Um conto de Vera Lúcia Kalahari

Nossa amiga e correntista Vera Lúcia Kalahari nos envia, de Angola, um conto de sua autoria, premiado em 1973 em Lourenço Marques, atual Maputo, Luanda, Huambo e Benguela.

Mãe

xxxxxEsse era o dia em que Saiengue, o soba de Camanongue, esperava a chegada de seu filho único, vindo da cidade.
xxxxxO rapaz partira há seis anos e agora todos aguardavam o seu regresso: o pai, a velha mãe, a mulher, o filho e a filha. Nesses seis anos nenhum deles o vira e assim cada um o esperava anciosamente.
xxxxxA cubata erguia-se a certa distância do povoado, longe da única estação, e por isso não podiam saber a hora exata da chegada. Era uma pequena casa muito limpa, no meio de um extenso mangueiral, alinhado nas margens do rio. Do outro lado erguiam-se verdejantes montanhas que se perdiam em picos altos e nublados. No tempo do frio, o rio corria remansoso e pouco profundo. Mas quando as chuvas chegavam das serranias, as águas cresciam assustadoramente, lamacentas e escuras.
Todos se haviam vestido mais cedo e ficaram sentados pacatamente à espera. Lá estava o velho pai, a barba branca destacando-se no rosto negro e grave. Era um homem respeitado naqueles lugares.
xxxxxHoje, porque seu filho único voltava, pusera o seu melhor pano, que comprara há anos na cidade.
xxxxxAo lado do velho, sentava-se a mulher, a única que tivera em toda a sua vida, porque havia sido uma boa companheira, dócil e trabalhadora. Numa pedra mais baixa, sentava-se a nora, companheira do seu filho. Segurava uma fita longa de missangas, e seus dedos hábeis iam tecendo um cinto largo de cruzes miúdas, em carmesim. O seu rosto, nem feio nem bonito, denotava a ansiedade febril que a tomava. De vez em quando baixava-se para dizer qualquer coisa à pequenita que lhe brincava aos pés. Mais longe, debaixo de uma grande mangueira, um rapazito esguio tentava colher um fruto dourado. O velho tinha os olhos fitos no rapaz, mas via-se que o seu pensamento estava distante.
xxxxxA velha mãe virou-se para a nora e perguntou:
xxxxx— Compraste o peixe na loja do Calonjere?
xxxx —Sim, minha mãe, tratei de tudo.
xxxxxNa obscuridade da porta os seus olhos brilhavam na face escura.
xxxxxO miúdo escorregou, caíu e começou a chorar desalmadamente. A jovem mulher levantou-se rapidamente e limpou-lhe os calções do pó.
xxxxx— Cala-te! Teu pai está prestes a chegar e não gostará de te encontrar assim!
xxxxxO rapaz limpou as lágrimas com as mãos e sentou-se calmamente no capim áspero. O velho olhou o neto, alisou a barba branca e, sorrindo, disse:
xxxxx— Calomanga ficará satisfeito por ter à sua espera dois filhos como estes.Ele te agradecerá a maneira como trataste seus velhos pais nestes longos anos. Foi um bom dia aquele em que te trouxe para esta casa.
xxxxxMal havia acabado de proferir estas palavras, ouviu-se uma voz na curva do caminho. Era bem a voz de que eles se lembravam e que tanto desejavam ouvir, mas agora bem diferente das suas recordações.
xxxxx— Aqui estou!
xxxxxA velha mãe uniu as mãos com força sobre o regaço. O velho levantou-se rapidamente do chão. Os passos do recém-chegado ressoavam mais perto, na terra avermelhada. A mulher, que se deixara ficar sentada, de olhos fitos no solo, pôde ver os pés calçados de grossas botas e ouviu-o gritar:
xxxxx— Meu pai! Mãe!
xxxxx— Filho…— disse o velho.
xxxxxA sua voz tremeu e suavemente começou a chorar. A mãe acercara-se timidamente e tocou no braço do filho.
xxxxx— Calomanga, estás diferente. Não pareces o mesmo!
xxxxx— Mãe, seis anos não deixam ninguém na mesma – disse o rapaz numa voz clara e rápida.
xxxxxDepois, acercou-se da jovem mulher que se mantivera imóvel.
xxxxx— Então, Fuvuca, estás boa?
xxxxx— Foi a melhor das filhas para nós,Calomanga-falou o velho.
xxxxx— Sim?— interrompeu o jovem. — E onde estão os meus filhos?
xxxxx—Estou aqui…
xxxxxO pequeno abeirou-se lentamente e olhou aquele desconhecido, de sapatos de cabedal e de calças que eram de um tecido grosso e escuro, uma fazenda dos brancos. Calomanga passou-lhe a mão pelos cabelos ásperos , rindo.
xxxxx— Então foi nisto que se transformou o pequeno choramingas que deixei?
xxxxxA jovem mulher olhava-o agora abertamente. Sim! Como estava mudado! Seis anos na cidade haviam modificado seu marido, cheio de juventude e energia. Sentiu-se muito tímida e começou a chorar.
xxxxxApós uma longa pausa, como se cada um tentasse adivinhar os pensamentos do outro, Calomanga começou a falar. Dir-se-ia que falava apenas para preencher o vácuo que se estendia sobre eles.
xxxxx— Como é bom estar de volta! É pena continuar tudo tão atrasado!
xxxxx— Estamos na mesma – respondeu o velho pai, permanecendo um pouco pensativo.
xxxxx— Pois é…Habituado como estou à cidade, tudo me parece bem diferente – estas últimas palavras foram ditas com um certo ar de troça -.
xxxxxFuvuca sentiu um leve aperto no coração e, silenciosamente, afastou-se.

………………………………………………………………………………………………………….

xxxxxCalomanga havia distribuído os presentes que trouxera.
xxxxxA jovem esposa retirara-se para um canto, olhando o marido e os filhos que o cercavam.
xxxxx— Pai…tenho uma coisa para lhe dizer…
xxxxxO velho estremeceu e puxou com força a manta que lhe escorregava nas pernas. A fogueira bruxuleava, pondo sombras grotescas nas mangueiras que se erguiam em copas cerradas.
xxxxx— O pai sabe… — continuou o filho . — Na cidade vêm-se muitas coisas. Já não poderei ficar aqui. Acostumei-me a outra vida. Vim, para levar os meus filhos, para metê-los na escola dos brancos.
xxxxxOs pequenos começaram aos pulos, a gritarem radiantes.-
xxxxx— Irei no comboio…Irei no comboio…
xxxxxA miúda agarrou-se ao pai e perguntou ansiosamente:
xxxxx— Eu também vou?
xxxxx— Sim, tu vais também, — respondeu o pai com energia.
xxxxx— E Fuvuca? – falou o velho mansamente.
xxxxx— Bem…ela…pensei mandá-la de volta para o pai. Dar-lhe-ei dinheiro e nada lha faltará.
xxxxxO pequeno Jamba virou-se para a mãe, os olhos brilhando de satisfação.
xxxxx— Então irei para a escola! Sempre desejei isso!
xxxxxNenhum deles pensava em Fuvuca, reparava na sua expressão. Ninguém notou como ela tremia, a não ser o velho, que continuava sentado, acariciando a barba branca.
xxxxxCalomanga, radiante com a alegria dos filhos, exclamou:
xxxxx— Irás para a escola, verás grandes ruas, automóveis , tudo o que nunca viste até agora.
xxxxxA criança não se pôde conter:
xxxxx— Quando vamos? Eu quero ir já!

old_hands
xxxxxFuvuca olhou para aquele filho que acalentara ao longo das noites, que bebera do seu leite. Lembrou-se de quando lhe limpava a boca gotejante de leite branco. Era então aquele o seu filho! Este, encontrando o olhar da mãe, confessou, pensativo:
xxxxx— Sempre quis ir para a cidade, mãe!
xxxxxCalomanga agarrava a filha, num gesto de posse. Então, a miúda encostando a cara ao pai, olhou, arrogante, para a mãe.
xxxxx— Está claro que nada te faltará – dirigiu-se o homem para a jovem mulher.

xxxxx— Nunca passarás necessidades.
xxxxxFuvuca olhou-o com dignidade, mas ele nem reparou, enlevado como estava com os filhos. E sem que ninguém se apercebesse, a mãe saíu de casa. Sentou-se na pedra onde se sentara por tantos anos com os dois filhos. Num instante pensou no que seria a sua vida dali para o futuro. Sim! Já sabia qual o caminho a tomar. Levantou-se e caminhou silenciosamente para o rio que brilhava ao luar. Ainda ouviu a voz do filho, gritando alegremente:
xxxxx— E posso também andar de carro?
xxxxxO velho tinha começado a falar, numa voz triste e implorativa.
xxxxxA água corria-lhe agora aos pés e sentiu o frio cortante do seu beijo. Lembrou-se por instantes que devia descer rapidamente e lançou-se convulsivamente para a frente.

xxxxxO rio abriu-se para a receber num abraço gélido. Como de muito longe, pareceu-lhe ouvir ainda a voz do filho, repetindo várias vezes, a rir:
xxxxx— Irei de comboio…Irei de comboio…
xxxxxEsta voz morreu ao longe e a jovem mãe nada mais ouviu.
xxxxxAs águas fecharam-se novamente e continuaram o seu serpentear tranquilo para o mar.

River

______________

Ilustrações: Cleto de Assis

5 Respostas para “Um conto de Vera Lúcia Kalahari

  1. Um conto encantador que retrata bem o que era a sociedade angolana. Já conhecia os trabalhos da Vera. É sempre um prazer relê-los e, principalmente, recordarmos Angola através deles.

    Sarah Ataíde

  2. Manoel de Andrade

    Que belo conto, Vera Lúcia. Quanta visibilidade. Contudo, com um trágico e inesperado desfecho. Uma cena que devora todo o enredo anterior. Um retrato social, diz o comentário de Sarah. Há bases culturais para decisões pessoais desse tipo. Que desamparo íntimo, que cultura cruel… Embora o conto não se situe historicamente, todo o imenso terror social, que sobreveio a independência de Angola, naquela sangrenta disputa, nacional e internacional, pelo poder, gerou esse descaso pelo vida? Havia no ar essa psicosfera de fatalidade ou a busca do afogamento, pela personagem, é apenas um detalhe literário?

    Por outro lado, se este conto retrata o que era a sociedade angolana, algo então mudou? Qual o papel que a mulher como esposa e mãe possui, atualmente, nessa cultura?

  3. Manoel de Andrade,

    O seu comentário levanta diversas questões que procurarei esclarecer,de forma sucinta, porque seria uma matéria, que a ser falada em detalhe, constituiria uma resposta muito, muito longa.

    Comecemos, pois, pelo final inesperado do conto: o suicídio da mãe. Eu acho que as mães angolanas, d’entre as mulheres de muitos países de África que conheço, são das mais devotadas aos filhos. É uma sociedade verdadeiramente matriarcal, no que respeita ao trabalho e às responsabilidades. A mulher, na família angolana, é a chave mestra, porque até se verifica um elevado grau de irresponsabilidade no que diz respeito aos homens. Mas, curiosamente, são emocionalmente muito dependentes deles, aceitando, como dados adquiridos, por exemplo, as amantes, as atitudes machistas que chegam muitas vezes à violência, o autoritarismo, as decisões unilaterais etc.etc.

    Após a independência, a situação melhorou bastante, porque as mulheres tiveram mais facilidade de acesso aos estudos e hoje até já há algumas fazendo parte do Governo. Mas se pensarmos que todos estes campos vedados às mulheres na Angola-colónia eram igualmente vedados aos homens e essas facilidades foram equacionadas a todos os angolanos, é discutível em termos percentuais se houve assim um número tão elevado de mulheres. Mas eu penso que sim, se nos lembrarmos que antes da independência, era normal que o homem-branco que se instalasse em Angola, se juntasse a uma nativa, o que lhe facilitava bastante a integração, tivesse filhos mas quando chegava a altura de se casarem, após atingirem os seus objectivos materiais, abandonavam pura e simplesmente as companheiras e filhos, e vinham casar com uma mulher branca que com essa, sim, é que construíam família. E isto, impunemente. Hoje, pelo menos isso, já não acontece. Porque o receio de represálias de qualquer estrangeiro que quisesse repetir isso é tal, que não se atrevem a tanto. Antes da independência, qualquer mulher angolana, fosse de que etnia fosse, tinha um cartão de residente, que lhe limitava a saída da sua área de residência, para qualquer outra parte do país, sem a autorização oficial do marido ou companheiro, se este fosse português ou, na ausência deste, dum representante das Autoridades portuguesas.

    É claro que a independência nos trouxe muitos benefícios. O suicídio da personagem deste conto é talvez simbólico. Fisicamente, seria difícil que isso acontecesse, mas espiritualmente, ah…sim. Não ponho dúvidas, porque conheci muitos casos, que acontecia essa morte espiritual, de mulheres a quem retiraram os filhos e viram-nos entregues a outras mulheres e que foram pura e simplesmente espoliadas das suas casas e dos seus haveres.

    Pergunta se há em Angola um desapego da vida… Há e não há.Vive-se o dia-a-dia como se fosse o último, por isso o povo tem na sua maioria um semblante feliz, porque é dócil perante o destino, é pouco exigente e grato, muito grato, pelo pouco que a vida lhe dá.É um Povo fantástico na forma como vive o seu dia-a-dia.Mais de quarenta anos de guerra, antes e após a independência, faz-nos, como é óbvio, encararmos a morte com a maior das naturalidades porque perdemos quase a noção do que é morrer de velhice, na plácida intimidade dos nossos lares. A idéia é:Mais um dia… Estamos vivos… Vamos vivê-lo… Talvez não cheguemos ao amanhã. E a morte é encarada de forma muito natural e até festiva. Senão, vejamos: quando alguém morre, a família convida todos os amigos para o ”óbito”. Durante a dia da vigília do corpo, do funeral, e mais três dias, portanto cinco dias ao todo, há uma enorme festa, com muita comida, muitas bebidas, muitas batucadas e muita festa. Isto para festejar a ida da pessoa que morreu para um sítio melhor. Durante um mês, não se toca em nada que lhe pertenceu, nem na cama onde faleceu, e o quarto e janelas, permanece tudo fechado, porque o espírito do morto ainda não abandonou a terra. Ao completar um mês depois da sua morte, tem então lugar uma festa ainda maior, onde se limpa tudo que a pessoa deixou, distribuem-se as coisas que deixou e a isso se chama ”o varrer das cinzas” ou ”cambaritoco”. Essa é a grande festa, dependente do poder económico dos familiares, mas que nunca deixa de ter lugar, por mais humilde que seja a pessoa.É um ritual que se impõe porque só assim o morto terá descanso e não ficará preso àquilo que cá deixou. Portanto, somos um Povo muito espiritual.

    Marcas sociais e culturais que a guerra tenha deixado? Nós tivemos uma guerra física, é certo. Mas as guerras morais desencadeadas por outras culturas, diversas outras formas de governar, não deixaram marcas muito piores? Mesmo aqui, em Portugal, nas aldeias perdidas vejo que ainda existe a violência contra as mulheres, a descriminação, enfim, tanta coisa ruim, a pedofilia, a violação e morte de menores, recém-nascidos mortos na hora de virem ao mundo, tanta coisa que, quando me pergunta os traumas que a guerra nos trouxe, trouxe-nos, é certo, muitos sentimentos de perda, mas o que se passa no mundo? Por exemplo aqui, em Portugal, não foi nenhuma guerra que desencadeou tudo isto. Não uma guerra física. Mas sim, uma guerra moral desencadeada, à semelhança, aliás, ao que se passa em quase todos os países, por uma liberdade que não existe, por uma crise de moral, por governantes que não governam mas,sim, se governam, por uma justiça que não funciona, pela inexistência de qualquer espécie de valores, e isto, sim, talvez leve as pessoas a desapegarem-se por completo da vida e muitos a pensarem a sério que só viverão em paz depois da morte.

    Querido amigo, espero ter-lhe dado uma idéia daquilo que penso. De qualquer modo, obrigado pelo comentário.

    Um abraço
    Vera Lucia

  4. Mais um detalhe ao comentário acima, cujo detalhe que mais chocou o meu amigo Manoel de Andrade, teria sido o suicídio da jovem mãe.
    Em Angola, tal como em outros países africanos, a taxa de suicídio é práticamente nula.
    Constata-se, por exemplo, que no Japão, um dos países mais desenvolvidos do mundo, a taxa de suicídios é, actualmente, a mais elevada.Em Portugal, aumentaram 100 por cento nos ultimos, cifrando-se, neste momento, em cerca de 1.100 casos por ano, sendo, mesmo assim, as taxas mais baixas da Europa.
    No Iraque e em Cuba, são os países de índice mais baixo, sendo que no Iraque, a maior taxa são os casos de ideologia.
    Com isto se chega à conclusão, que o desenvolvimento físico dos países, contribui assustadoramente para a decadência moral e espiritual dos Povos, que se encontram de tal maneira perdidos, que julgam que a morte é a única saída que lhes resta. Uma coisa que dá para pensar. Ou se tornam muito exigentes não aceitando o ”pouco” e exigindo ”mais e mais”, ou têm tanto, que pensam não haver mais nada a conquistarem…
    Dá para reflectir, não é verdade?

  5. Manoel de Andrade

    Cara Vera Lúcia, muito mais que uma resposta. Obrigado pelo amplo esclarecimento. Informação e conciência crítica. Que previlégio para mim a para todos os leitores desse site assimilar uma análise cultural legitimada pela experiência.
    Pelo texto, entendi que vives em Portugal. Eu imaginava que vivias em Angola. Se quiseres me tires essa dúvida por email.

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