos entre 1931 e 1937, e publicados, postumamente, em Paris, em 1939. “Aí o poeta exprimiu o sofrimento próprio e dos outros, o absurdo da existência, o sentimento de culpa que sentia pelos direitos em que se baseia a sociedade que fazia parte, e revolta perante a injustiça que era gritante ao seu redor, o horror da guerra vista como conflito global, sem rosto, e como tragédia dos seus humildes protagonistas anônimos, as contradições de um ser tenso entre pontos opostos que não param de enfrentar-se, a esperança num mundo de compreensão entre os homens, que ele sabia ser uma utopia”19

O seu sentimento poético de solidariedade e de piedade pelos desamparados e humildes, cujos primeiros passos são dados n’Os Heraldos Negros, – como neste fragmento do poema El pan nuestro:

Todos meus ossos são alheios;
quem sabe os tenha roubado!
Dei-os a mim mesmo o que talvez estivesse
designado para outro;
e penso que, se não tivesse nascido,
outro pobre tomaria este café!
Sou um mau ladrão… Para onde irei?

E nesta hora fria, em que a terra
recende a pó humano e é tão triste,
quisera eu bater em todas as portas
e suplicar a não sei quem, perdão,
e fazer-lhe pedacinhos de pão fresco
aqui,  no forno do meu coração…!
(20)

– caminham ao longo de toda sua vida de escritor e chegam ainda mais comoventes em tantos de seus últimos poemas, como a perplexidade ante a dor humana em Los Nueve Monstruos e nestes versos fraternos de Traspié entre dos estrellas, ambos do livro Poemas Humanos:

Amado seja aquele que tem percevejos,
o que anda sob a chuva com sapatos furados
o que vela o cadáver de um pão com dois fósforos,
o que prende um dedo  numa porta,
o que não tem aniversário,
o que perdeu sua sombra num incêndio,
o animal, o que parece um papagaio,
o que parece um homem, o pobre rico,
o puro miserável, o pobre pobre!
21

6. O pressentimento e a morte

Na poesia dos últimos tempos de Vallejo, apesar do engajamento político dos seus  versos, persistirão sempre a sua obsessão pelo metafísico, que já existia com a feição religiosa  n’Os Heraldos Negros e ressurgindo somente em Espanha, aparta de mi este cáliz,  e nos Poemas Humanos onde o social e o metafísico se abraçam solidariamente nas emoções e sentimentos dos homens diante  da pobreza, do abandono, da injustiça e da morte. O tema da morte é uma constante na poesia de Vallejo e, à medida que o poeta dela se avizinha, vai registrando com seus versos sua despedida do mundo, como no poema París, octubre 1936:

De tudo isto sou o único que parte.
vou-me deste banco vou-me , de meus calções,
de minha  grande situação, de minhas ações,
de meu número fendido parte a parte,
de tudo isto sou o único que parte.

Dos Campos Elíseos ao dar volta
à estranha viela da Lua,
meu féretro se vai, parte de meu berço,
e, rodeada de gente, sozinha, solta,
minha semelhança humana dá a volta
e despacha suas sombras uma a uma.

E afasto-me de tudo, porque o todo
fica para ser restringido:
meu sapato, sua botoeira,  seu lodo
e até a dobra do  cotovelo
de minha própria camisa abotoada.
2

Há também um claro pressentimento de sua morte no poema Pedra negra sobre uma pedra branca. Não morreu na quinta, como supôs, mas no dia seguinte, numa sexta-feira chuvosa. Era outono em Lima, mas primavera em Paris. Este é um dos seus poemas mais conhecidos e dos mais reproduzidos nas antologias e seu estranho título deriva de uma tradição dos habitantes de Santiago de Chuco, sua cidade natal: o de colocar uma pedra negra sobre uma pedra branca para assinalar os enterros. Eis um fragmento:

Morrerei em Paris com aguaceiro
num dia do qual já tenho a lembrança.
Morrerei em Paris — de onde não saio —
talvez numa quinta, como hoje, de outono.(…)
23

No início de 1938 leciona Língua e Literatura em Paris, quando tem um forte esgotamento físico. Foi internado em 24 de março com sintomas indefinidos que o levaram a uma forte crise e à morte em 15 de abril daquele ano, numa sexta-feira chuvosa. O poeta e romancista francês, Louis Aragon, um dos iniciadores do surrealismo, fez o elogio fúnebre a Vallejo, cujos restos repousam no cemitério de Montparnasse com o epitáfio: “He nevado tanto, para que duermas”.

“Esta primavera da Europa está  crescendo sobre mais um, um inesquecível entre os mortos, nosso bem-admirado, nosso bem-querido César Vallejo. Por estes tempos de Paris, ele vivia com a janela aberta, e  sua pensativa cabeça de pedra peruana recolhia o rumor de França, do mundo, da Espanha… Velho combatente da esperança, velho querido. É possível? E que faremos neste mundo para sermos  dignos de tua silenciosa obra duradoura, do teu interno crescimento essencial? Já em teus últimos tempos, irmão, teu corpo, tua alma te pediam terra americana, mas a fogueira da Espanha te retinha na França, onde ninguém foi mais estrangeiro.Porque eras o espectro americano  – indo-americano como vós outros preferis dizer  – , um espectro de nossa martirizada América, um espectro maduro na liberdade e na paixão. Tinhas algo de mina, de socavão lunar, algo terrenamente profundo.

“Rendeu tributo a suas muitas fomes” –  me escreve Juan Larrea. Muitas fomes, parece mentira…  As muitas fomes, as muitas solidões, as muitas léguas de viagem, pensando nos homens, na injustiça sobre a terra, na covardia de meia humanidade. O caso da Espanha já te ia roendo a alma. Essa alma roída por teu próprio espírito, tão despojada, tão ferida por tua própria necessidade ascética. O caso da Espanha foi a verruma diária para a tua imensa virtude. Eras grande, Vallejo. Eras interior e grande, como um grande palácio de pedra subterrânea, com muito silêncio mineral, com muita essência de tempo e de espécie. E ali no fundo, o fogo implacável do espírito, brasa e cinza…   Salve, grande poeta, salve irmão!”24

Pablo Neruda25

________________

Notas e textos em espanhol

(*) Este artigo integra o texto de um livro que o autor está escrevendo sobre os anos que passou na  América Latina , nas décadas de 60/70.

1. O texto original em espanhol pode ser encontrado em: FERRARI, Américo. César Vallejo entre la angústia y la esperanza. In: FERRARI, Américo (int.). Cesar Vallejo: Obra poética completa. Madrid: Alianza ,1983, p. 20.

2. O reconhecimento literário de toda obra poética de Vallejo chegou, editorialmente, trinta anos atrasado em seu próprio país. A primeira edição de Poemas Humanos (1923-1938) foi publicada  por Editions des Press Modernes, Paris, 1939, um ano depois de sua morte.  Já na América do Sul, foi a editora argentina Losada que tomou a dianteira na publicação de toda a sua poesia, editando, em  1949, as Poesías Completas (1918-1938). Em 1959, Los Heraldos Negros e Poemas Humanos foram publicados em Lima, em edições separadas, pela Editora Peru Nuevo. Contudo a publicação de  Cesar Vallejo, Obra poética completa, somente foi lançada no Peru em 1968, pelo editor Francisco Moncloa. Essa edição tornou-se clássica, servindo de base para muitas outras edições latino-americanas,  espanholas e portuguesas. Além do excelente prólogo de  Américo Ferrari, a obra, com 510 páginas, foi supervisionada por Georgette Vallejo, esposa do poeta, e sua originalidade está em apresentar  os fac-smiles dos poemas póstumos, quase todos datilografados e corrigidos pelo próprio Vallejo. Em 1970, a Casa das América editou em Havana Cesar Vallejo, obra poética completa, com prólogo do poeta cubano Roberto Fernández Retamar, reproduzindo o título e o texto da edição Moncloa.

3. FERRARI, Américo. Obra citada.

 4. MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. Tradução Felipe José Lindoso. São Paulo: Clacso. 2008. p. 291/292.

5.  Hay golpes en la vida, tan fuertes… Yo no sé!/ Golpes como del odio de Dios; como si ante ellos,/ la resaca de todo lo sufrido/ se empozara en el alma… Yo no sé./ Son pocos; pero son… Abren zanjas oscuras/ en el rostro más fiero y en el lomo más fuerte./ Serán talvez los potros de bárbaros atilas;/ o los heraldos negros que nos manda la Muerte./ Son las caídas hondas de los Cristos del alma,/ de alguna fe adorable que el Destino blasfema./ Esos golpes sangrientos son las crepitaciones/ de algún pan que en la puerta del horno se nos quema./ Y el hombre… Pobre… pobre! Vuelve los ojos, como/ cuando por sobre el hombro nos llama una palmada;/ vuelve los ojos locos, y todo lo vivido/ se empoza, como un charco de culpa, en la mirada./ Hay golpes em la vida, tan fuertes… Yo no sé! (N.A.)

 6.  MARIÁTEGUI, José Carlos. Obra citada, p. 299.

7. A importância do indigenismo, no Peru, surge somente com as obras de Gonzalo Prada, estabelecendo, entre 1900 e 1930, o início da grande  polémica entre hispanismo e indigenismo que dominariam todo o pensamento social do Peru durante o século XX e marcam os conflitos culturais até os dias de hoje no país, cujas negociações têm buscado, sem sucesso, a igualdade cultural sem desconsiderar as diferenças.

8. MANRIQUE, Miguel. El hombre vallejiano. Cuadernos Hispanoamericanos, Madrid. v. I. n. 456/457, junio/julio 1988, p.531.

 9. MARIÁTEGUI, José Carlos. Op. cit., p. 291.

 10. FERRARI, Américo. Op. cit., p. 12.

 11. TORRE, Guillermo de. Tres conceptos de la literatura Hispanoamericana. Buenos Aires, Losada, 1963, p., 164.

 12. MARIÁTEGUI, José Carlos. Op. cit., p.296.

 13. Siento a Dios que camina/ tan  en mí, con la tarde y con el mar./  Con  él nos vamos juntos. Anochece./ con él anochecemos. Orfandad…/ Pero yo siento a Dios. Y hasta parece/ que él me dicta no sé qué buen color./ Como un hospitalario, es bueno y triste;/ mustia un dulce desdén de enamorado:/ debe dolerle mucho el corazón./ Oh, Dios mío, recién a ti me llego,/ hoy que amo tanto en esta tarde; hoy/  que en la falsa balanza de unos  senos,/ miro y lloro una frágil Creación./ Y tú, cuál llorarás… tú, enamorado/ de tanto enorme seno girador…/  Yo te consagro Dios, porque amas tanto;/ porque jamás sonríes; porque siempre/  debe dolerte mucho el corazón. (N.A.)

 14. José Santos Chocano, destacado poeta modernista peruano nascido em 1875, em Lima, também conhecido pelo pseudônimo de O Cantor da América. Foi uma estranha figura literária.  Polêmico e aventureiro, foi secretário de Pancho Villa, escapou por pouco do fuzilamento na Guatemala, em 1920, e matou em Lima, num duelo o jovem escritor Edwim Elmore. Morreu em 1934 em Santiago, assassinado por  um demente que acreditava ter Chocano  o mapa de um tesouro.

 15. NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. São Paulo: Difel, 1979, p.285.

 16. FERRARI, Américo. Op. cit., p.39.

 17. VALLEJO, César. Antologia poética. Tradução, seleção, prólogo e notas de José Bento. Lisboa: Relógio D’Água, 1992, p.19/20.

 18. ALEGRÍA, Ciro. El César Vallejo que yo conocí. Cuadernos Hispanoamericanos. México, ano III, vol. XVIII, n. 6, nov/dez 1944.

 19. VALLEJO, César. Op. cit., p 18.

 20. Todos mis huesos son ajenos/ yo talvez los robé!/ Yo vine a darme lo que acaso estuvo/ asignado para otro;/ y pienso que, si no hubiera nacido,/ otro pobre tomara este café!/ Yo soy un mal ladrón… A dónde iré!/ Y en esta hora fría, en que la tierra/ trasciende a polvo humano y es tan triste,/ quisiera yo tocar todas las puertas,/ y suplicar a no sé quién, perdón,/ y hacerle pedacitos de pan fresco/ aquí, en el horno de mi corazón…! (Tradução e nota do autor)

 21. ¡Amado sea aquel que tiene chinches,/   el que lleva zapato roto bajo la lluvia,/el que vela el cadáver de un pan con dos cerillas,/el que se coge un dedo en una puerta,/ el que no tiene cumpleaños,/ el que perdió su sombra en un incendio,/el animal, el que parece un loro, el que parece un hombre, el pobre rico,/ el puro miserable, el pobre pobre!  (Tradução e nota do autor)

 22. De todo esto yo soy el único que parte./ De este banco me voy, de mis calzones, de mi gran situación, de mis acciones,/ de mi número hendido parte a parte,/ de todo esto yo soy el único que parte./De los Campos Elíseos al dar vuelta/ la extraña callejuela de la luna,/ mi defunción se va, parte de mi cuna,/ y, rodeada de gente, sola, suelta,/ mi semejanza humana dase vuelta/ y despacha sus sombras una a una./ Y me alejo de todo, porque todo/ se queda para hacer la coartada:/ mi zapato, su ojal, también su lodo/ y hasta el doblez del codo/ de mi propia camisa abotonada.(Tradução e nota do autor)

 23. Me moriré en París con aguacero,/ un día del cual tengo ya el recuerdo./ Me moriré en París —y no me corro— / tal vez un jueves, como es hoy, de otoño.(Tradução e nota  do autor)

 24. NERUDA, Pablo. Para nascer nasci. São Paulo: Difel, 1979, p.66.

 25.  Este texto foi escrito quando Cesar Vallejo morreu e posteriormente publicado, em Santiago do Chile, pela revista Aurora, em 1° de agosto de 1938.

Cine Teatro Ouro Verde vive a sua maior tragedia

O fogo destrói o Cine Teatro Ouro Verde

A tragédia em dois atos

Se o destino do café é ser torrado, o mesmo não deveria ter ocorrido com o cinema histórico de Londrina que homenageou os bons tempos em que a coffea arabica enriqueceu o Norte do Paraná. O café era, sem dúvida alguma, o ouro verde e não foi por acaso que o moderno cinema projetado pelo arquiteto curitibano João Batista Vilanova Artigas, no final da década de 40 e inaugurado em 1952, recebeu o suntuoso nome: Cine Ouro Verde, que por mais de vinte anos orgulhou a cidade. Era um dos arrojados projetos de Vilanova Artigas, junto ao da Estação Rodoviária, do Fórum e do Edifício Autolon, para os quais ele contou com a parceira do arquiteto Carlos Castaldi.  Já contei, aqui, a história do tombamento da Estação Rodoviária, hoje Museu de Arte de Londrina.  Mas o incêndio que devorou o Cine Teatro Universitário Ouro Verde me chocou, pois também participei do episódio que o salvou, quando ele estava na fase final da venda para uma instituição bancária.

Antiga foto de Londriuna, onde aparecem, à esquerda, o Cine Ouro Verde e, à direita, o Edifício Autolon, projetos de Vilanova Artigas

No final da década de 70 eu trabalhava com Ney Braga no Ministério da Educação. Em uma visita que fiz a Londrina, conversei com Walmor Macarini, então redator-chefe da Folha de Londrina, que me contou sobre a venda do Cine Ouro Verde, propriedade da família de Celso Garcia Cid, de José Garcia Molina, seu sócio na Viação Garcia, de Jordão Santoro e Ângelo Pezarini. O prédio, que não comportava mais a atividade cinematográfica – como ocorreu com a quase totalidade dos cinemas brasileiros, apagados pelas salas de exibição menores dos shopping centers – estava em negociação com um banco, o que significaria o fim do espaço cultural e, possivelmente, a sua derrubada em favor de um edifício mais adequado aos novos negócios. Tanto Walmor quanto eu, evidentemente, nos preocupávamos com o destino do Cine Ouro Verde, um marco da história londrinense e da arquitetura brasileira, inaugurado em 1952, com projeto de  Vilanova Artigas, também autor de outros projetos na cidade, inclusive a estação rodoviária, igualmente inaugurada em 52 e que, já no final da década de 60, se mostrava pequena demais para  a Londrina que se desenvolvera rapidamente.

A fachada do Ouro Verde, que conservou o desenho do projeto original

Outro aspecto da fachada do Ouro Verde (fotos odiraio.com)

Com a preocupação de um final triste para o Cine Ouro Verde, falei com o reitor Oscar Alves, da UEL, e ele telefonou ao ministro Ney Braga, externando também seu desalento com a possível venda do edifício a um grupo privado. Adiantou que eu voltaria a Brasília no dia seguinte e relataria ao ministro os detalhes da situação. No mesmo dia de meu retorno ao MEC, procurei o ministro e expus o problema. Ato contínuo, ele pediu à secretária para localizar um dos proprietários, Manoel Garcia Cid, que logo estava ao telefone. Solicitou ao Neco informações sobre os valores em negociação, além de um prazo para que o poder público pudesse apresentar uma proposta de aquisição do cinema e conservar seu objetivo cultural. Em seguida, fez ele mesmo uma ligação direta para o governador Jaime Canet Jr. e informou-lhe sobre a questão, já com a sugestão de que o MEC entraria com a metade do valor e o governo paranaense com a outra parte, a ser paga em prazo maior.  O governador mostrou-se relutante, em princípio, pois já estávamos em  1978 e ele deixaria o governo em março do ano seguinte. Foi a deixa para que Ney Braga lhe dissesse que, então, estava tudo resolvido, pois ele, como ministro da Educação, daria a primeira metade e a segunda parte seria paga pelo governador Ney Braga, que viria a substituir Canet.

A doação do Cine Ouro Verde à UEL, em 1978: da esquerda para a direita: Francisco Borsari Neto, secretário da Educação e Cultura, Jaime Canet Jr., governador do Paraná, Ney Braga, Oscar Alves, reitor da UEL e Cleto de Assis, diretor de Assuntos Estudantis do MEC – Foto Folha de Londrina

Tudo acertado em menos de uma hora, o processo foi encaminhado para sua resolução legal e, no dia 14 de abril de 78, uma cerimônia no próprio Cine Ouro Verde, com a presença do ministro e do governador, selou a sorte do Cine Ouro Verde, que viria a ser absorvido pela Universidade Estadual de Londrina. Para a adaptação do cinema às novas atividades culturais, consegui do ministro Ney Braga, mais tarde, a aprovação de um projeto de reforma. O Cine Teatro Universitário Ouro Verde foi inaugurado pelo reitor José Carlos Pinotti Filho, que sucedeu a Oscar Alves, e reformado pelo seguinte dirigente, reitor Marco Antonio Fiori. Em 1998, ele foi finalmente tombado pelo Patrimônio Histórico estadual.

Platéia do Cine Teatro Universitário Ouro Verde: tudo transformado em cinzas

Platéia do Cine Teatro Universitário Ouro Verde: tudo transformado em cinzas

E agora? O incêndio do último domingo, dia 12 de fevereiro, causou um grande impacto no Paraná. O governador Beto Richa já anunciou que promoverá a recosntrução daquele espaço cultural. A reitora da UEL, profa. Nádina Aparecida Moreno, também já enfatizou a necessidade da reconstrução, em suas primeiras manifestações à imprensa, logo após o sinistro. Mas a perda foi de todos nós. Um importante local para o desenvolvimento cultural e um poema arquitetônico de Vilanova Artigas, ele  também um patrimônio da cultura paranaense e brasileira.

Eu creio que a tarefa de reerguer das cinzas esta Fênix cultural é obra para todos nós.

__________________________________

Jão Batista Vilanova Artigas  (1915-1985)

“Admiro os poetas. O que
eles dizem com duas palavras a gente
tem que exprimir com milhares de tijolos.”

Feliz aniversário, com felizes silêncios de Eduardo Masullo

Eduardo Masullo, nosso correntista de Buenos Aires, está fazendo aninhos hoje.  Enviamos nosso abraço e comemoramos a data com seus canoros silêncios.

Las cosas de la vida

Eduardo Mazullo

Silencio, por Cleto de Assis

El silencio
A veces
Es un gato negro.
A veces,
Un tordo blanco.
A veces un sable con sueño.

Nunca es la misma cosa
Si una vez el silencio fue el invierno
Ya nunca el invierno será el silencio.
Hay tantas cosas en la vida
Que nunca el silencio quedará solo.
Ayer el silencio
Fue la pelota de fútbol perdida.
Hoy sabemos, que la pelota de fútbol
Ya nunca será el silencio.
Una cosa por la otra.
Dios es justo como mi tío Alberto,
Que me regaló todas las pelotas de la infancia.

Silencio fue mi papá.
Silencio mi mamá. Y los abuelos.
Ahora tengo muchísimo miedo
Porque uno de estos días
Silencio será mi corazón,
Y desde entonces
Seré silencio para siempre.

20/7/2010

As coisas da vida

O silêncio
Às vezes
É um gato negro.
Às vezes,
Um tordo branco.
Às vezes um sabre com sono.

Nunca é a mesma coisa
Se uma vez o silêncio foi o inverno
Já nunca o inverno será o silêncio.
Há tantas coisas na vida
Que nunca o silêncio ficará sozinho.
Ontem o silêncio
Foi a bola de futebol perdida.
Hoje sabemos que a bola de futebol
Já nunca será o silêncio.
Uma coisa pela outra.
Deus é justo como meu tio Alberto,
Que me deu todas as bolas da infância.

Silêncio foi meu pai.
Silêncio minha mãe. E os avós.
Agora tenho muitíssimo medo
Porque um destes dias
Silêncio será meu coração,
E desde então
Serei silêncio para sempre.

Tu mirada

Teu_Olhar_ilustração de Cleto de Assis

¿En qué cava oscura,
Húmeda y maravillosa,
Madura tu silencio?

Allí congrega
Otros silencios
Más antiguos,
Más nocturnos,
De los tiempos bárbaros
En que la lluvia
Era siempre
Un peligro.

Y el silencio
Sube por tu rostro
Como el vino
Dentro de ancha copa
Invertida de coñac
Hasta que tus ojos
Huelen a lo callado,
A lo húmedo, a lo maravilloso.

16/9/2010

Teu olhar

Em que cava escura,
Úmida e maravilhosa,
Matura teu silêncio?

Ali congrega
Outros silêncios
Mais antigos,
Mais noturnos,
Dos tempos bárbaros
Em que a chuva
Era sempre
Um perigo.

E o silêncio
Sobe por teu rosto
Como o vinho
Dentro de larga taça
Invertida de conhaque
Até que teus olhos
Cheirem a calado,
A úmido, a maravilhoso.

Sin título

Pés de outono, ilustração de Cleto de Assis

¿Qué es esa prisa
Que cruje veloz
Entre las hojas secas?

Cruje
El alma del otoño.

Hay un llanto
Que crece
Como hierba entre la piedra.

¿De quién es todo este silencio?

18/9/2010

Sem título

O que é essa pressa
Que estala veloz
Entre as folhas secas?

Estala
A alma do outono.

Há um pranto
Que cresce
Como erva entre a pedra.

De quem é todo este silêncio?

O centenário de Nelson Cavaquinho

Nelson Cavaquinho, vivo fosse, teria festejado seu centésimo aniversário no último dia 29 de outubro. Pediria flores, necessárias durante a vida e não quando a gente se chamar saudade. Perderia mil cavalos por um samba em boa companhia, ao contrário de Ricardo III, que, segundo Shakespeare, prometeu seu reino em troca de um solípede. Considerava-se um poeta, antes de sambista, e premeditou a dor de Mangueira quando ele partisse. E seus versos assim o comprovam, pois ele, com simplicidade e enorme sensibilidade, sabia moldar com palavras o seu cotidiano. A música popular brasileira está repleta de exemplos de bons poetas sem  academia. Difícil encontrar quem não se impressionou com os famosos versos de Cartola, outro admirável poeta da MPB, ao aconselhar uma antiga namorada, em A vida é um moinho: “Ouça-me bem, amor / preste atenção, o mundo é um moinho / vai  triturar teus sonhos, tão mesquinho / vai reduzir as ilusões a pó”. Ou, em As rosas não falam: “Queixo-me às rosas / mas que bobagem / as rosas não falam / simplesmente as rosas exalam / o perfume que roubam de ti”.

A mesma beleza singela foi colocada em música por Nelson Cavaquinho, nome artístico de de Nelson Antônio da Silva, (Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1911—18 de fevereiro de 1986) um dos mais importantes sambistas cariosas, compositor, cavaquinista e violonista. E poeta, sim, senhores e senhoras.  Vejamos alguns exemplos.

 Quando eu piso em folhas secas
Caídas de uma mangueira
Penso na minha escola
E nos poetas da minha estação primeira

(de Folhas secas)

Capa do disco As flores em vida, Eldorado

Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor
Hoje pra você eu sou espinho
Espinho não machuca flor
Eu só errei quando juntei minh´alma à sua
O sol não pode viver perto lua

(de A flor e o espinho)

Me dê as flores em vida
O carinho, a mão amiga,
Para aliviar meus ais.
Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces e nada mais

(de Quando eu me chamar saudade)

Desenho de Marcus Wagner

 O sol….há de brilhar mais uma vez
A luz….há de chegar aos corações
Do mal….será queimada a semente
O amor…será eterno novamente

(de Juízo Final)

Ilustração de Milton Luiz

A luz negra de um destino cruel
Ilumina um teatro sem cor
Onde estou desempenhando o papel
De palhaço do amor

(de Luz Negra)

A flor e o espinho

Quando eu me chamar saudade

Adeus a Rosirene Gemael

Há alguns dias, entrei no Facebook e vi um nome conhecido na lista de sugestões de amigos: Rosirene Gemael, jornalista, a quem eu não via desde 1988, quando trabalhamos juntos na campanha de seu tio Airton Cordeiro , então candidato a prefeito de Curitiba.  Mandei solicitações de amizade a ela e ao Kiko, seu irmão, sem saber que ela estava hospitalizada. Do Kiko recebi resposta, mas não dela. Hoje chegou uma mensagem de sua página, com pequeno  poema-despedida e  a triste surpresa de seu falecimento.

Gravo aqui uma homenagem a ela, profissional respeitadíssima por sua inteligência, competência e sensibilidade. Vai sua foto, com o poemeto que alguém postou em seu nome. Que pena, Rosirene, por não conseguirmos nos rever. Certamente perdi bons papos com você sobre a Curitiba que você amou e  sobre a qual tanto pesquisou e escreveu, sempre preocupada com a nossa cultura.

Transcrevo, abaixo,  a nota de adeus publicada no blog do Zé Beto, também publicada no blog do Solda, que fez sua homenagem gráfica à amiga.

Rosirene Gemael, adeus

26 out 2011 – 12:15

Ela voou para longe hoje cedo. Não sei por quê, mas sempre que encontrava com esta menina, me vinha a nítida impressão de que era um passarinho em forma de gente. Daqueles que não fazem alarde, que observam a paisagem com olha doce e quando piam, o som é mavioso e reconfortante. Não fui amigo dela, e sim de seu irmão, Kico, que é o oposto, locomotiva em constante movimento, criando estradas, abrindo atalhos. Sabia que Rosirene era tão criativa quanto, mas do seu jeitinho. Sabia que o texto desta jornalista que completaria 61 anos de vida era tão primoroso quanto a imagem que me passava. Nunca trocamos muitas palavras nestes anos todos que nos conhecemos, mas eu a admirava também por não ser como ela. “Ela estava sofrendo muito”, me disse o Kiko há pouco, de São Paulo, pouco antes de embarcar para Curitiba. Sim, eu sabia que ela estava doente há um bom tempo, mas quando a encontrei recentemente, ela que morava na rua de cima aqui no bairro Seminário, recebi um sorriso tão cativante, assim como aquele olhar de quem compreende o lado azul e o lado negro desta vida, mesmo porque tudo é incompreensível. Marco, o filho dela, estava ao seu lado neste último encontro. Parece um pássaro também. É o legado da minha amiga que voou hoje. Zé Beto

O que é Poesia? (1)

O nosso poeta Manoel de Andrade deixou momentaneamente a poesia em hibernação e mergulhou na prosa. Há vários meses se concentra em reunir memórias de sua peregrinação pelo Brasil e pela América Latina, quando assumiu um auto-exílio, na época do governo militar. Inconformado pela perda de um diário, em um dos últimos percursos de sua caminhada pelo continente, no qual registrava a memória daqueles dias de cavaleiro andante, Maneco (como o chamamos os amigos) tenta recuperar a riquíssima experiência em um livro de memórias com o título provisório de “O Bardo Errante”.
Recentemente, um blog de Portugal – Livres Pensantes, do Algarve –  descobriu seus poemas e passou a publicá-los, assim como artigos seus também publicados na rede. Feita a aproximação, M.A. cedeu um fragmento do livro ainda inédito, que pode ser lido aqui.

De certa maneira, podemos ver em Manoel de Andrade um lampejo de Telêmaco, filho de Ulisses, descrito por Homero também como alguém que andou “errante por muitas terras, viu as cidades de numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes; e, por sobre o mar, sofreu no seu coração aflições sem conta, no intento de” projetar sua voz em direção à liberdade e à solidariedade humana.

Cumprimentando-o por mais essa conquista de sua odisséia poética, fazemos uma homenagem com a publicação de um poema seu, ainda inédito na nuvem internética. Como numa sequencia ao post anterior, ele procura respostas para a eterna pergunta: o que é Poesia?

O que é a poesia…, meu irmão?

a Maria da Graça Andrade

A poesia, Gracinha
não é somente teu sonho
tua paixão de menina…
é a respiração suspensa
por tudo que desatina
é tua voz de criança
o abc que te ensina
a soletrar esperança
é a região proibida
para os que não sabem ver
é onde me despojo e morro
pra me sentir renascer.

A poesia, Gracinha
é cada grão que germina
é o corpo do camponês
inclinado sobre a terra
semeando a própria dor
são os ombros do proletário
suportando no salário
o peso imenso da vida.

A poesia, Gracinha
é o nosso maior pecado
é a flor que o homem pisa
neste mundo devastado
é tudo que agoniza
pelo nosso esquecimento
é nossa vida vivida
além deste eterno momento
é a fome de cada dia
protelada sempre em vão
é a própria sede da terra
sem a chuva de verão.

A poesia, Gracinha
está na raiz do amor
em toda coisa criada
e no ato do Criador
está no macho sobre a fêmea
no pólen gerando a flor
na jornada das abelhas
na flor transformada em mel
está no salto incontido
do filhote em busca do céu
no vôo da mariposa
latente numa crisálida.
Por traz da humana  crueza
a poesia, Gracinha
é o amor parindo a vida
no ventre da natureza.

A poesia, Gracinha
são teus olhos debruçados
numa aurora de verão
é o vulto da minha dor
boiando na solidão
é minha infância num tempo
que o rio escorreu pro mar
é o amor feito  lenha
ardendo no teu olhar
é a rubra flor do teu corpo
desabrochando o desejo
a inocência transformada
numa árvore de beijos
é o lirismo que assoma
no rosto da minha amada
quando meu canto ilumina
os passos da madrugada
é o nosso olhar batendo
nos olhos de quem se amou
a vida buscando a gente
no que a saudade deixou.

A poesia, Gracinha
é minha forma de morrer
quando tenho que cantar
toda dor que me transtorna
é a angústia de te dar
meu canto desfigurado
pelo áspero fardo de dor
que amarga meu sorriso
ao sentir que desfaleço
quando contemplo meu povo
com suas mãos algemadas
caminhando para o abismo
nesta pátria engatilhada
é este jeito de sentir
minha dor multiplicada
pela fé que não me mude
quando o asfalto se mancha
com o sangue da juventude.

A poesia, Gracinha
é o delírio de ver
o homem ensaiar tão alto
a dimensão do seu salto
e a tristeza de saber
que embaixo tanto lhe falta
tornando assim prematura
a vertigem  do astronauta.

A poesia, Gracinha
é uma canção operária
trabalhando solitária
na reconstrução do homem.
É a palavra feita canto
o canto feito esperança
de todo pão repartido
no gesto amplo e fraterno
de um tempo enfim ressurgido.

A poesia, Gracinha
se a mim cabe definir…
é o clarim que anuncia
ao homem que ainda um dia
cansado dos seus enganos
despertará comovido
garimpando atrás dos anos
a fala imensa do amor.

A poesia, eu te digo,
é o gesto dilatado
de toda mão estendida
é o doce sabor dos frutos
a face amarga do mundo
a eterna canção da vida.

Curitiba, outubro de 1968
________________________

Iustração: C. de A.