Arquivo do mês: abril 2010

Confissões de L. Rafael Nolli

O leão nosso de cada dia

L. Rafael Nolli, Araxá

Para Cássio Marcos Amaral

Hoje, sou exatamente aquilo que tenho:
centavos que não compravam felicidade alguma
uma úlcera metafísica,
que não me acompanhará ao infinito
dezenas de poemas sobre a exaltação do homem
………..e a felicidade tola dos desvairados.

Hoje, sou tudo que tenho:
um sonho de primavera
amadurecendo o coração dos brutos
um gosto de beijo nunca dado
uma iluminação repentina e irremediável,
………..que me levaria ao céu, se o quisesse.

Hoje, nada além dos meus pertences é o que sou:
uma dor de cabeça debutante
migalhas de pão presas à barba
um projeto de poesia
que me remediará de todo o mal do mundo —
depois de escrito me trairá covardemente,
por não saber nada além
………..do que suas palavras dizem.

Hoje, sou exatamente o que tenho:
………..mas é nu que espero o amanhã.

Sem perguntas. É o que pede José Dias Egipto

DesSolidão

José Dias Egipto, Portugal

Não me perguntes porque vivo.
Sirvo a Natureza no seu redemoinho.
Sou ninho de esperança nas árvores mortas.
São tortas as veredas da vida!

Não me perguntes porque escrevo poesia.
A alegria não se explica nem se descreve.
A verve surge do infinito do cosmos, subitamente.
E, humanamente, as palavras divinas diluem-se…

Não me perguntes no que, deveras, creio.
É a estrada do meio que procuro.
A luz ou o clarão por dentro do escuro.
A Natureza com o hálito de Deus bem no seu seio.

Não me faças perguntas no ar.
Não perguntes às águias se voam.
Não me façam perguntas
porque não são respostas o que desejo dar….

Homenagem a Nice Braga

Na página de Crônicas, gravei uma homenagem a Nice Braga, esposa de Ney Braga, que faleceu na última segunda-feira, 26 de abril. Uma exceção aos temas deste blog, mas necessária pela importância de uma grande dama que sempre soube, em sua sóbria elegância, ser amiga de todos. (C. de A.)

Manoel de Andrade em prece ao alvorecer

Aurora

Manoel de Andrade, Curitiba

Não direi que me encantas mais do que o silêncio
porque é assim que despertas as aves e os caminhos.
Meus olhos também nascem pelo parto da esperança
porque vivo na imortalidade renascendo em cada dia.

Deixa-me rever em prece tua face ressurgida
porque tua luz é sempre uma catarse.
Teu olhar estende as linhas do horizonte
e toda a paisagem é então uma ventura
e já não és mais nada
porque desfaleces no seio da beleza.

Repara como sou pequeno diante do teu rosto amanhecido
mas como é grande o que em mim te contempla.
Para renascer basta-me apenas teu momento
tua humilde majestade
tuas pétalas de fogo
e essa corola ardente
porque não peço nada mais que a tua luz
inaugurando o mundo em cada alvorecer
e que nunca me encontres cego ou vencido.

__________________
Curitiba, abril de 2004 – Em Cantares

Inéditos de Cássio Amaral, em nova praia

Cássio Amaral deu um pulo no mapa do Brasil: mudou-se de Araxá, MG, para Barra Velha, em Santa Catarina. E seu novo endereço não poderia ser melhor para um poeta: Rua dos Crisântemos,Condomínio Lagoa Azul. bairro Quinta dos Açorianos. De lá nos manda alguns depósitos, já com sabor de sal do Atlântico catarinense. Quem quiser recordar os depósitos anteriores, ver aqui e aqui.

Elevação científica

Cássio Amaral, Barra Velha


O cúmulo na prancha
surfar Foucault
na economia de Bérgson
deixar dentro do corpo
Hendrix  sabatinar o povo
Olha, olha lá!
A onda vem dobrando
a maré num hipertexto de Rousseau
com Thomas S Kuhn:
“A Estrutura das Revoluções Científicas”
A areia tem pegadas de Newton?

Tributos

pagar as contas dia 10
na metida
do mês.

26/04/2010

Salut Navarro viaja à África

África

Salut Navarro Girbés, Valencia, Espanha

Hoy estuve en África, como tantas otras veces
Manos emprendedoras
se afanaban
en construir escuelas,
sembrar campos,
vivir miserias.

Hoy estuve en África, como en muchas ocasiones
Compartí sonrisas,
juegos,
algarabía pueril,
muñecas de trapo
y un sol que no tiene fin.

Hoy estuve en África, como infinidad de días
Corazones nobles,
vidas intensas
les aman.
Vacunas y mosquitos,
enfermedades se sacian.

Hoy estuve en África, como todas las noches
Los ojos de una niña
preguntaron
con curiosidad,
si era yo su madre,
no quiso el azar.

Hoy estuve en África
Y una mirada clara
me perseguía.
Observada por una sonrisa
que recorre el mundo.

Un profundo corazón.

Profundo como la misma África.

Hoy estuve en África, como siempre he estado.
Dormida,
entre abrazos
de niños, hombres, mujeres
de almas desnudas,
y cuerpos quemados.

Nunca he estado en África ni lo estaré jamás.
Niña mía,
dile a tu mirada
que no interrogue más.

ÁFRICA
Cuida de mí.
Lágrimas de amor
resbalan
en mi corazón infantil.

África

Hoje estive na África, como tantas outras vezes
Mãos empreendedoras
labutavam
a construir escolas,
semear os campos,
viver misérias.

Hoje estive na África, como em muitas ocasiões
Compartilhei sorrisos,
jogos,
algaravia pueril,
bonecas de pano
e um sol que não tem fim.

Hoje estive na África, como em uma infinidade de dias
Corações nobres,
vidas intensas
lhes amam.
Vacinas e mosquitos,
enfermidades se saciam.

Hoje estive na África, como todas as noites
Os olhos de uma menina
perguntaram
com curiosidade,
se era eu sua mãe,
não o quis a sorte.

Hoje estive na África
E um olhar claro
me perseguia.
Observada por um sorriso
que percorre o mundo.

Um profundo coração.

Profundo como a própria África.

Hoje estive na África, como sempre estive.
Adormecida,
entre abraços
de crianças, hommens, mulheres
de almas desnudas,
e corpos queimados.

Nunca estive na África, nem lá estarei jamais.
Minha menina,
Dize a teu olhar
que não interrogue mais.

ÁFRICA
Cuida de mim.
Lágrimas de amor
resvalam
em meu coração infantil.

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Versão: Cleto de Assis

Brasília nos conformes do candango de Roberto Klotz

Muitas homenagens literárias foram feitas a Brasília pela pasagem dos seus cinquenta anos. O  Bar do Escritor também fez sua festa e reuniu várias colaborações de poetas e escritores brasilienses. Um texto despertou-me a atenção, pois descreve muito bem o que é a cidade e a relação que mantém com seus moradores. Conversei com o autor, Roberto Klotz, um engenheiro/escritor que trocou São Paulo por Brasília. Ele autorizou a publicação no Banco da Poesia e seu texto já está lá, na página de Crônicas. É a de nº 7. Boa leitura!

Presentinhos para o Brasil

Poema de Helena Lanari

Sophia de Mello Breyner Andresen

Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal
Quando Helena Lanari dizia o “coqueiro”
O coqueiro ficava muito mais vegetal

De Geografia, 1967

Pátria Minha

Vinicius de Moraes

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu…

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda…
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
“Liberta que serás também”
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão…
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
“Pátria minha, saudades de quem te ama…
Vinicius de Moraes.”

De Vinicius de Moraes – Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1998

Cassiano Ricardo: batismo do Brasil

Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!

Pero Vaz de Caminha, na Carta do Achamento

Depois de um mês perambulando pelas até então desconhecidas águas do Oceano Atlântico, sem ventos fortes que o conduzissem à Calicute almejada, perdendo Vasco de Ataíde com a sua nau (onde estará Vasco Ataíde?), eis que, passados já os primeiros 21 dias de abril, encontra Pedro Álvares Cabral e o que restou de sua frota “muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno” além de topar com “aves a que chamam furabuchos”.

Na história pátria, há divergências sobre essa descoberta. Ou achamento, como diziam na época. Pois o Brasil não foi descoberto, mas achado por aí, já que Cabral havia perdido sua rota e, para consolo de D. Manuel, seu rei e financiador, topara com uma simpática ilha, a que chamou inicialmente de Vera-Cruz. Conta-se, também, que, três meses antes de Cabral, já havia chegado às costas do Ceará o espanhol Vicente Pinzón, companheiro de Colombo na aventura da descoberta da América. Mas, de qualquer maneira, coube a Caminha, como nosso primeiro correio, enviar ao rei de Portugal a boa nova e a ele sugerir a primeira plantação de esperança (semente que seria utilizada milhares ou milhões de vezes pelos políticos brasileiros que viriam, depois de Cabral, a descobrir as riquezas do Brasil): “Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. Não é à toa, portanto, que encontramos no nosso hino, em um dos estribilhos, a permanente súplica — Salve! Salve!

E quem nos salvará? O nosso magnânimo atual monarca prometeu, mas até agora… Apesar de dizer aos quatro cantos do mundo que foi ele que inventou o Brasil. Portanto, não sabemos, como nas novelas de televisão, se somos filhos de portugueses ou de espanhóis, nem exatamente qual a nossa data natalícia. Por enquanto, fiquemos com a história oficial, primeiramente relatada por Pero Vaz de Caminha, que registrou os primeiros sinais de nosso cordão umbilical português, formado por botelhos, rabos-de-asno e furabuchos, a flutuar no fluido amniótico das praias baianas. Para ampliar ainda mais o rol de indecisões quanto ao nosso nascimento, isto é, achamento, sabemos também que tivemos muitos nomes, antes de firmarmos a presente assinatura de Brasil.

Como uma espécie de certidão de nascimento, o poeta Cassiano Ricardo nos deixou um belo poema, que vai abaixo, ilustrado por um quadro de Cândido Portinari.

Cassiano Ricardo Leite foi jornalista, poeta e ensaísta. Nasceu em São José dos Campos, SP, em 26 de julho de 1895, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 14 de janeiro de 1974. Eleito em 9 de setembro de 1937 para a Cadeira nº 31, na sucessão de Paulo Setúbal, foi recebido em 28 de dezembro de 1937 pelo acadêmico Guilherme de Almeida.

Era filho de Francisco Leite Machado e Minervina Ricardo Leite. Fez os primeiros estudos na cidade natal. Aos 16 anosCassiano Ricardo publicava o seu primeiro livro de poesias, Dentro da noite. Iniciou o curso de Direito em São Paulo, concluindo-o no Rio, em 1917. De volta a São Paulo, foi um dos líderes do movimento de reforma literária iniciada na Semana de Arte Moderna da 1922, participando ativamente dos grupos Verde Amarelo e Anta, ao lado de Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Raul Bopp, Cândido Mota Filho e outros. Formaram a fase que Tristão de Athayde classifica de nacionalista.

No jornalismo, Cassiano Ricardo trabalhou no Correio Paulistano (de 1923 a 1930), como redator, e dirigiu A Manhã, do Rio de Janeiro (de 1940 a 1944). Em 1924, fundou a Novíssima, revista literária dedicada à causa dos modernistas e ao intercâmbio cultural pan-americano. Também foi o criador das revistas Planalto (1930) e Invenção (1962).

Em 1937 fundou, com Menotti del Picchia e Mota Filho, a Bandeira, movimento político que se contrapunha ao Integralismo. Dirigiu, àquele tempo, o jornal O Anhanguera, que defendia a ideologia da Bandeira, condensada na fórmula: “Por uma democracia social brasileira, contra as ideologias dissolventes e exóticas.”

Eleito, em 1950, presidente do Clube da Poesia em São Paulo, foi várias vezes reeleito, tendo instituído, em sua gestão, um curso de Poética e iniciado a publicação da coleção Novíssimos, destinada a publicar e apresentar valores representativos daquela fase da poesia brasileira. Entre 1953 e 1954, foi chefe do Escritório Comercial do Brasil em Paris.

Poeta de caráter lírico-sentimental em seu primeiro livro, ligado ao Parnasianismo/Simbolismo, em A flauta de Pã (1917) adota a posição nacionalista do movimento de 1922, revelando-se um modernista ortodoxo até o início da década de 40. As obras Vamos caçar papagaios (1926), Borrões de verde e amarelo (1927) e Martim Cererê (1928) estão entre as mais representativas do Modernismo. Com O sangue das horas (1943), inicia uma nova e surpreendente fase, passando do imagismo cromático ao lirismo introspectivo-filosófico, que se acentua em Um dia depois do outro (1947), obra que a crítica em geral considera o marco divisório da sua carreira literária. Acompanhou de perto as experiências do Concretismo e do Praxismo, movimentos da poesia de
vanguarda nas décadas de 50 e 60. A sua obra Jeremias sem-chorar, de 1964, é bem presentativa desta posição de um poeta experimental que veio de bem longe em sua vivência estética e, nesse livro, está em pleno domínio das técnicas gráfico-visuais vanguardistas.

Se a sua obra poética é tida como uma das mais sérias e importantes da literatura brasileira contemporânea, a de prosador é também relevante. Historiador e ensaísta, Cassiano Ricardo publicou em 1940 um livro de grande repercussão, Marcha para Oeste, em que estuda o movimento das entradas e bandeiras.

Cassiano Ricardo pertenceu ao Conselho Federal de Cultura e à Academia Paulista de Letras. Na Academia Brasileira de Letras, teve atuação viva e constante. Relator da Comissão de Poesia em 1937, redigiu parecer concedendo a láurea ao livro Viagem, de Cecília Meireles. Para a vitória do seu ponto de vista, manteve destemido confronto. Saiu vitorioso, e Viagem foi o primeiro livro da corrente moderna consagrado na Academia. Ao lado de Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima e Múcio Leão, Cassiano Ricardo levou adiante o processo de renovação da Instituição, para garantir o ingresso dos verdadeiros valores. (Fonte: Academia Brasileira de Letras)

Os nomes dados a terra descoberta

Cassiano Ricardo

Cândido Portinari - Descobrimento do Brasil - Óleo sobre tela - 199 x 169cm - Acervo do Banco Central do Brasil

Cândido Portinari - Descobrimento do Brasil - Óleo sobre tela - 199 x 169cm - Acervo do Banco Central do Brasil

Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome
de ilha de Vera-Cruz.
……….Ilha cheia de graça
……….Ilha cheia de pássaros
……….Ilha cheia de luz.

……….Ilha verde onde havia
……….mulheres morenas e nuas
……….anhangás a sonhar com histórias de luas
……….e cantos bárbaros de pajés em poracés batendo os pés.

Depois mudaram-lhe o nome
……….pra terra de Santa Cruz.
……….Terra cheia de graça
……….Terra cheia de pássaros
……….Terra cheia de luz.

A grande terra girassol onde havia guerreiros de tanga e
onças ruivas deitadas à sombra das árvores
mosqueadas de sol

Mas como houvesse em abundância,
certa madeira cor de sangue, cor de brasa
e como o fogo da manhã selvagem
fosse um brasido no carvão noturno da paisagem,
e como a Terra fosse de árvores vermelhas
e se houvesse mostrado assaz gentil,
……….deram-lhe o nome de Brasil.

……….Brasil cheio de graça
……….Brasil cheio de pássaros
……….Brasil cheio de luz.

A Brasília, com um pingo de saudade

Há um ano o Banco da Poesia homenageou Tiradentes, na voz poética de Cecília Meireles. E lembramos todos os homenageados do dia 21 de abril, que são muitos e alguns pouco lembrados.

Só para recordar:

Mas não deixemos de relembrar a história de Tiradentes, em cujo dia também se comemora o Dia da Latinidade (quem lembrou dele? Só o Chávez, quando presenteou o já rançoso livro do Eduardo Galeano ao Barack Obama); o aniversário de Brasília (inaugurada em 21 de abril exatamente porque Juscelino queria homenagear um mineiro ilustre); o aniversário de Roma (que não tem nada a ver com Tiradentes, mas em Brasília, na Praça dos Buritis, bem em frente ao palácio do governo distrital, existe uma réplica da Loba com Remo e Rômulo, presente da capital da Itália à capital brasileira –Brasília e Roma são cidades irmãs, devido à coincidência natalícia); Dia Mundial do Bombeiro, homenagem mais que justa (mas sempre apagada – perdão pelo trocadilho – diante da homenagem ao protomártir da Independência), e, ainda no Brasil, onde habita um povo que adora heróicos feriados retumbantes, o Dia da Polícia Civil, o Dia da Polícia Militar (que, possivelmente, serão os únicos a trabalhar neste feriado),  Dia do Metalúrgico (terá Lula lembrado de seus companheiros de antanho?) e, finalmente, o  Dia do Têxtil (que, de certa forma, colabora com a confecção das bandeiras hasteadas no dia de hoje).

Neste 21 de abril de 2010 temos uma data redondíssima a comemorar — os 50 anos de inauguração de Brasília, nossa Capital Federal, hoje quase transformada em Babilônica apocalíptica, onde transbordam as sem-vergonhices de muitos dos nossos honoráveis representantes, aos quais entregamos, de quatro em quatro anos, cheques em branco impagáveis (termo que se pode entender, na justa eleitoral, em todas as suas acepções léxicas: que não se pode ou não se deve pagar; inestimável; precioso; muito engraçado; hilariante; cômico, excêntrico, ridículo).

Vivi em Brasília por cerca de 14 anos. E confesso que aprendi a amá-la e entendê-la, pois, à moda de Bilac, é preciso saber vê-la e ouvi-la. Aprendi a conhecer as excentricidades da cidade cêntrica, planejada para abrigar preferencialmente o poder. Aprendi a ler seus complicados endereços, nem tão complicados assim depois que conhecemos seus códigos. Aprendi a separar a Brasília dos poderosos da Brasília da gente amigável, que trabalha realmente pensando no bem do enorme panorama brasileiro à sua volta.

Para homenagear seu cinquentenário, procurei poetas que a cantaram. E muitos há. Basta “guglear” Brasília poemas e aparecem coleções de odes elogiosas.  Mas senti que seria infiel se não usasse palavras minhas para conversar com ela no dia de seu importante aniversário. Sem pretender fazer um poema, abri as portas da memória e, apenas passeando por metáforas, desaguei no que vai abaixo, pois, em meio à festa, não posso descuidar, como preocupado brasileiro, do que ocorre por lá, apesar de nossa sentinela avançadíssima afirmar, para espanto quase geral, que nada ouve e nada vê.  E como ela nada escuta e nada enxerga, nada ocorre do que vemos e ouvimos. Pura lógica princepesca…

Para completar a homenagem, dois vídeos. O primeiro, com Vinicius de Moraes e Tom Jobim e a primeira música composta em Brasília, Água de Beber,  sob inspiração do murmurejo de um riacho ao lado do Catetinho, o palácio de madeira construído por Oscar Niemeyer para Juscelino Kubitschek na início da construção de Brasília. No segundo, Juca Chaves, ainda mocinho atrevido, canta Presidente Bossa Nova, uma sátira ao construtor da nova capital. Música, aliás, que chegou a ser temporariamente censurada, apesar do Brasil ter vivido, naqueles tempos, uma era de plena liberdade de expressão. Com meu abraço e (confesso) um pouco de saudade. (Cleto de Assis)

Brasília


Andar por Brasília é como voar:
……………..planar sobre projetos arquitetônicos
……………..mover-se velozmente por planos urbanísticos
……………..brincar de gente grande em um imenso jardim de infância.

Porque Brasília é ainda infante, apesar de cinquentenária:
que são cinquenta aninhos perto dos 510 do jovem Brasil?

No jardim do planalto central,
……………..onde árvores retorcidas do cerrado
……………..deram lugar a templos de cimento armado,
……………..onde se juntaram o sonho de Dom Bosco
……………..aos delírios de Juscelino
……………..e às fantasias temperadas
……………..nos caldeirões de Niemeyer e Lúcio Costa,
plantaram-se esperanças vindas de todas as partes
e nasceu gente nova, candangos do Século XXI.

É verdade que a Brasília igualitária imaginada nas pranchetas
jamais frutificou
— no sopé das caixas de cimento
ainda germinam as diferenças
e  aparecem e desaparecem teimosas favelas
como a dizer: também sou chão brasileiro
feito de pobreza, deseducação e doença.

É verdade que os senadores e ministros e deputados
e sacrossantos magistrados não realizaram o sonho de viver
ao lado dos motoristas e serventes e vigias.

É verdade que Brasília,
para onde se transferiu a forja de leis carioca,
também importou a fluidez e multifácies do poder insensato
e os inefáveis palavreados das tribunas e dos tribunais,
nos quais mudaram as paredes, o ar em torno, mas não o ar interno.

Brasília recebeu suntuosos memoriais
e em cada canto outros vicejam
a guardar reminiscências e a esconder pecados.
……………..Brasília ainda aguarda o Memorial da Incúria
……………..onde, em mil paredes, se exporiam
……………..as miríades de atos impudentes
……………..colhidos na Praça dos Três Poderes
……………..e onde as novas gerações aprenderiam
……………..a ter vergonha na cara
……………..e a respeitar e respeitar e respeitar todas as (re)públicas
……………..e a honrar e honrar e honrar todos os compromissos
……………..e fazer do não roubarás também um pétreo preceito constitucional.

Mas Brasília carrega a sina
de ter se tornado famosa
antes de madurar.
E por mais distante que esteja
é lá que nossas vidinhas e vidões
são lançados à sorte da roleta política
e das decisões destemperadas do Olimpo planaltino.
E segue vivendo sua vida sem esquinas
e com lagos artificiais e artifícios democráticos,
com mil violinos de Chagall
e violões de Dilermando
e cavaquinhos de Waldir Azevedo
a tocar sobre seus tetos,
com milhares de gravatas
transformadas em bandeiras de representação
do Zé Povinho descalço e sem roupas
eterna Capital da Esperança
com chegança sem data marcada.

……………………………..

Um dia, olhando Brasília lá do alto,
ouvi sua prece murmurante
a pedir para não ser transformada na Babilônia apocalíptica,
mãe de todas as prostitutas e abominações da terra.
sentada na Besta escarlate
e destinada a ser destruída por culpa dos pecados de seus príncipes,
que se gloriam com insolência e pronunciam blasfêmias
e reproduzem, de suas cabeças, outras Bestas,
com chifres semelhantes aos do Cordeiro,
mas com vozes troantes de Dragão,
a exercitar todo o poder da primeira Besta na sua presença
e a fazer que todos os habitantes adorem a primeira Besta,
cuja ferida mortal já foi curada,
tal como profetiza o Apocalipse 13.
Eu, então, a consolei, mostrando-lhe que os reis passarão
e ela permanecerá incólume e linda
e um dia se tornará uma das maravilhas do mundo moderno
com suas fontes a jorrar leite e mel e felicidade.

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