Gosto de ouvir o português do Brasil
Onde as palavras recuperam sua substância total
Concretas como frutos nítidas como pássaros
Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
Sem perder sequer um quinto de vogal
Quando Helena Lanari dizia o “coqueiro”
O coqueiro ficava muito mais vegetal
De Geografia, 1967
Pátria Minha
Vinicius de Moraes
A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.
Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.
Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!
Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu…
Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda…
Não tardo!
Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.
Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
“Liberta que serás também”
E repito!
Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão…
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.
Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.
Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
“Pátria minha, saudades de quem te ama…
Vinicius de Moraes.”
De Vinicius de Moraes – Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1998
Depois do Dia Mundial da Poesia, vem o Dia da Água, outra substância indispensável para a sobrevivência humana. Produto da união de dois gases – um altamente inflamável e outro acelerador da combustão – a água tem a paradoxal capacidade de apagar o fogo e, em estado sólido, reduz drasticamente as temperaturas. Como imaginamos que esta sagrada siubstância jamais acabará, não somos exatamente os melhores guardiões da água, por este mundo afora. Desperdiçamos água, contaminamos e secamos nascentes, poluimos os mares e as grandes reservas de água potável. Daqui a 15 anos, segundo a ONU, mais da metade da população mundial, ou seja, perto de 3 bilhões de pessoas, sofrerá escassez de água. A organização também informa que hoje, a cada ano, morrem cerca de 1 milhão e 600 mil pessoas por dificuldades de acesso a água e falta de saneamento básico.
Como afirmou o escritor João Guimarães Rosa:
A água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade:
só tem valor quando acaba.
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Água não é poesia, mas pode ser fonte inesgotável de inspiração poética. Por isso fomos pedir água a alguns poetas para comemorar o seu dia. E, no final do post, anexamos dois pequenos filmes que nos mostram o mundo maravilhoso da água, em sua origem e como fonte permanente de vida. Afinal, sempre é bom recordar que somos formados primordialmente de água: chegamos a conter até 80% do precioso líquido (até os dois anos de idade). Depois essa proporção decresce, com o passar dos anos. O que significa que, ao envelhecermos, simplesmente desidratamos. E, em um belo (ou feio) dia, vaporizamos literalmente.
Enquanto isso não ocorre, louvemos a água, nossa inseparável companheira. C. de A.
Nossa sabedoria é a dos rios.
Não temos outra.
Persistir. Ir com os rios,
onda a onda.
Os peixes cruzarão nossos rostos vazios.
Intactos passaremos sob a correnteza
feita por nós e o nosso desespero.
Passaremos límpidos.
E nos moveremos,
rio dentro do rio,
corpo dentro do corpo,
como antigos veleiros.
Luís Carlos Verzoni Nejar, (Porto Alegre, 11 de janeiro de 1939), é um poeta, ficcionista, tradutor e crítico brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras.
Prendei o rio
Maltratai o rio
Trucidai o rio
A água não morre
A água que é feita
de gotas inermes
Que um dia serão
Maiores que o rio
Grandes como o oceano
Fortes como os gelos
Os gelos polares
Que tudo arrebentam.
De Estrela da Manhã
Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho, poeta brasileiro (Recife, 19 de abril de 1886 – Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968)
Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.
É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, base e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.
Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.
De Poesiascompletas
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António Gedeão, pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho (Lisboa, 24 de Novembro de 1906 – 19 de Fevereiro de 1997), foi um afamado poeta, professor e historiador da ciência portuguesa.
Água, feita de volubilidade
mãe das nuvens e do barro.
posso senti-la discreta
transparente inevitável.
Prisioneira gelada
dos refrigeradores,
vago itinerário dos peixes,
húmido túmulo dos detritos
que os homens repudiaram.
Feita de angústia,
saíste dos olhos
para a estrada áspera
das rugas.
Ergues tua bandeira vermelha
no peito dos apunhalados.
Água,
hei-de beber-te comovido
na inodora volúpia
da tua acomodada transparência.
Embebes de esquecimento
os suicidas.
Tuas mãos rudes
agarram os continentes,
dissolvem os náufragos,
projectam no céu
os velames e as quilhas.
Bojo surdo e verde
cofre de algas e flibusteiros,
bactérias e diamantes.
Quero-te agora
inerte de presságios,
mera adolescente
nascida na terra,
filha perdida do azul.
No alto mar
A luz escorre
Lisa sobre a água.
Planície infinita
Que ninguém habita.
O Sol brilha enorme
Sem que ninguém forme
Gestos na sua luz.
Livre e verde a água ondula
Graça que não modula
O sonho de ninguém.
São claros e vastos os espaços
Onde baloiça o vento
E ninguém nunca de delícia ou de tormento
Abre neles os seus braços.
De Poesia (1944)
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Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de Novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004) foi uma das mais importantes poetas portuguesas do século XX.
Recordo-me de descobrir que num poema era preciso que cada palavra fosse necessária, as palavras não podem ser decorativas, não podiam servir só para ganhar tempo até ao fim do decassílabo, as palavras tinham que estar ali porque eram absolutamente indispensáveis. Isso foi uma descoberta.
Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto a 6 de Novembro de 1919 e faleceu em Lisboa a 2 de Julho de 2004. Da infância aristocrática e feliz passada no Porto ficaram imagens e reminiscências que povoam, de forma explícita ou alusiva, a sua obra poética e ficcional, particularmente os contos para crianças: a casa do Campo Alegre, o jardim, a praia da Granja (sobre a qual escreveria, em 1944, em carta a Miguel Torga: “A Granja é o sítio do mundo de que eu mais gosto. Há aqui qualquer alimento secreto”), os Natais celebrados segundo a tradição nórdica (também evocados por Ruben A. na sua autobiografia O Mundo à Minha Procura) foram lugares e vivências que marcaram de forma determinante o imaginário da autora. Clara Rocha (ler mais no site do Instituto Camões).
São suas obras de poesia:Poesia, Coimbra, ed. Da Autora, 1944; Dia do Mar, Lisboa, Edições Ática, 1947; Coral, Porto, Livraria Simões Lopes, 1950; No Tempo Dividido, Lisboa, Guimarães Editores, 1954; Mar Novo, Lisboa, Guimarães Editores, 1958; O Cristo Cigano, Lisboa, Minotauro, 1961; Livro Sexto, Lisboa, Livraria Morais Editora, 1962; Geografia, Lisboa, Ática, 1967; Dual, Lisboa, Moraes Editores, 1972; O Nome das Coisas, Lisboa, Moraes Editores, 1977; Navegações, Lisboa, IN-CM, 1983, Ilhas, Lisboa, Texto Editora, 1989; Musa, Lisboa, Editorial Caminho, 1994; O Búzio de Cós e Outros Poemas, Lisboa, Editorial Caminho, 1997.
No poema que publicamos, Sophia sintetiza parte da saga da libertação do Timor Leste, o representante da lusofonia no Oriente.
Em abril, no dia do Descobrimento do Brasil, eu prometi voltar ao tema da Carta do Achamento em 1º de maio, data de sua assinatura por Pero Vaz de Caminha, escrivão lotado na armada de Pedro Álvares Cabral. A data passou em branco, em razão de uma viagem minha, não tão longa, mas que afastou-me do blog por alguns dias. No final da última semana, deparei-me com outro probleminha, pois a banda larga da Internet estreitou, talvez também devido às calmarias, e não consegui postar além de dois títulos.
Portanto, pedindo desculpas à Carta e a seu escriba, como também aos leitores que eventualmente procuraram pelo post no dia 1º, entrego à leitura alguns poemas sobre o tema, a começar pelo já conhecido Pero Vaz de Caminha, de Oswald de Andrade.
Pero Vaz de Caminha
Oswald de Andrade
A descoberta
Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra
Os selvagens
Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam pôr a mão
E depois a tomaram como espantados
Primeiro chá
Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real
As meninas da gare
Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha
De Pau-brasil (1925)
Erro de Português
Oswald de Andrade
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio teria despido
O português
in Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.
Nova do Achamento (Quarta-feira, 22 de Abril)
Manuel Alegre
Sabei porém que foi um sobressalto
E tremo ainda ao pô-lo no papel.
Vimos primeiro um monte muito alto
E outras serras mais baixas ao sul dele.
Vimos depois as serras terra chã
Muito formosa e cheia de arvoredos.
Era a luz a surgir de seus segredos
E em nós embora tarde era manhã.
Nem sei dizer Senhor o espanto e os medos.
Achar Senhor é pão que mata a fome
Da ânsia de mais mundo e de mais luz.
E ao monte grande o Capitão pôs nome
De Pascoal. E à terra de Vera Cruz.
Lisboa, Publicações Europa-América, s.d.
Descobrimento
Sophia de Mello Breyner Andresen
Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados
Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam as crinas nos alísios
O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados
Brasil ou do outro lado do mar
Obra Poética III, Lisboa, Ed. Caminho
Carta de Pero Vaz de Caminha
Luís Filipe Castro Mendes
É equívoca a ternura. Demasiados gestos
Para uma só palavra.
E agora que será de nós? Ficar aqui?
Esta terra contém água em demasia.
Prefiro a inteireza da pedra. Mas que podemos nós fazer
Quando as palavras sobram
E o amor acontece?
Rio Caí
Rui Rasquilho
Encontrada a terra
Na coincidência da Páscoa
Caminha olhou da grande nau
A praia
E escreveu ao Rei
Nu
O dono da terra
Olhou o branco marítimo
Trazido pelo vento
A praia clareava a floresta
Junto do mar
Enfeitada de penas e flechas
De espadas
No vermelho branco do encontro
A surpresa não teve fingimento
Na vertigem do silêncio da palavra
O Rei
Leu a carta de Caminha
E ordenou a invenção da história
Como se nada fosse o que era
25 Poemas brasileiros e uma Saga Lusitana
Thesaurus, Brasília, 1997
Em defesa de Caminha e de nosso caráter
D. Manuel I, o Venturoso – Afinal, o Rei atendeu Caminha
e fez seu genro retornar a Portugal?
Difundiu-se pelas terras descobertas por Cabral, em favor da diminuição de nosso caráter, o boato de que o nepotismo e a corrupção do País brasílico se originaram no primeiro texto escrito sobre a Ilha de Vera Cruz. O escriba da esquadra cabralina teria aproveitado a comunicação com o Rei de Portugal e pedido a ele um emprego para parente. Para apimentar ainda mais a fofoca, disseram que era para um sobrinho seu, o que caracterizaria o nepotismo (embora sua correta acepção não seja essa). Erro de quem não leu ou passou superficialmente pela carta de Caminha.
Em verdade, em verdade vos digo: Caminha tão somente aproveitou a carta (que levaria algum tempo para chegar a Portugal e, portanto, não haveria uma próxima segunda oportunidade para fazê-lo) para solicitar a Sua Alteza a vinda (provável transferência) de seu genro Jorge de Osório, por alguma razão situado, naquele momento, na Ilha de São Tomé, na costa da África, colônia portuguesa desde 1470, quando João de Santarém e Pedro Escobar a descobriram (hoje é a República de São Tomé e Príncipe, independentes desde 1975, e faz parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP). Imagine-se as condições de vida naquela colônia, inabitada até a data de sua descoberta pelos navegadores lusos.
É preciso que lembremos que, naquele tempo, embora Portugal fosse uma potência econômica mundial, líder no setor de navegação, era ainda um país pequeno, em relação aos dias de hoje. O Rei tinha poder discricionário e somente ele podia definir a sorte dos funcionários da corte. Além disso, Pero Vaz de Caminha era Cavaleiro da Corte, durante os reninados de D. Afonso V, D. João II e, na época do descobrimento, D. Manuel I, por quem fora nomeado escrivão em Calecut, integrado à armada de Pedor Álavres Cabral. Tinha, portanto, intimidade com a corte e lhe era perfeitamente permitido tal aproximação com o monarca. Ora, ao pedir a transferência de seu genro daquela ilha, distante de Lisboa em cerca de 4.500 quilômmetros, Caminha não estava a utilizar nenhum favor especial. Simplesmente fazia um requerimento bastante compreensível para reunir sua família em Portugal (ao lado de um genro, sempre há uma filha). Pedido que podia ser atendido ou não. Onde estão a corrupção e o nepotismo?
Mais razões há para registrarmos o início de nossa saudável miscigenação, como observa Carlos Eduardo de Soveral, no Dicionário de Literatura, ao ver na Carta “o mais vivo testemunho relativo ao reconhecimento oficial da terra de Vera Cruz. Nela se patenteia com pitoresco inexcedível a impressão que no civilizado, saído da Idade Média, infunde o espectáculo genesíaco, e também, especialmente, o atrativo que a mulher indígena exerce na forte compleição do português”. Depois, seria a vez da mulher da africana, cujo relacionamento com “a forte compleição do português” daria origem a formosas mulatas. Pena é que, hoje, haja quem lute em favor do retrocesso, com tantas iniciativas para se implantar o neoracismo no Brasil.