Os encontos de João Defreitas

O tempo da memória

Conheço João Correia de Freitas há muitos anos. Convivemos em Brasília, quando assessoramos o então Ministro da Educação, Ney Braga. Tínhamos filhos ainda pequenos, quase coetâneos, que reforçaram o elo de amizade entre as duas famílias. Depois do exílio planaltino, nos reencontramos em Curitiba. Como diretor pedagógico da Facinter, núcleo inicial do atual grupo Uninter, ele convidou-me para auxiliar na implantação da metodologia de Educação a Distância em sua faculdade, ao lado do fundador Wilson Picler. Ali consolidamos nossa amizade, que perdurou mesmo após meu desligamento da instituição.

Parnanguara nascido e juramentado, Defreitas sempre revelou, em nossas conversas, os momentos de sua vida no litoral paranaense e, mais tarde, nas suas andanças pela Europa, onde viria conhecer a açoriana Alda Aguiar dos Santos Pereira. Por ela apaixonou-se e tiveram uma primeira filha portuguesa, antes de se mudarem definitivamente para o Brasil.

João Correia Defreitas

Com o advento da Internet e das redes sociais, Defreitas, já afastado das lides educacionais, passou a compartilhar suas memórias com amigos reais e virtuais, em croniquetas bem humoradas que sempre mereceram elogios de seus leitores. Historinha vem, historinha vai e a saudade manifesta o desejo de converter-se em texto gravado em letras de forma. O projeto foi entregue às mãos de uma editoria quase familiar. Sua filha, a arquiteta Mônica Defreitas Smythe, responsabilizou-se pela elevação poética dos textos, adornando-os com belas aquarelas. O genro, Nelson Smythe Jr. fez o projeto gráfico, também inspirado nas harmonias das palavras editadas. E não faltou a organização da amiga e antiga colega Profa. Vilma Aguiar, que também prefaciou a obra. A última pincelada foi da Editora Intersaberes, da Uninter, que cumpriu primorosamente o trabalho de editoração.

Como se trata de recordações, o livro tomou, simbolicamente, o formato de álbum de fotografias, daqueles em que as mamães colavam a vida de suas famílias, desde os próprios casamentos, passando pelo nascimento dos filhos, aniversários, férias, casamento dos descendentes. Antes, é claro, da fotografia digital, que encerrou a vida dos retratos revelados em laboratório especializado.A profusão das fotos feitas a cada instante pelos telefones celulares já não alimenta os relicários imagéticos familiares:  são guardados nos arquivos eletrônicos ou nas nuvens celestiais da informática.

Nas primeiras páginas, o altar carinhoso erigido na homenagem a Alda , a companheira que ajudou a fazer de João o mais lusitano dos parnanguaras. É bem possível que, em sua alma, o escritor tenha juntado as paisagens daqui e da península ibérica, modelando-as na memória com imagens comuns, que, sem serem rigorosamente bucólicas, guardam a simplicidade dos costumes, a tranquilidade da vida em contato com as pessoas simples e seus hábitos peculiares.

Li O tempo da memória em uma só assentada. Ou melhor, assentado em uma cadeira envolta no burburinho do público que compareceu ao lançamento. Um verdadeiro refrigério espiritual naquela manhã calorenta de sábado. Saí dali com maior admiração por meu amigo dileto. O único reparo – que tratei de comunicar ao autor – é a inexistência de um glossário, tanta a riqueza dos vocábulos regionais que ele apreendeu em suas andanças pela terrinha. Mas isso serviu de tempero extra para as narrativas minimalistas. E também me fez lembrar de José Paulo Paes (poeta a quem dedicarei, em breve, um lugar no Banco da Poesia), em seu poema Lisboa: Aventuras.



tomei um expresso
                                                           cheguei de foguete
subi num bonde
                                                           desci de um elétrico
pedi cafezinho
                                                           serviram-me uma bica
quis comprar meias
                                                           só vendiam peúgas
fui dar à descarga
                                                           disparei um autoclisma
gritei “ó cara!”
                                                           responderam-me “ó pá!”
                                                           positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá


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Sem pretender roubar dos próximos leitores do Prof. Defreitas as surpresas e os sabores de seus textos, não posso deixar de transcrever, à guisa de amostra grátis, as palavras dedicadas à sua Avó:

“A única lembrança que tenho de minha avó é essa historinha que ela contava: ‘Da morte ninguém escapa, nem o rei nem o papa. Mas hei de escapar eu: compro uma panela, que me custa um vintém. Meto-me dentro dela e tapo-me muito bem… Então, a morte passa e diz: Huum… quem está aí? Eu digo: aqui. Aqui não tem ninguém!!!’ Enfim, nunca a entendi muito bem, mas nunca esqueço da avó e dessa história. Foi a herança que ela me deixou.”

FotoLivro.png

Finalmente, também a serviço dos próximos leitores, devo dizer-lhes que não esperem contos ou crônicas de aprofundada reflexão. João Defreitas nos regala belos e poéticos momentos de sua memória. Encontros com a vida. Encantos. Encontos. Cleto de Assis/dez.2018

                                                          


Uma resposta para “Os encontos de João Defreitas

  1. A memória nos contém. Não somente somos feitos dela, mas nela estamos mergulhados.

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