Arquivo da tag: Carta do Achamento

Cassiano Ricardo: batismo do Brasil

Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!

Pero Vaz de Caminha, na Carta do Achamento

Depois de um mês perambulando pelas até então desconhecidas águas do Oceano Atlântico, sem ventos fortes que o conduzissem à Calicute almejada, perdendo Vasco de Ataíde com a sua nau (onde estará Vasco Ataíde?), eis que, passados já os primeiros 21 dias de abril, encontra Pedro Álvares Cabral e o que restou de sua frota “muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno” além de topar com “aves a que chamam furabuchos”.

Na história pátria, há divergências sobre essa descoberta. Ou achamento, como diziam na época. Pois o Brasil não foi descoberto, mas achado por aí, já que Cabral havia perdido sua rota e, para consolo de D. Manuel, seu rei e financiador, topara com uma simpática ilha, a que chamou inicialmente de Vera-Cruz. Conta-se, também, que, três meses antes de Cabral, já havia chegado às costas do Ceará o espanhol Vicente Pinzón, companheiro de Colombo na aventura da descoberta da América. Mas, de qualquer maneira, coube a Caminha, como nosso primeiro correio, enviar ao rei de Portugal a boa nova e a ele sugerir a primeira plantação de esperança (semente que seria utilizada milhares ou milhões de vezes pelos políticos brasileiros que viriam, depois de Cabral, a descobrir as riquezas do Brasil): “Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. Não é à toa, portanto, que encontramos no nosso hino, em um dos estribilhos, a permanente súplica — Salve! Salve!

E quem nos salvará? O nosso magnânimo atual monarca prometeu, mas até agora… Apesar de dizer aos quatro cantos do mundo que foi ele que inventou o Brasil. Portanto, não sabemos, como nas novelas de televisão, se somos filhos de portugueses ou de espanhóis, nem exatamente qual a nossa data natalícia. Por enquanto, fiquemos com a história oficial, primeiramente relatada por Pero Vaz de Caminha, que registrou os primeiros sinais de nosso cordão umbilical português, formado por botelhos, rabos-de-asno e furabuchos, a flutuar no fluido amniótico das praias baianas. Para ampliar ainda mais o rol de indecisões quanto ao nosso nascimento, isto é, achamento, sabemos também que tivemos muitos nomes, antes de firmarmos a presente assinatura de Brasil.

Como uma espécie de certidão de nascimento, o poeta Cassiano Ricardo nos deixou um belo poema, que vai abaixo, ilustrado por um quadro de Cândido Portinari.

Cassiano Ricardo Leite foi jornalista, poeta e ensaísta. Nasceu em São José dos Campos, SP, em 26 de julho de 1895, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 14 de janeiro de 1974. Eleito em 9 de setembro de 1937 para a Cadeira nº 31, na sucessão de Paulo Setúbal, foi recebido em 28 de dezembro de 1937 pelo acadêmico Guilherme de Almeida.

Era filho de Francisco Leite Machado e Minervina Ricardo Leite. Fez os primeiros estudos na cidade natal. Aos 16 anosCassiano Ricardo publicava o seu primeiro livro de poesias, Dentro da noite. Iniciou o curso de Direito em São Paulo, concluindo-o no Rio, em 1917. De volta a São Paulo, foi um dos líderes do movimento de reforma literária iniciada na Semana de Arte Moderna da 1922, participando ativamente dos grupos Verde Amarelo e Anta, ao lado de Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Raul Bopp, Cândido Mota Filho e outros. Formaram a fase que Tristão de Athayde classifica de nacionalista.

No jornalismo, Cassiano Ricardo trabalhou no Correio Paulistano (de 1923 a 1930), como redator, e dirigiu A Manhã, do Rio de Janeiro (de 1940 a 1944). Em 1924, fundou a Novíssima, revista literária dedicada à causa dos modernistas e ao intercâmbio cultural pan-americano. Também foi o criador das revistas Planalto (1930) e Invenção (1962).

Em 1937 fundou, com Menotti del Picchia e Mota Filho, a Bandeira, movimento político que se contrapunha ao Integralismo. Dirigiu, àquele tempo, o jornal O Anhanguera, que defendia a ideologia da Bandeira, condensada na fórmula: “Por uma democracia social brasileira, contra as ideologias dissolventes e exóticas.”

Eleito, em 1950, presidente do Clube da Poesia em São Paulo, foi várias vezes reeleito, tendo instituído, em sua gestão, um curso de Poética e iniciado a publicação da coleção Novíssimos, destinada a publicar e apresentar valores representativos daquela fase da poesia brasileira. Entre 1953 e 1954, foi chefe do Escritório Comercial do Brasil em Paris.

Poeta de caráter lírico-sentimental em seu primeiro livro, ligado ao Parnasianismo/Simbolismo, em A flauta de Pã (1917) adota a posição nacionalista do movimento de 1922, revelando-se um modernista ortodoxo até o início da década de 40. As obras Vamos caçar papagaios (1926), Borrões de verde e amarelo (1927) e Martim Cererê (1928) estão entre as mais representativas do Modernismo. Com O sangue das horas (1943), inicia uma nova e surpreendente fase, passando do imagismo cromático ao lirismo introspectivo-filosófico, que se acentua em Um dia depois do outro (1947), obra que a crítica em geral considera o marco divisório da sua carreira literária. Acompanhou de perto as experiências do Concretismo e do Praxismo, movimentos da poesia de
vanguarda nas décadas de 50 e 60. A sua obra Jeremias sem-chorar, de 1964, é bem presentativa desta posição de um poeta experimental que veio de bem longe em sua vivência estética e, nesse livro, está em pleno domínio das técnicas gráfico-visuais vanguardistas.

Se a sua obra poética é tida como uma das mais sérias e importantes da literatura brasileira contemporânea, a de prosador é também relevante. Historiador e ensaísta, Cassiano Ricardo publicou em 1940 um livro de grande repercussão, Marcha para Oeste, em que estuda o movimento das entradas e bandeiras.

Cassiano Ricardo pertenceu ao Conselho Federal de Cultura e à Academia Paulista de Letras. Na Academia Brasileira de Letras, teve atuação viva e constante. Relator da Comissão de Poesia em 1937, redigiu parecer concedendo a láurea ao livro Viagem, de Cecília Meireles. Para a vitória do seu ponto de vista, manteve destemido confronto. Saiu vitorioso, e Viagem foi o primeiro livro da corrente moderna consagrado na Academia. Ao lado de Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima e Múcio Leão, Cassiano Ricardo levou adiante o processo de renovação da Instituição, para garantir o ingresso dos verdadeiros valores. (Fonte: Academia Brasileira de Letras)

Os nomes dados a terra descoberta

Cassiano Ricardo

Cândido Portinari - Descobrimento do Brasil - Óleo sobre tela - 199 x 169cm - Acervo do Banco Central do Brasil

Cândido Portinari - Descobrimento do Brasil - Óleo sobre tela - 199 x 169cm - Acervo do Banco Central do Brasil

Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome
de ilha de Vera-Cruz.
……….Ilha cheia de graça
……….Ilha cheia de pássaros
……….Ilha cheia de luz.

……….Ilha verde onde havia
……….mulheres morenas e nuas
……….anhangás a sonhar com histórias de luas
……….e cantos bárbaros de pajés em poracés batendo os pés.

Depois mudaram-lhe o nome
……….pra terra de Santa Cruz.
……….Terra cheia de graça
……….Terra cheia de pássaros
……….Terra cheia de luz.

A grande terra girassol onde havia guerreiros de tanga e
onças ruivas deitadas à sombra das árvores
mosqueadas de sol

Mas como houvesse em abundância,
certa madeira cor de sangue, cor de brasa
e como o fogo da manhã selvagem
fosse um brasido no carvão noturno da paisagem,
e como a Terra fosse de árvores vermelhas
e se houvesse mostrado assaz gentil,
……….deram-lhe o nome de Brasil.

……….Brasil cheio de graça
……….Brasil cheio de pássaros
……….Brasil cheio de luz.

Aniversário da Carta do Achamento

carta-caminhaEm abril, no dia do Descobrimento do Brasil, eu prometi voltar ao tema da Carta do Achamento em 1º de maio, data de sua assinatura por Pero Vaz de Caminha, escrivão lotado na armada de Pedro Álvares Cabral. A data passou em branco, em razão de uma viagem minha, não tão longa, mas que afastou-me do blog por alguns dias. No final da última semana, deparei-me com outro probleminha, pois a banda larga da Internet estreitou, talvez também devido às calmarias, e não consegui postar além de dois títulos.

Portanto, pedindo desculpas à Carta e a seu escriba, como também aos leitores que eventualmente procuraram pelo post  no dia 1º, entrego à leitura alguns poemas sobre o tema, a começar pelo já conhecido Pero Vaz de Caminha, de Oswald de Andrade.

Pero Vaz de Caminha

Oswald de Andrade

oswalddeandradeA descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra

Os selvagens

Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam pôr a mão
E depois a tomaram como espantados

Primeiro chá

Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real

As meninas da gare

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha

De Pau-brasil (1925)

Erro de Português

Oswald de Andrade

Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio teria despido
O português

in Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.
esquadra_de_cabral

Nova do Achamento (Quarta-feira, 22 de Abril)

Manuel Alegre

Sabei porém que foi um sobressalto
E tremo ainda ao pô-lo no papel.
Vimos primeiro um monte muito alto
E outras serras mais baixas ao sul dele.

Vimos depois as serras terra chã
Muito formosa e cheia de arvoredos.
Era a luz a surgir de seus segredos
E em nós embora tarde era manhã.

Nem sei dizer Senhor o espanto e os medos.

Achar Senhor é pão que mata a fome
Da ânsia de mais mundo e de mais luz.
E ao monte grande o Capitão pôs nome
De Pascoal. E à terra de Vera Cruz.

Lisboa, Publicações Europa-América, s.d.

Descobrimento

Sophia de Mello Breyner Andresen

caravelas
Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados

Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam as crinas nos alísios

O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados

Brasil ou do outro lado do mar
Obra Poética III, Lisboa, Ed. Caminho

Carta de Pero Vaz de Caminha

Luís Filipe Castro Mendes

É equívoca a ternura. Demasiados gestos
Para uma só palavra.
E agora que será de nós? Ficar aqui?

Esta terra contém água em demasia.
Prefiro a inteireza da pedra. Mas que podemos nós fazer
Quando as palavras sobram
E o amor acontece?

Rio Caí

Rui Rasquilho

Encontrada a terra
Na coincidência da Páscoa
Caminha olhou da grande nau
A praia
E escreveu ao Rei

Nu
O dono da terra
Olhou o branco marítimo
Trazido pelo vento

A praia clareava a floresta
Junto do mar
Enfeitada de penas e flechas

De espadas

No vermelho branco do encontro
A surpresa não teve fingimento
Na vertigem do silêncio da palavra

O Rei
Leu a carta de Caminha
E ordenou a invenção da história
Como se nada fosse o que era

25 Poemas brasileiros e uma Saga Lusitana
Thesaurus, Brasília, 1997

Em defesa de Caminha e de nosso caráter

manueli-p

D. Manuel I, o Venturoso – Afinal, o Rei atendeu Caminha
 e fez seu genro retornar a Portugal?

Difundiu-se pelas terras descobertas por Cabral, em favor da diminuição de nosso caráter, o boato de que o nepotismo e a corrupção do País brasílico se originaram no primeiro texto escrito sobre a Ilha de Vera Cruz. O escriba da esquadra cabralina teria aproveitado a comunicação com o Rei de Portugal e pedido a ele um emprego para parente. Para apimentar ainda mais a fofoca, disseram que era para um sobrinho seu, o que caracterizaria o nepotismo (embora sua correta acepção não seja essa). Erro de quem não leu ou passou superficialmente pela carta de Caminha.

Em verdade, em verdade vos digo: Caminha tão somente aproveitou a carta (que levaria algum tempo para chegar a Portugal e, portanto, não haveria uma próxima segunda oportunidade para fazê-lo) para solicitar a Sua Alteza a vinda (provável transferência) de seu genro Jorge de Osório, por alguma razão situado, naquele momento, na Ilha de São Tomé, na costa da África, colônia portuguesa desde 1470, quando João de Santarém e Pedro Escobar a descobriram (hoje é a República de São Tomé e Príncipe, independentes desde 1975, e faz parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP). Imagine-se as condições de vida naquela colônia, inabitada até a data de sua descoberta pelos navegadores lusos.

É preciso que lembremos que, naquele tempo, embora Portugal fosse uma potência econômica mundial, líder no setor de navegação, era ainda um país pequeno, em relação aos dias de hoje. O Rei tinha poder discricionário e somente ele podia definir a sorte dos funcionários da corte. Além disso, Pero Vaz de Caminha era Cavaleiro da Corte, durante os reninados de D. Afonso V, D. João II e, na época do descobrimento,  D. Manuel I, por quem fora nomeado escrivão em Calecut, integrado à armada de Pedor Álavres Cabral. Tinha, portanto, intimidade com a corte e lhe era perfeitamente permitido tal aproximação com o monarca. Ora, ao pedir a transferência de seu genro daquela ilha, distante de Lisboa em cerca de 4.500 quilômmetros, Caminha não estava a utilizar nenhum favor especial. Simplesmente fazia um requerimento bastante compreensível para reunir sua família em Portugal (ao lado de um genro, sempre há uma filha). Pedido que podia ser atendido ou não. Onde estão a corrupção e o nepotismo?

Mais razões há para registrarmos o início de nossa saudável miscigenação, como observa Carlos Eduardo de Soveral, no Dicionário de Literatura, ao ver na Carta “o mais vivo testemunho relativo ao reconhecimento oficial da terra de Vera Cruz. Nela se patenteia com pitoresco inexcedível a impressão que no civilizado, saído da Idade Média, infunde o espectáculo genesíaco, e também, especialmente, o atrativo que a mulher indígena exerce na forte compleição do português”. Depois, seria a vez da mulher da africana, cujo relacionamento com “a forte compleição do português” daria origem a formosas mulatas. Pena é que, hoje, haja quem lute em favor do retrocesso, com tantas iniciativas para se implantar o neoracismo no Brasil.

Para os que desejarem ler (ou guardar) a Carta completa, vejam em http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/a_carta.htm.