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Marilda conta um causo

Batom vermeio

Marilda Confortin, Curitiba

……….— Me dá um cigarro aí, dona.
……….Gelei. Merda… Merda não. Mijo. Senti um forte cheiro de mijo e a ponta de uma faca nas minhas costas. Maldita lei anti-fumo. Ter que fumar aqui fora à uma hora dessas…
……….Traguei profundamente a fumaça do cigarro recém acendido, me virei devagar e dei de cara com meu assaltante madrugueiro.
……….— Passa o cigarro e o dinheiro.
……….Dei mais uma tragada no cigarro e entreguei a ele.
……….— Esse?
……….— Só tenho esse. É o último. É pegá ou largá.
……….Pegou, olhou curioso, girou entre os dedos.
……….— Mas, tá sujo de batom.
……….— To falando que é o último. Se não quer, me devolva! To louca pra fumar e você ta me roubando o último cigarro que tenho.
……….Fiz menção de pegar de volta. Afastou-se na defensiva com a faca apontada.
……….—  Que muiezinha braba! Nunca uma dona dividiu o último cigarro comigo… Ainda mais sujo de batom vermeio.
……….Como se eu não existisse,  começou a  brincar com o cigarro passando de uma mão para outra, intercalando com a faca. Cheirava o filtro, levava à boca, lambia o batom, tragava delicadamente, admirava a fumaça e beijava o cigarro como se fosse um presente, um fetiche.
……….Andou alguns passos adiante, parou, virou-se, me olhou demoradamente e me apontou com a faca novamente.
……….—  Vai ficá prantada aí, dona?
……….—  Não…
……….—  Então entra, muié. É pirigoso ficá aqui fora sozinha.
……….E foi andando, dançando como Chaplin, cantando assim: Batom vermeio, vermeínho… ganhei um cigarrinho tudo  sujo de batom vermeio,  vermeínho…

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Conto contado no Youtube

Renascimento de Deborah

Depois de alguns meses de confesso exílio criativo, Deborah O’Lins de Barros, a-moça-deitada-na-grama,  envia, lá de Itajaí, mais um miniconto. Bem vindo seu novo depósito, Deborah!

Era uma vez


…e o mal venceu. O braço direito do vilão perguntou:
– oh, líder, como viveremos agora?
Foram felizes para sempre.

Deborah O’Lins de Barros
07/02/2010

Um conto de Vera Lúcia Kalahari

Nossa amiga e correntista Vera Lúcia Kalahari nos envia, de Angola, um conto de sua autoria, premiado em 1973 em Lourenço Marques, atual Maputo, Luanda, Huambo e Benguela.

Mãe

xxxxxEsse era o dia em que Saiengue, o soba de Camanongue, esperava a chegada de seu filho único, vindo da cidade.
xxxxxO rapaz partira há seis anos e agora todos aguardavam o seu regresso: o pai, a velha mãe, a mulher, o filho e a filha. Nesses seis anos nenhum deles o vira e assim cada um o esperava anciosamente.
xxxxxA cubata erguia-se a certa distância do povoado, longe da única estação, e por isso não podiam saber a hora exata da chegada. Era uma pequena casa muito limpa, no meio de um extenso mangueiral, alinhado nas margens do rio. Do outro lado erguiam-se verdejantes montanhas que se perdiam em picos altos e nublados. No tempo do frio, o rio corria remansoso e pouco profundo. Mas quando as chuvas chegavam das serranias, as águas cresciam assustadoramente, lamacentas e escuras.
Todos se haviam vestido mais cedo e ficaram sentados pacatamente à espera. Lá estava o velho pai, a barba branca destacando-se no rosto negro e grave. Era um homem respeitado naqueles lugares.
xxxxxHoje, porque seu filho único voltava, pusera o seu melhor pano, que comprara há anos na cidade.
xxxxxAo lado do velho, sentava-se a mulher, a única que tivera em toda a sua vida, porque havia sido uma boa companheira, dócil e trabalhadora. Numa pedra mais baixa, sentava-se a nora, companheira do seu filho. Segurava uma fita longa de missangas, e seus dedos hábeis iam tecendo um cinto largo de cruzes miúdas, em carmesim. O seu rosto, nem feio nem bonito, denotava a ansiedade febril que a tomava. De vez em quando baixava-se para dizer qualquer coisa à pequenita que lhe brincava aos pés. Mais longe, debaixo de uma grande mangueira, um rapazito esguio tentava colher um fruto dourado. O velho tinha os olhos fitos no rapaz, mas via-se que o seu pensamento estava distante.
xxxxxA velha mãe virou-se para a nora e perguntou:
xxxxx— Compraste o peixe na loja do Calonjere?
xxxx —Sim, minha mãe, tratei de tudo.
xxxxxNa obscuridade da porta os seus olhos brilhavam na face escura.
xxxxxO miúdo escorregou, caíu e começou a chorar desalmadamente. A jovem mulher levantou-se rapidamente e limpou-lhe os calções do pó.
xxxxx— Cala-te! Teu pai está prestes a chegar e não gostará de te encontrar assim!
xxxxxO rapaz limpou as lágrimas com as mãos e sentou-se calmamente no capim áspero. O velho olhou o neto, alisou a barba branca e, sorrindo, disse:
xxxxx— Calomanga ficará satisfeito por ter à sua espera dois filhos como estes.Ele te agradecerá a maneira como trataste seus velhos pais nestes longos anos. Foi um bom dia aquele em que te trouxe para esta casa.
xxxxxMal havia acabado de proferir estas palavras, ouviu-se uma voz na curva do caminho. Era bem a voz de que eles se lembravam e que tanto desejavam ouvir, mas agora bem diferente das suas recordações.
xxxxx— Aqui estou!
xxxxxA velha mãe uniu as mãos com força sobre o regaço. O velho levantou-se rapidamente do chão. Os passos do recém-chegado ressoavam mais perto, na terra avermelhada. A mulher, que se deixara ficar sentada, de olhos fitos no solo, pôde ver os pés calçados de grossas botas e ouviu-o gritar:
xxxxx— Meu pai! Mãe!
xxxxx— Filho…— disse o velho.
xxxxxA sua voz tremeu e suavemente começou a chorar. A mãe acercara-se timidamente e tocou no braço do filho.
xxxxx— Calomanga, estás diferente. Não pareces o mesmo!
xxxxx— Mãe, seis anos não deixam ninguém na mesma – disse o rapaz numa voz clara e rápida.
xxxxxDepois, acercou-se da jovem mulher que se mantivera imóvel.
xxxxx— Então, Fuvuca, estás boa?
xxxxx— Foi a melhor das filhas para nós,Calomanga-falou o velho.
xxxxx— Sim?— interrompeu o jovem. — E onde estão os meus filhos?
xxxxx—Estou aqui…
xxxxxO pequeno abeirou-se lentamente e olhou aquele desconhecido, de sapatos de cabedal e de calças que eram de um tecido grosso e escuro, uma fazenda dos brancos. Calomanga passou-lhe a mão pelos cabelos ásperos , rindo.
xxxxx— Então foi nisto que se transformou o pequeno choramingas que deixei?
xxxxxA jovem mulher olhava-o agora abertamente. Sim! Como estava mudado! Seis anos na cidade haviam modificado seu marido, cheio de juventude e energia. Sentiu-se muito tímida e começou a chorar.
xxxxxApós uma longa pausa, como se cada um tentasse adivinhar os pensamentos do outro, Calomanga começou a falar. Dir-se-ia que falava apenas para preencher o vácuo que se estendia sobre eles.
xxxxx— Como é bom estar de volta! É pena continuar tudo tão atrasado!
xxxxx— Estamos na mesma – respondeu o velho pai, permanecendo um pouco pensativo.
xxxxx— Pois é…Habituado como estou à cidade, tudo me parece bem diferente – estas últimas palavras foram ditas com um certo ar de troça -.
xxxxxFuvuca sentiu um leve aperto no coração e, silenciosamente, afastou-se.

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xxxxxCalomanga havia distribuído os presentes que trouxera.
xxxxxA jovem esposa retirara-se para um canto, olhando o marido e os filhos que o cercavam.
xxxxx— Pai…tenho uma coisa para lhe dizer…
xxxxxO velho estremeceu e puxou com força a manta que lhe escorregava nas pernas. A fogueira bruxuleava, pondo sombras grotescas nas mangueiras que se erguiam em copas cerradas.
xxxxx— O pai sabe… — continuou o filho . — Na cidade vêm-se muitas coisas. Já não poderei ficar aqui. Acostumei-me a outra vida. Vim, para levar os meus filhos, para metê-los na escola dos brancos.
xxxxxOs pequenos começaram aos pulos, a gritarem radiantes.-
xxxxx— Irei no comboio…Irei no comboio…
xxxxxA miúda agarrou-se ao pai e perguntou ansiosamente:
xxxxx— Eu também vou?
xxxxx— Sim, tu vais também, — respondeu o pai com energia.
xxxxx— E Fuvuca? – falou o velho mansamente.
xxxxx— Bem…ela…pensei mandá-la de volta para o pai. Dar-lhe-ei dinheiro e nada lha faltará.
xxxxxO pequeno Jamba virou-se para a mãe, os olhos brilhando de satisfação.
xxxxx— Então irei para a escola! Sempre desejei isso!
xxxxxNenhum deles pensava em Fuvuca, reparava na sua expressão. Ninguém notou como ela tremia, a não ser o velho, que continuava sentado, acariciando a barba branca.
xxxxxCalomanga, radiante com a alegria dos filhos, exclamou:
xxxxx— Irás para a escola, verás grandes ruas, automóveis , tudo o que nunca viste até agora.
xxxxxA criança não se pôde conter:
xxxxx— Quando vamos? Eu quero ir já!

old_hands
xxxxxFuvuca olhou para aquele filho que acalentara ao longo das noites, que bebera do seu leite. Lembrou-se de quando lhe limpava a boca gotejante de leite branco. Era então aquele o seu filho! Este, encontrando o olhar da mãe, confessou, pensativo:
xxxxx— Sempre quis ir para a cidade, mãe!
xxxxxCalomanga agarrava a filha, num gesto de posse. Então, a miúda encostando a cara ao pai, olhou, arrogante, para a mãe.
xxxxx— Está claro que nada te faltará – dirigiu-se o homem para a jovem mulher.

xxxxx— Nunca passarás necessidades.
xxxxxFuvuca olhou-o com dignidade, mas ele nem reparou, enlevado como estava com os filhos. E sem que ninguém se apercebesse, a mãe saíu de casa. Sentou-se na pedra onde se sentara por tantos anos com os dois filhos. Num instante pensou no que seria a sua vida dali para o futuro. Sim! Já sabia qual o caminho a tomar. Levantou-se e caminhou silenciosamente para o rio que brilhava ao luar. Ainda ouviu a voz do filho, gritando alegremente:
xxxxx— E posso também andar de carro?
xxxxxO velho tinha começado a falar, numa voz triste e implorativa.
xxxxxA água corria-lhe agora aos pés e sentiu o frio cortante do seu beijo. Lembrou-se por instantes que devia descer rapidamente e lançou-se convulsivamente para a frente.

xxxxxO rio abriu-se para a receber num abraço gélido. Como de muito longe, pareceu-lhe ouvir ainda a voz do filho, repetindo várias vezes, a rir:
xxxxx— Irei de comboio…Irei de comboio…
xxxxxEsta voz morreu ao longe e a jovem mãe nada mais ouviu.
xxxxxAs águas fecharam-se novamente e continuaram o seu serpentear tranquilo para o mar.

River

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Ilustrações: Cleto de Assis

Miniconto

Lex Mirtaceae

xxxxxxxxxCleto de Assis

Gabiromar

Tal qual o sábio inglês, ele repousava em baixo de uma árvore. Não uma vetusta macieira britânica, mas uma guabirobeira selvagem, que, provavelmente plantada por Deus ou um de seus jardineiros, há muito estava ali, a alimentar passarinhos, serelepes e meninos aventureiros.

Sem se importar com as leis da mecânica universal, seu pensamento gravitava em torno de memórias guardadas lá no fundo da cachola. De repente, um fruto caiu do galho mais alto e esborrachou-se em seu nariz.

O susto sempre faz a gente pensar em coisa maior. Ele imediatamente desviou sua cabeça para o lado, com medo de que mais petardos caíssem sobre ele. Cumpria a primeira parte da terceira lei de Newton: actioni contrariam semper et aequalem esse reactionem. Mas nada mais trágico aconteceu.

Passou a mão em seu rosto e sentiu a massa fria e amarelada, que seria tomada como imp(r)udência de ave voadora não fosse o odor penetrante e inigualável do fruto maduro. Ao susto sobreveio a paz. Cheiro de infância. Gosto de meninice.

Fechou os olhos, sem limpar a face lambuzada e aspirou fortemente. Ah, a viagem movida a guabiroba… O sorriso dos olhos de Marisa a passar-lhe, um a um, os pequenos globos mirtáceos. Depois, as mãos de Marisa, a ternura de Marisa e o perfume suave de Marisa.  Ele pensou que se um perfumista afamado capturasse da fruta o aroma, teria que gravar no frasco o nome insubstituível: Marisa. Do mar das saudades. Do mar a brisa.

Estava criada a Lei da Afetividade.

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Ilustração: C. de A.