Arquivo da tag: Araxá

Confissões de L. Rafael Nolli

O leão nosso de cada dia

L. Rafael Nolli, Araxá

Para Cássio Marcos Amaral

Hoje, sou exatamente aquilo que tenho:
centavos que não compravam felicidade alguma
uma úlcera metafísica,
que não me acompanhará ao infinito
dezenas de poemas sobre a exaltação do homem
………..e a felicidade tola dos desvairados.

Hoje, sou tudo que tenho:
um sonho de primavera
amadurecendo o coração dos brutos
um gosto de beijo nunca dado
uma iluminação repentina e irremediável,
………..que me levaria ao céu, se o quisesse.

Hoje, nada além dos meus pertences é o que sou:
uma dor de cabeça debutante
migalhas de pão presas à barba
um projeto de poesia
que me remediará de todo o mal do mundo —
depois de escrito me trairá covardemente,
por não saber nada além
………..do que suas palavras dizem.

Hoje, sou exatamente o que tenho:
………..mas é nu que espero o amanhã.

Cássio Amaral: mais brilhos de Araxá

Foto e poema: Cássio Amaral – montagem: C. de A.

L. Rafael Nolli, de Araxá, adverte: antes que…

Balada homicida

Francisco de Goya — O 3 de maio, 1808. 1814. Óleo sobre tela. 266 x 345cm. Museu do Prado, Madri

É preciso matar o vizinho com um tiro de fuzil,
antes que ele compreenda os textos sagrados
e venha, como irmão, a seu lar,
comer do seu pão e beber do seu vinho.

É preciso degolar os amigos,
ou enforcá-los em seus cadarços
(eles não usam gravatas),
antes que eles entendam Marx,
decretem o fim da era dos desiguais
e venham exigir que você participe do combate,
deixando para trás sua coleção de tampinhas
de refrigerantes
xxxxxxxxxxxe de caixinhas de Malrboro.

É preciso matar os homens
– contrariando Drummond –
antes que eles entendam a poesia que há nas coisas
e comecem a distribuí-la em seus gestos diários.
Assassiná-los antes que liguem para a sua casa
e convidem-no para ver a lua
ou um mosquito de Proust,
retirando você de seu conforto militar, remediado.

É preciso se matar, sobretudo se matar,
antes que a vida se refaça no interior dos lares
e a alegria volte a corar a face dos homens:
antes que eles se compreendam, venham à sua porta
e a derrubem, por acreditarem-na obsoleta.

Araxá nos descobriu: Cássio Amaral também envia depósitos

Quem, em Araxá,
procurar da Poesia o Banco,
Axará?

O oeste mineiro nos descobriu. E nós estamos descobrindo a poesia do oeste de Minas.  Junto aos comentários sobre os poemas de Rafael Nolli, com L. antes, chegou mais uma proposta de abertura de conta no Banco da Poesia de Cássio Amaral. Também poeta jovem, professor e, como se vê nos seus trabalhos, em busca de novas linguagens, mesmo quando utiliza a antiga estrutura haicaiana. Saudamos o novo correntista, professor  de História, Filosofia e Sociologia no ensino médio. Ele nasceu e vive em Araxá, Minas Gerais. Autor dos livros Lua Insana Sol Demente (2001), Estrelas Cadentes (2003), Sem Nome (2006) e Sonnen (2008). Participou das coletâneas de autores blogueiros Corpo e Alma em Verso e Prosa (2006) e Trilhas (2008), organizadas por Euza Procópio Noronha. Tem poemas publicados nos endereços eletrônicos Diversos Afins, Germina Literatura, Revista Lasanha e site de Antonio Miranda.

Seu blog se chama enten katsudatsu . Nossas boas vindas a mais este araxaense e sua poesia.

Metafísica dos coiotes I

Rasgo o trago do imprevisto
que distrai o tempo que passa rápido.
Canto o cântico dos malditos que me cai.
Tudo vaza, tudo explode.
A noite é lenta quando lírios conspiram
contra a sorte perdida.
Lâminas que a incerteza jura fatiar para a salada
de nepotismo barato e regular da gargalhada da noite.
Bebo as estrelas virgens,
Como os meteoros platônicos,
latindo, uivando pra lua prostituta
que cavalga numa nuvem
o sexo santo dos devassos.

A Morte do Poeta


O poeta morreu
Balbuciando formigas em seus versos
Ficou obcecado por metáforas
Cuspiu pleonasmos pretéritos

O poeta morreu
Tentando achar seu caminho
Disse imperfeições nas metonímias
Atirou-se do nono  andar

O poeta morreu tentando desmontar a bomba atômica
Depois de ter punhetado Descartes buscando a verdade ao contrário
Verter-se em Paganini tocando seu violino diabólico
Esvoaçando flores carcomidas por aliterações fingidas

O poeta morreu
Nos precipícios lunáticos de toda a imperfeição
Uivando diante do absurdo da sua própria voz
Silenciada no êxtase da loucura.

Três Kai-kais

Hai-cães uivantes

um trovão instiga o uivo
a noite cai em mosaico
no verso latido de um pária

tirar leite das pedras
pisar na velocidade da luz
extrair a raiz sisuda do futuro.

Catador

catando palavras
desvirginando a métrica
endoidando a sintaxe.

________

Ilustrações: C. de A.

Vem de Minas um novo depósito: L. Rafael Nolli

Ganhamos mais um correntista que descobriu o Banco da Poesia na Internet. Trata-se de L. Rafael Nolli, de Araxá, Minas Gerais, a terra de Ana Jacinta de São José — a  lendária Dona Beja ou Beija —, que desafiou os costumes da sociedade mineira na primeira metade dfo Séc. XIX. Araxá (a vista para o mundo, plnalto de vastos horizontes, segundo o Vocabulário Tupi/Guarani-Português) é hoje uma famosa estância hidromineral, situada no famoso triângulo mineiro, no oeste do estado. E parece que daquelas fontes não jorram apenas águas miraculosas (como a que, conforme a lenda, mantinha Dona Beja formosa e sempre jovem), mas também poesia.

Rafael Nolli (ainda não descobri o que significa o prenome L.) mantém um blog, Stalingrado III, dedicado a temas culturais, com ênfase na poesia. Ele visitou recentemente o Banco, deixou seu recado na página de Vicente Gerbasi e contou que já havia lido o livro do poeta venezuelano Espaços Cálidos, por mim traduzido, na biblioteca pública local.

Aí teve início esta nova conta, pois visitei seu blog e descobri o excelente poeta que é, jovem e inovador na linguagem. Ele nos conta que nasceu em Araxá no ano de 1980. Publicou, de forma independente, o livro de poemas Memórias à Beira de um Estopim. Tem poemas publicados em diversas coletâneas e publicações especializadas. Está na gráfica Comerciais de Metralhadora, a ser lançado no primeiro semestre de 2010.  Atualmente, leciona História e Geografia no ensino médio. Pode ser lido , como já informamos, no seu blog.

Seguem seus dois primeiros depósitos, com a promessa de que outros virão. Nossa boas vindas e  agradecimentos ao novo correntista.

Poema # 1


A um toque das mãos ter as pessoas,
ver nossa vida em suas vidas continuada.
Pioneiras que antes de todos foram ao fundo
e dele regressaram com avisos, precauções.

A um toque das mãos ter as pessoas,
ser feliz com elas enquanto transitam –
estendendo a fronteira de nossa alegria
às ruas onde não eram aceitos os nossos passos.

A um toque, para o bem ou para o mal –
ter algo quebrado quando se embrutecem,
ser ferido quando se atracam,
quando se estilhaçam, ter algo partido.

A um toque das mãos ter as pessoas,
poder viver nelas o que não nos foi possível –
em seus pulmões o ar que nos foi recusado.
Seus sonhos e os nossos em uma mesma sala.

A um toque das mãos ter as pessoas,
ver nossa vida em suas vidas continuada.

Poema # 2

Gustave Courbet - 1819-1877 – Mulher nua com cachorro – óleo sobre tela (65 x 81 cm) 1861-1862 – Museu de Orsay, Paris

: impossível sem quebrar uns ossos,

talvez alguns golpes de navalha na face

(como um imprudente zagueiro

ou um barbeiro louco).

: improvável sem queimar algumas casas,

talvez algumas pessoas em praça pública

(como se fazia em nome de Deus

ou de homens alçados a).

: fora de cogitação sem pessoas,

talvez algumas que não existam

(como aquelas dos romances antigos

ou dos sonhos razoáveis).

: impensável sem amor pela vida,

talvez por uma mulher ou por um cão

(como se vê nos bares à noite

ou na rua aos sábados).