Arquivo do mês: março 2010

Tragilirismo em Rafael Nolli

Bilhete encontrado em um buquê de rosas

L. Rafael Nolli


Se eu não te amasse, te mataria com prazer.
Te esqueceria numa cova rasa, em beira de estrada,
para que cães pudessem lhe desenterrar —
arrastá-la pelo asfalto em pedaços repletos de vermes
xxxxxxe de moscas.

Se eu não te amasse, te jogaria da ponte –
como se lê todos os dias nos jornais –
só para vê-la voar desesperada, sujar o chão
e menstruar a cara de merda dos passantes
xxxxxxe suas blusas impecáveis.

Se eu não te amasse, te sufocaria com o travesseiro
(seria perigoso dormir comigo). Te picaria
com a faca cega da cozinha. Pela noite,
prepararia uma travessa de yakisoba
xxxxxxe me tornaria canibal.

Se eu não te amasse, te atormentaria amiúde.
Faria com que Hitchcock dirigisse os teus
pesadelos. Te acordaria com sussurros de so-
cos no ouvido — se eu não te amasse,
xxxxxxseria isso que eu faria.

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Ilustração: Cleto de Assis

Dicas de Fernando Pessoa – 06

Fernando Pessoa - desenho de V. Loz, Itália

Regra é da vida que podemos, e devemos, aprender com toda a gente. Há coisas da seriedade da vida que podemos aprender com charlatães e bandidos, há filosofias que nos ministram os estúpidos, há lições de firmeza e de lei que vem no acaso e nos que são do acaso. Tudo está em tudo.

Em certos momentos muito claros da meditação, como aqueles em que, pelo princípio da tarde, vagueio observante pelas ruas, cada pessoa me traz uma notícia, cada casa me dá uma novidade, cada cartaz tem um aviso para mim.

Meu passeio calado é uma conversa contínua, e todos nós, homens, casas, pedras, cartazes e céu, somos uma grande multidão antiga, acotovelando-se de palavras na grande procissão do Destino.

Do Livro do Desassossego, provavelmente em 1932

O que é um Poema? Solivan responde

E o que é um poema?

Solivan Brugnara


O que é um poema?

A melhor definição de algo é sempre sua palavra,
fora a palavra toda a definição é incompleta.

Pode se dizer que um homem
é um bípede,
mas se alguém não anda
ele continua sendo humano.

Que são racionais
mas se alguém nasce sem cérebro
ele continua sendo humano,
portanto bípede e racionais são em si conceitos falhos
que não servem para todos os humanos,
então a melhor definição para o que é homem
é a palavra homem.

Como a melhor definição para a poesia
é a palavra poesia.
E a melhor definição da uma árvore
é a palavra árvore,
e a melhor definição da pedra
é a palavra pedra.

E uma pedra tem alma
e uma árvore também tem alma,
tudo tem alma,
porque, se olhássemos
as pedras
apenas como pedras
e as árvores
apenas como árvores
nós é que não teríamos alma.

Porque uma pedra
não olha a alma de  outra pedra
nem uma árvore
olha para alma de outra árvore.

Apenas quem tem alma
consegue ver almas em coisas
inanimadas.

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Ilustração: Cleto de Assis, sobre Pensador, de Rodin

Poesia, a parnacéia*


* Parnacéia— de Parnasòs (monte da Grécia onde se encontrava a morada de Apolo e das Musas, depois também passou a significar academia ou reunião de poetas, coletânea de poemas) e céia, do grego ákos, remédio. Neologismo criado no laboratório do Banco da Poesia, semelhante a panacéia, remédio que cura todas as doenças. (C. de A.)

Conta nova: Carlos Couto

Mais um novo correntista do Banco da Poesia para saudarmos: Carlos Couto (nome completo: Carlos Alberto do Couto Coelho), escritor, poeta e ensaísta. Nasceu na cidade de Rio Grande, RS, é engenheiro civil de profissão. Publicou quatro livros, Denúncia Vadia (pensamentos e reflexões de cultura rasa); Sangue Novo na Anemia (coletânea de poesias
da Confraria Terra dos Poetas, da qual participou o nosso correntista Solivan Brgnara); Quem Mexeu no Meu Poema? (poesias) e A Paisagem de Dentro (poesias e haicais). Foi colaborador da coluna O Impopular, no jornal Correio do Paraná e fundou a Confraria Terra dos Poetas, entidade
cultural com objetivos de promover, apoiar e desenvolver atividades de cunho literário.

Atualmente vive em Curitiba. Vamos degustar seus poemas, que também podem ser encontrados no blog do autor, [no poem].


Descartes, o pensamento e a pedra de existir


1.
Penso:
– sou pedra,
logo,
– triste e demente,
existo.

2.
Vejo a pedra,
oca de abstrações,
ela não pensa,
mas eu sei que ela existe.

3.
Quem pensa que é pedra,
existe,
e pedra, que não pensa,
também.

Poema de um mar inventado


Desenhos de um mar inventado,
são náufragos, esboços que flutuam
então rasuras, ora são marinheiros reflexivos
e um vazio com gosto de maresia:
– a sede de minha mão são palavras de papel.

Onde o mar e o tempo

Onde o mar, eu flutuo.
Estou acelerado,
então o tempo… recuo.

Onde o mar, eu navego.
Estou consumado,
então o tempo… me nego.

Onde o mar, eu sonho.
Estou fragmentado,
então o tempo… me recomponho

Onde o mar, eu reflito.
Estou amordaçado,
então o tempo… grito.

Onde o mar, eu enjoo.
Estou ancorado,
então o tempo… lanço-me no voo.

Onde o mar, eu naufrago.
Estou desequilibrado,
então o tempo… me embriago

Onde o mar, eu me jogo.
Estou angustiado,
então o tempo… me afogo

Onde o mar, eu afundo.
Estou cansado,
então o tempo… abandono o mundo.

A ordem das coisas


xxx(primeiro o medo)
somente minha sombra ao mar rugia
como se fosse um arpão
atado às minhas tíbias
então ruminei o silêncio
junto ao grave rosto do medo
fuga foi o que desejei
mas estar acordado
apontava-me setas e dedos
e então vi que o medo é um animal assustado
engolindo seu próprio corpo
e o medo digere a pedra de seu peso
e tece suas próprias algemas

o medo é um grito na escuridão
com medo de ser ouvido

xxx(depois o anseio)
quando eu morri
inclusive o medo era escasso
os dias foram noites lentas
e cada minério do sono
cumpria o peso das horas perdidas
inaugurei então o esquecimento
extinguindo o fogo de estar vivo
depois verti o anseio de estar afundando
no redemoinho do tempo breve

morrer não é partir
é desistir
deixar-se levar

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Ilustrações: Cleto de Assis

Nova correntista: Cláudia Regina Telles

claudia-regina-telles-1Cláudia Regina Telles, que se considera multiartista, é natural de Luis Alves, SC, e reside em Itajaí há quatro anos. Diz ela: “Sou canceriana regida pela Lua, a mesma Lua que me inspira nos devaneios e nos humores e me faz transpirar na busca dos segredos do conhecimento e da vida. Tive a vivência de menina do interior: descalça, brincadeiras nos pastos, comer fruta do pé, tarefas coletivas de fazer biju e cuscuz, doce de goiaba,  chás e benzeduras de avós, sarau de vô violeiro, cantorias nas festas de família, o engenho de farinha, ritos de fé, cirandas e bolas de gude, cabanas no meio do mato”.

Também informa que sua escritura é marcada e construída pelas histórias da menina e pelos poemas da adolescente. Graduada em Letras (UNIVALI), onde participou de varais literários e saraus, a mulher adulta foi levada pelos ventos das suas escolhas e dedicou tempo e energia a conhecer, atender as demandas de sua curiosidade, experiências com múltiplas linguagens das artes, amor pelo cinema e a música, sempre recordando as raízes na cultura popular.

Sua multiartisticidade produz performances poéticas, com mistura de canto, dança, artes visuais, construção de figurinos artesanais, além de utilizar sua experiência em arte-educação, como contadora de histórias, linguagens de teatro e educação popular. Desenvolve também seu trabalho em uma rádio comunitária de Itajaí, com o programa semanal Contando e Cantando Histórias. Seu lado de ativista cultural integrou-a, desde 2008, à Câmara Setorial de Literatura de Itajaí, que coordena, e representa o setor de Literatura no Conselho Municipal de Cultura. É membro e secretária da AAPI (Ass. de Artes Plásticas de Itajaí) e da Frente de Defesa da Cultura Catarinense.

E ainda sobra tempo para escrever e poetar, como veremos abaixo. Aliás, atividade que está em primeiro lugar, segundo ela: “Antes de tudo, sou um ser que ama a poesia,  uma ‘desassossegada’ diante do mundo e, acima de tudo, uma pessoa em eterno aprendizado e busca. Porque ‘saber não ocupa espaço’, como diz a sabedoria popular.”

Nossas boas vindas à nova correntista do Banco da Poesia!

Receita de poesia


Capturar a imagem de alguma insignificância que voa,
um vento que passa,
um corpo que brinca de alegria,
uma agonia de dor, lamentos de amantes,
saudades, solidão.
Caso você não tenha estes ingredimentes à sua disposição,
imagine-os, que é a mesma coisa.
Coloque tudo e vá adicionando e  misturando palavras.
Cuidado com o exagero.
Servir quente ou fria, tanto faz,
excelente para todas as ocasiões,
sempre que sentir vontade
ou doer o ferimento ou a cicatriz.

Lenço lilás

Lenço lilás
Lânguida leveza
Levada ao vento
Lembra pétala azulada
Lançada liberta
Ligeira
Veloz
Vais a longes luzes
Ametista no ar…

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Ilustrações: C. de A.

Iriene Borges mitológica

Musas, medéias, medusas

Iriene Borges


Sacerdotisa do estranhamento,
a admiração suscita o zelo de procurar
a sombra do teu titereteiro
embora áspera a urdidura dos indícios
e fios soltos desvelem tua vileza

Cavalgadura da vilania,
dor é louro com que a musa me coroa,
mordaças reabastecem meu tinteiro
e dos ardis em que me enleias
teço a estopa que mantém a idéia acesa

Anjo obtuso do aniquilamento,
a perspicácia é o avesso da tua malícia.
Ainda é dádiva do artista a visão perspícua
e saber tanto abençoa quanto perturba

Mensageira da minha alforria
provar da tua sordícia é ordem da musa
para que nada escape à pena oblíqua
e seu legado grafe-se em tinta rubra

Iriene Borges da Silva, março de 2010

Lições de Quevedo, 400 anos depois

Estamos acostumados, na comunicação cotidiana, a usar certos vocábulos sem saber exatamente a sua origem. Assim, muita gente utiliza a expressão “coisa barroca” ao referir-se a algo antiquado, rebuscado. Ao modo de  falar com muitos floreios dizemos “linguagem gongórica”. Quase sempre generalizamos tais expressões e esquecemos que há particularidades distintas entre barroco e gongorismo. Melhor dizermos que o gongorismo (ou estilo de Góngora) está contido no período barroco.

E por que estou a escrever sobre isto? Porque mergulhei numa pesquisa sobre Francisco de Quevedo, escritor e poeta espanhol do Séc. XVI, considerado um dos mais representativos literatos espanhóis daquela época. Quevedo e Góngora foram dois gênios que viveram em mesmos tempo e locais, porém não (con)viveram intelectualmente. Hoje a história da cultura os uniu, mas eram tórridos inimigos.

O vasculhar de minha curiosidade sobre a vida e obra de Quevedo, a quem conhecia por raros exemplos poéticos e vagas referências, resultou apenas em um arranhão epidérmico na vasta passagem do escritor por terras de Espanha. Mas foi o bastante para conhecer determinados episódios de sua vida e de seu relacionamento social que definiram seu caráter duro e acrimonioso, dentro da genialidade intelectual. Para mim, pelo menos, foi uma grande lição escolar.

O resultado foi a produção de um texto um pouco mais longo que os usualmente publicados no Banco da Poesia, que procuram se limitar a alguns comentários sobre os poetas e poemas selecionados. Mas, para usar a metáfora deste blog, qualifico este pequeno estudo como uma arca de tesouros encontrada (ou garimpada, como sempre diz Manoel de Andrade) e agora depositada neste estabelecimento de economia poética como preciosa relíquia.

Esta não é uma leitura obrigatória, pois foge ao conceito de que a Internet deve conter textos curtos e palatáveis. Mas sei que nossos leitores, amantes da Poesia, sempre estão dispostos a percorrer os meandros do trabalho criativo que envolve os autores. E a história de Quevedo, aqui resumida, é importantíssima para a história da literatura.

Cheguei a traduzir um dos mais notáveis poemas de Quevedo, no qual ele satiriza os costumes de sua época, em nada menos que 68 tercetos (ou 205 versos, já que a última estrofe é uma quadra). Se juntado ao texto principal, teríamos uma longo post a assustar os leitores. Fica para outra ocasião a Epístola Satírica y Censoria contra las Costumbres Presentes de los Castellanos, escrita a Don Gaspar de Guzmán, Conde de Olivares, en su Valimiento, cujo título já é quilométrico.

Sobre as traduções, um recado aos mais exigentes. Sempre é bom lembrar que os poemas de Quevedo e Gôngora foram escritos há mais de 400 anos. Portanto, o cuidado com a transposição dos textos para nosso idioma, embora criterioso, não pretendeu produzir uma versão acabada, pois faltaram tempo e maior conhecimento sobre a linguagem de época. Há termos que os dicionários atuais já nem registram. E, como sempre afirmo, muitas vezes o tradutor tem que mudar vocábulos, com a máxima obediência ao significado, para conservar a métrica, o ritmo e a rima, quando necessário. A semelhança entre o Português e o Espanhol nem sempre é boa auxiliar. Considerem, portanto, as traduções apenas como apêndices esclarecedores dos originais. Algumas vezes tive que desobedecer aos parâmetros da composição original.

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Francisco Gómez de Quevedo y Santibáñez Villegas (Madri, 14 de Setembro de 1580 – Villanueva de los Infantes, Cidade Real, 8 de Setembro de 1645) foi um escritor do período barroco espanhol, considerado, ao lado de Luiz de Góngora y Argote (1561-1627, religioso, poeta e dramaturgo), um dos maiores nomes da literatura de seu país naquele período, hoje lembrado como o Século de Ouro. Quevedo foi filho de uma família rica e fez seus primeiros estudos no Colégio Imperial dos Jesuítas, em Madri – atualmente Instituto de San Isidro – e, em seguida, estudou nas universidades de Alcalá de Henares e Valladolid (então capital da Espanha), onde cursou disciplinas de teologia e aprendeu diversas línguas. Com 23 anos já se destacava como poeta.

Recebeu de Miguel de Cervantes elogios por seu trabalho. Mas Quevedo tinha intenções de seguir carreira política. Tornou-se conselheiro do Duque de Osuna, em 1613, e serviu na Sicília e em Nápoles (Itália), na época províncias espanholas. Porém, foi acusado de envolver-se em uma conspiração, como agente de Osuna, e teve que retornar a seu país, em 1618. Foi desterrado em suas possessões na Torre de Juan Abad, depois aprisionado no monastério de Uclés (Cuenca) e, em seguida,

Retrato de Felipe IV, por Velasquez

limitado a prisão domiciliar em Madri. Indispôs-se mais ainda por questões religiosas, ao defender com virulência a proposta de eleição do Apóstolo Santiago como padroeiro da Espanha, em oposição aos carmelitas, que propunham Santa Teresa. Isso lhe valeu novo desterro na Torre de Juan Abad. Foi uma fase azarada de sua vida, que marcou bastante o seu caráter acre. Um tanto isolado socialmente, entrou em uma crise religiosa e espiritual, mas desenvolveu uma grande atividade literária. Com o advento do reinado de Felipe IV, sua sorte mudou. O rei levanta seu desterro, porém ele já estava dominado pelo pessimismo. Nessa fase produziu desde versos satíricos até tratados filosóficos.

Seus sonetos mais marcantes tratam da brevidade da vida. Faz paródias das obras de Góngora, autor de estilo complicado, seu contemporâneo e rival nas letras, inventando expressões que deixam o verso incompreensível. Publica um conjunto de textos satírico-morais sob o título Los Sueños (Os Sonhos, 1627).

Mas a literatura e, sobretudo, a poesia, não lhe retiraram a vocação política, que o envolveu em importantes intrigas de seu tempo. Era douto em teologia e conhecedor do hebraico, grego, latim e outras línguas modernas. Sua grande cultura e a acrimônia crítica destacaram-no como  inimigo pessoal e literário do culterano Luis de Góngora.

Seu casamento com a viúva Esperanza de Mendoza (1634) não lhe proporcionou felicidade. Em poucos meses estava separado, juntando, assim, a misoginia entre os valores pessimistas que carregava.

Novamente é tentado pela política, em razão dos conflitos sociais em que a Espanha estava envolvida, e escreveu amargas diatribes contra o Conde-duque de Olivares, favorito do rei. Mais tarde, viu-se em meio a uma obscura denúncia de conspiração e foi acusado de desafeto ao governo. Em 1639 foi encarcerado no monastério de São Marcos (León),  hoje uma pousada turística de luxo, mas em sua época uma infecta prisão, fonte de declínio de sua saúde.

Em 1643, quando foi libertado, já era um homem acabado. Abriga-se, então, em suas possessões na Torre de Juan Abad, antes de instalar-se em Villanueva de los Infantes, onde morreu, em 1645.

Mas Francisco de Quevedo pertenceu também à nobreza do Século XVII, e ostentou os títulos de Cavaleiro da Ordem de Santiago e Senhor da Torre de Juan Abad.

Sua obra literária é imensa e contraditória. Muito culto, amargo, agudo, cortesão, escreveu as páginas burlescas e satíricas mais brilhantes e populares da literatura espanhola, mas também uma obra lírica de porte e textos morais e políticos de grande profundidade intelectual, que lhe fizeram merecer o título de principal representante do barroco espanhol. Criticou com atroz mordacidade os vícios e debilidades da humanidade e humilhou de modo cruel seus inimigos, como no conhecido soneto, paradigma conceitista: Érase un hombre a una nariz pegado*… .

A una nariz

Érase un hombre a una nariz pegado,
érase una nariz superlativa,
érase una nariz sayón y escriba,
érase un peje espada muy barbado.

Era un reloj de sol mal encarado,
érase una alquitara pensativa,
érase un elefante boca arriba,
era Ovidio Nasón más narizado.

Érase un espolón de una galera,
érase una pirámide de Egipto,
las doce Tribus de narices era.

Érase un naricísimo infinito,
muchísimo nariz, nariz tan fiera
que en la cara de Anás fuera delito.

A um nariz

Era um homem a um nariz colado,
um raro nariz superlativo,
era um nariz perverso e esquivo,
era um peixe espada bem barbado.

Era um relógio de sol bem tartamudo,
era um alambique pensativo,
era um elefante ambulativo
era Ovídio Naso mais narigudo.

Era um quebra-mar de uma galera,
era uma pirâmide do Egito,
as doze Tribos de narizes era.

Era um narizíssimo infinito,
muitíssimo nariz, nariz tão fera
que na cara de Anás fora delito.

Em sua poesia amorosa, fundada em Francesco Petrarca (1304 – 1374), na qual o que conta é a profundidade do sentimento, Quevedo viu a possibilidade de explorar o amor como o que dá sentido à vida e ao mundo. Exemplo disso é o soneto Cerrar podrá mis ojos la postrera… que é um dos mais belos das letras espanholas, no qual a morte não vence o amor que permanecerá no amante, como fica evidente no último terceto. É um poeta genial, cuja permanente atualidade, maravilhosa capacidade criadora do idioma castelhano, honradez moral e elevada lírica, lhe dão um lugar preeminente na poesia espanhola.

Amor constante más allá de la muerte

Cerrar podrá mis ojos la postrera
sombra que me llevare el blanco día,
y podrá desatar esta alma mía
hora a su afán ansioso lisonjera;

mas no, de esotra parte, en la ribera,
dejará la memoria, en donde ardía:
nadar sabe mi llama la agua fría,
y perder el respeto a ley severa.

Alma a quien todo un dios prisión ha sido,
venas que humor a tanto fuego han dado,
medulas que han gloriosamente ardido:

su cuerpo dejará no su cuidado;
serán ceniza, mas tendrá sentido;
polvo serán, mas polvo enamorado.

Amor constante além da morte

Cerrar irá meus olhos a derradeira
sombra que me levará o branco dia,
e desatará minh’alma na umbria
agora a seu afã ansioso lisonjeira;

mas não, dessoutra parte, na ribeira,
deixará a memória, aonde ardia:
nadar sabe minha chama a água fria,
e perder o respeito a lei severa.

Alma a quem todo um deus prisão há sido,
veias que humor a tanto fogo hão dado,
medulas que hão gloriosamente ardido:

seu corpo deixará, não seu cuidado;
serão só cinza, mas terá sentido;
pó se tornarão, mas pó enamorado.

De sua prolífica obra em verso, se conservam quase 900 poemas. Em sua prosa cabe assinalar La vida del Buscón llamado don Pablos; Política de Dios y gobierno de Cristo; Vida de Marco Bruto; Los sueños e Los nombres de Cristo.

Entre seus poemas há muitos sonetos hendecassílabos, mas também há grande quantidade de romances octossílabos e redondilhas**. O poema intitulado Epístola satírica y censoria… , a que me referi no início,  é uma composição magistral de tercetos hendecassílabos encadeados.

Luiz de Góngora

Durante muito tempo, os estilos de Luis de Góngora e Francisco de Quevedo foram apresentados como diametralmente opostos. A origem desta consideração deve-se a Marcelino Menéndez y Pelayo (1884: II, IX) que apresentou as escolas de Góngora e Quevedo como contrárias. E esse modo de apresentá-las tergiversou o verdadeiro enfrentamento poético da época: a polêmica que surgiu com a aparição das Soledades, do poeta andaluz. Os defensores da claridade nos poemas atacaram a nueva poesía e os cultos, seus seguidores. O vocábulo culteranismo lembra  luteranismo e traz a idéia de heresia literária que se deve combater. A raiz é culto, particípio do verbo cultivar, que já tinha o significado de douto ou erudito. A poesia construía-se conforme uma tendência latinizante no léxico e na sintaxe.

O conceitismo se caracteriza pela concisão da expressão e a intensidade semântica das palavras, carregadas de significados, adotando vários sentidos. Deste modo se cria frequentemente a linguagem polissêmica. O conceitismo opera com os significados das palavras e com as relações engenhosas entre elas. Por tudo isso, os recursos formais mais usuais são a elipse, a zeugma, a anfibologia e polissemia, antítese, equívoco, paradoxo ou a paronomásia. O estilo conceitista se faz lacônico e sentencioso.

Assim como o culteranismo ou gongorismo, o conceitismo, na linha de toda a estética maneirista e barroca, propõe como valor estético a dificuldade da linguagem literária, que busca singularizar-se e refinar-se cortesanamente, frente à lhaneza da língua do Renascimento, sentida como vulgarizante.

Para dificultar a mensagem, o conceitismo opta por concentrar o máximo pensamento no mínimo de forma e escolhe prioritariamente a prosa, ao contrario do Culteranismo, estética que segue o procedimento oposto de amplificar um mínimo de pensamento em um máximo de forma labiríntica que impressione e confunda os sentidos, e que se exerce principalmente sobre o verso. Daí o conceito ter se espraiado para as demais artes do período, criando a idéia de que o barroco (ou gongórico) era produzido com um excesso de ornamentos.

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* Como curiosidade, incluo aqui duas interessantes composições. A primeira, um pequeno poema satírico de Manuel Maria Barbosa du Bocage (Portugal, 1765-1805). A segunda,  a letra de uma música de Juca Chaves (Jurandyr Czaczkes, Rio de Janeiro, 22 de outubro de 1938), ambas citadas pela semelhança com o tema da sátira de Quevedo.

Nariz, Nariz e Nariz / Bocage

Nariz, nariz, e nariz,
Nariz, que nunca se acaba;
Nariz, que se ele desaba,
Fará o mundo infeliz;
Nariz, que Newton não quis
Descrever-lhe a diagonal;
Nariz de massa infernal,
Que, se o cálculo não erra,
Posto entre o Sol e a Terra,
Faria eclipse total!

Nasal Sensual / Juca Chaves

Nariz, ai, meu nariz,
Como falam mal deste nasal que é tão normal,
Ouço diariamente muita gente infeliz,
Dizer que ele é maior do que a miséria do país,
E que ele é maior ainda que o Pelé,
Dizem até que é maior que o busto da Lolô,
Maior ainda que o sorriso do Nonô.

Nariz, ai, meu nariz,
Vende-se este apêndice ou então se dá de graça,
Pedùnculo antiestético, grosseira massa,
Que nada tem de belo ou de poético,
E é uma desgraça o dito cujo narigão,
Ao qual só há uma solução, que é drástica,
Preciso urgentemente de uma plástica.

Perdão, Senhor, perdão,
Perdão pra tal narigão que é a sensação mais atual,
Porque se ele caísse um dia ao chão, que dramalhão,
Causaria a hecatombe universal.

Nariz, ai, meu nariz,
Ria o mundo imundo, não faz mal, eu sou feliz,
Não sabem o porquê desta felicidade,
A minha personalidade está neste nariz,
Que além de lindo, é um romântico sensual,
Pois toda vez que beija a namorada, idolatrada,
Quem chega na vanguarda é o meu nasal,
E ponto final.

**Antigamente, quadra de versos de sete sílabas, na qual rimava o primeiro com o quarto e o segundo com o terceiro, seguindo o esquema abba. Hoje, verso de cinco ou de sete sílabas, respectivamente redondilha menor e redondilha maior.

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A guerra verbal entre Quevedo e Góngora

Baltazar Gracián

A inimizade literária entre os dois gênios espanhóis do período barroco levou-os a discutir conceitos de composição poética. Quevedo seguiu a linha criada por Baltasar Gracián y Morales (1601 – 1658), que definiu conceito como um “ato do entendimento que expressa a correspondência que se acha entre os objetos”.

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Mas a oposição entre as teorias literárias também produziu duelos em versos, que tornaram ainda mais conhecida a rivalidades entre os dois poetas. Abaixo vão dois exemplos de troca de farpas verbais. As batalhas foram muitas.

Quevedo

Yo te untaré mis obras con tocino
Porque no me las muerdas, Gongorilla,
Perro de los ingenios de Castilla,
Docto en pullas, cual mozo de camino.

Apenas hombre, sacerdote indino,
Que aprendiste sin christus la cartilla;
Chocarrero de Córdoba y Sevilla,
Y en la Corte, bufón a lo divino.

¿Por qué censuras tú la lengua griega
siendo sólo rabí de la judía,
cosa que tu nariz aun no lo niega?

No escribas versos más, por vida mía;
Aunque aquesto de escribas se te pega,
Por tener de sayón la rebeldía.

Góngora

Anacreonte español, no hay quien os tope.
Que no diga con mucha cortesía,
Que ya que vuestros pies son de elegía,
Que vuestras suavidades son de arrope.

¿No imitaréis al terenciano Lope,
Que al de Belerofonte cada día.
Sobre zuecos de cómica poesía
Se calza espuelas, y le da un galope?

Con cuidado especial vuestros antojos
Dicen que quieren traducir al griego,
No habiéndolo mirado vuestros ojos.

Prestádselos un rato a mi ojo ciego,
Porque a luz saque ciertos versos flojos,
Y entenderéis cualquier gregüesco luego.

Quevedo

Eu untarei minhas obras com toucinho 1
Para que não as mordas, Gongorela, 2
Cão dos engenhos de Castela, 3
Douto em pulhas, qual servente de caminho. 4

Apenas homem, sacerdote indigno,
Que aprendeste sem christus a cartilha;
Boca suja de Córdoba e Sevilha,
E em plena Corte, bufão ao divino.

Por que censuras tu a língua grega
se és somente um rabi mosaico,
coisa que teu nariz jamais o nega?

Não sejas mais poeta ou prosaico,
Ainda que isso de escriba já te pega
Mas tu só és rabiscador judaico. 5

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1 Referência à proibição de comer carne de porco aos judeus.
2 Diminutivo depreciativo.
3 Referência a insulto “cão judeu”.
4 Trabalho indigno.
5 Para manter a rima, expressões dos dois últimos tercetos foram alteradas pelo   tradutor, que procurou manter os conceitos e metáforas originais.

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Góngora

Anacreonte espanhol, não há quem vos tope, 1
Que não diga com muita cortesia,
Que já que vossos pés são de elegia,
Que vossas suavidades são de xarope. 2

Não imitareis ao terenciano Lope, 3
Que ao de Belerofonte cada dia. 4
Sobre chinelas de cômica poesia 5
Se calça esporas, e lhe dá um galope?

Com cuidado especial vossos antolhos
Dizem que querem traduzir ao grego,
Não lhe havendo mirado vossos olhos.

Cedei-os um tanto a meu olho cego,
Para que a luz produza versos trambolhos
E qualquer greguice entendereis, não nego.

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1 Ironia com referências ao poeta grego Anacreonte, muito imitado no Renascimento.
2 Comparação irônica: pés de elegia (versos clássicos) versus suavidades de xarope (áspero, abóbora doce de gosto áspero).
3 Alusão a Félix Lope de Veja (1562-1635), dramaturgo e poeta espanhol; terenciano por seguir literariamente a Terêncio, Publius Terentius Afer, (ca. 170 a.C. — 160 a.C. ou 185 a.C. — 159 a.C.), dramaturgo e poeta romano.
4 Personagem da mitologia grega, dono do cavalo Pégaso.
5 Imitador de poesia cômica.

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A la mar

La voluntad de Dios por grillos tienes,
Y escrita en la arena, ley te humilla;
Y por besarla llegas a la orilla,
Mar obediente, a fuerza de vaivenes.

En tu soberbia misma te detienes,
Que humilde eres bastante a resistilla;
A ti misma tu cárcel maravilla,
Rica, por nuestro mal, de nuestros bienes.

¿Quién dio al pino y la haya atrevimiento
De ocupar a los peces su morada,
Y al lino de estorbar el paso al viento?

Sin duda el verte presa, encarcelada,
La codicia del oro macilento,
Ira de Dios al hombre encaminada.

Ao mar

A vontade de Deus por grilhões tens,
E escrita na areia, a lei te humilha;
E por beijá-la chegas à orilha,
Mar obediente, a força de vaivens.

Em tua soberba mesma te deténs,
Que humilde és bastante a resisti-la;
A ti mesmo tua prisão maravilha,
Rica, por nosso mal, de nossos bens.

Quem deu ao pinho e à faia atrevimento
De ocupar aos peixes a morada,
E ao linho de estorvar o passo ao vento?

É certo que o ver-te preso, encarcerado,
A cobiça do ouro macilento,
Rancor de Deus ao homem encaminhado.

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Obra literária de Quevedo

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Política

  • Política de Dios, gobierno de Cristo y tiranía de Satanás, escrita em 1617 e impressa em 1635, onde tenta inferir uma doutrina política a partir dos Evangelhos.
  • Vida de Marco Bruto, 1644, onde desenvolve a biografia do famoso assassino de César, escrita por Plutarco, com um rigor quase matemático e onde o estilo conceitista atinge um nível praticamente inimitável.
  • Mundo caduco y desvaríos de la edad (escrita em 1621, editada em 1852)
  • Grandes anales de quince días (1621, ed. en 1788), análise da transição dos reinados de Filipe III e Filipe IV.
  • Lince de Italia y zahorí español (1628, ed. em 1852).
  • El chitón de Tarabillas (1630),onde critica as disposições econômicas do Conde-Duque de Olivares, insinuando a sua ascendência judaica.
  • Execración contra los judíos (1633), texto de cariz antissemita onde faz acusações, de forma velada, contra Dom Gaspar de Guzmán, Conde-Duque de Olivares, valido de Filipe IV.

Obras ascéticas

  • Providencia de Dios, 1641, tratado contra os ateus, onde tenta unificar o estoicismo com o cristianismo.
  • Vida de san Pablo, 1644.
  • Vida de Santo Tomás de Villanueva, 1620.

Filosofia

  • La cuna y la sepultura (1635).
  • Las cuatro pestes del mundo y las cuatro fantasmas de la vida (1651).

Crítica literária

  • La aguja de navegar cultos con con la receta para hacer Soledades en un día (1631), investida satírica contra os poetas que utilizam o estilo gongórico ou culterano.
  • La culta latiniparla (1624), manual burlesco onde se ridiculariza o estilo gongórico.
  • Cuento de cuentos (1626), onde demonstra o absurdo de alguns coloquialismos que carecem totalmente de significado.

Monumento a Quevedo em Madri (A. Querol, 1902)

Obras satírico-morais

  • Los Sueños, compostos entre 1606 e 1623, circularam manuscritos mas só foram impressos até 1627.
  • La hora de todos y la Fortuna con seso (1636),
  • O romance Historia de la vida del Buscón llamado Pablos, ejemplo de vagabundos y espejo de tacaños, impresso em Zaragoza em 1626.

Poesia

  • El Parnaso Español (1648)

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Fontes principais consultadas na Internet

http://www.los-poetas.com/f/bioquev.htm
http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno03-02.html
http://users.ipfw.edu/jehle/poesia/eraseunh.htm
http://www.realidadliteral.net/3paginaIII-5.htm
http://es.wikipedia.org/wiki/Conceitismo

Tradução dos poemas ao Espanhol: Cleto de Assis

Vera Lúcia reclama da Justiça

Vera Lúcia Kalahari envia uma crônica dura, na qual faz sua reclamação. E a reclamada é a própria Justiça, que não é aplicada de maneira justa para conter a fome e a sede dos ambiciosos de cada dia, distribuídos nos vários escalões da sociedade, principalmente nas esferas da administração pública, que deceriam ser as primeiras a dar exemplos de probidade.

Você sabe quem é o ladrão? O ladrão é… Melhor saber diretamente com Vera Lúcia, na página de Crônicas.  Clique aqui e boa leitura.

Ainda matando a sede

No domingo, enquanto preparava o post sobre o Dia da Água (ver abaixo), senti vapores de inspiração e me imaginei navegando por meu ser aquático, que já deve estar na proporção de 50%, se estiverem corretos os estudos hidrológicos do corpo humano. Terminado o trabalho mais importante, continuei no computador e as palavras seguintes verteram na tela, quase em caudal. Graças aos poetas que me acompanharm por toda a tarde.

Sou água

Cleto de Assis


Sou água impura
sem cura,
em busca da transparência.
xxxxSou água escura
xxxxsem resplendência.

Mas tenho a vontade de ser
água potável ofertada
aos que têm sede, golada,
sorvida, transfigurada.

Sou a água na parede
Lacrimejante do inverno.
Sou água em vapor no inferno
a tentar fuga sem rumo.
Sou água do fio de prumo
buscando o nível da vida.
Eis-me água estremecida
pela brisa sussurante
que o espelho desalisa.
Sou água que catalisa
A energia semovente.
Sou essa água corrente
em busca do mar sem fim.
Sou chuva de tempestade,
sou garoa da cidade,
sou a gota do rocio,
sou goteira, sou o rio,
rios que tenho em mim.

Curitiba – 21.mar.2010