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O que é Poesia? (1)

O nosso poeta Manoel de Andrade deixou momentaneamente a poesia em hibernação e mergulhou na prosa. Há vários meses se concentra em reunir memórias de sua peregrinação pelo Brasil e pela América Latina, quando assumiu um auto-exílio, na época do governo militar. Inconformado pela perda de um diário, em um dos últimos percursos de sua caminhada pelo continente, no qual registrava a memória daqueles dias de cavaleiro andante, Maneco (como o chamamos os amigos) tenta recuperar a riquíssima experiência em um livro de memórias com o título provisório de “O Bardo Errante”.
Recentemente, um blog de Portugal – Livres Pensantes, do Algarve –  descobriu seus poemas e passou a publicá-los, assim como artigos seus também publicados na rede. Feita a aproximação, M.A. cedeu um fragmento do livro ainda inédito, que pode ser lido aqui.

De certa maneira, podemos ver em Manoel de Andrade um lampejo de Telêmaco, filho de Ulisses, descrito por Homero também como alguém que andou “errante por muitas terras, viu as cidades de numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes; e, por sobre o mar, sofreu no seu coração aflições sem conta, no intento de” projetar sua voz em direção à liberdade e à solidariedade humana.

Cumprimentando-o por mais essa conquista de sua odisséia poética, fazemos uma homenagem com a publicação de um poema seu, ainda inédito na nuvem internética. Como numa sequencia ao post anterior, ele procura respostas para a eterna pergunta: o que é Poesia?

O que é a poesia…, meu irmão?

a Maria da Graça Andrade

A poesia, Gracinha
não é somente teu sonho
tua paixão de menina…
é a respiração suspensa
por tudo que desatina
é tua voz de criança
o abc que te ensina
a soletrar esperança
é a região proibida
para os que não sabem ver
é onde me despojo e morro
pra me sentir renascer.

A poesia, Gracinha
é cada grão que germina
é o corpo do camponês
inclinado sobre a terra
semeando a própria dor
são os ombros do proletário
suportando no salário
o peso imenso da vida.

A poesia, Gracinha
é o nosso maior pecado
é a flor que o homem pisa
neste mundo devastado
é tudo que agoniza
pelo nosso esquecimento
é nossa vida vivida
além deste eterno momento
é a fome de cada dia
protelada sempre em vão
é a própria sede da terra
sem a chuva de verão.

A poesia, Gracinha
está na raiz do amor
em toda coisa criada
e no ato do Criador
está no macho sobre a fêmea
no pólen gerando a flor
na jornada das abelhas
na flor transformada em mel
está no salto incontido
do filhote em busca do céu
no vôo da mariposa
latente numa crisálida.
Por traz da humana  crueza
a poesia, Gracinha
é o amor parindo a vida
no ventre da natureza.

A poesia, Gracinha
são teus olhos debruçados
numa aurora de verão
é o vulto da minha dor
boiando na solidão
é minha infância num tempo
que o rio escorreu pro mar
é o amor feito  lenha
ardendo no teu olhar
é a rubra flor do teu corpo
desabrochando o desejo
a inocência transformada
numa árvore de beijos
é o lirismo que assoma
no rosto da minha amada
quando meu canto ilumina
os passos da madrugada
é o nosso olhar batendo
nos olhos de quem se amou
a vida buscando a gente
no que a saudade deixou.

A poesia, Gracinha
é minha forma de morrer
quando tenho que cantar
toda dor que me transtorna
é a angústia de te dar
meu canto desfigurado
pelo áspero fardo de dor
que amarga meu sorriso
ao sentir que desfaleço
quando contemplo meu povo
com suas mãos algemadas
caminhando para o abismo
nesta pátria engatilhada
é este jeito de sentir
minha dor multiplicada
pela fé que não me mude
quando o asfalto se mancha
com o sangue da juventude.

A poesia, Gracinha
é o delírio de ver
o homem ensaiar tão alto
a dimensão do seu salto
e a tristeza de saber
que embaixo tanto lhe falta
tornando assim prematura
a vertigem  do astronauta.

A poesia, Gracinha
é uma canção operária
trabalhando solitária
na reconstrução do homem.
É a palavra feita canto
o canto feito esperança
de todo pão repartido
no gesto amplo e fraterno
de um tempo enfim ressurgido.

A poesia, Gracinha
se a mim cabe definir…
é o clarim que anuncia
ao homem que ainda um dia
cansado dos seus enganos
despertará comovido
garimpando atrás dos anos
a fala imensa do amor.

A poesia, eu te digo,
é o gesto dilatado
de toda mão estendida
é o doce sabor dos frutos
a face amarga do mundo
a eterna canção da vida.

Curitiba, outubro de 1968
________________________

Iustração: C. de A.

Isaias 1:02

Isaias de Faria

Todo profeta é um poeta. Usa suas metáforas para predizer acontecimentos futuros e fazer advertências às ovelhas  tresmalhadas. O livro de Isaías, por exemplo, com seus 66 capítulos, é até mesmo na forma um livro de poemas. Como diria nosso Manoel de Andrade, poemas brabos, por certo. Recheados de metáforas ameaçadoras de um deus vingativo e insatisfeito com sua criação. Mas a poesia não canta apenas as venturas, o sol e as flores. O poeta vê beleza também na tempestade, nas nuvens escuras, na dor e nas lágrimas.

E por isso todo poeta é quase sempre um profeta. Porque consegue ver além da aparente realidade e prever cintilações e perfumes e cores e formas e fados que a maioria não consegue enxergar.

No dia 1º de fevereiro recebi uma mensagem de um novo Isaias, poeta, talvez profeta (daí a inscrição Isaias 1:02) que me disse querer publicar um poema seu no Banco da Poesia. Conversa vai, conversa vem, pedi foto, informações biográficas e eis aí Isaias de Faria, com resumidíssima folha corrida: poeta, mora em Belo Horizonte, escreve em seu blog Estações e em diversas revistas eletrônicas e outros endereços da rede. Em breve publicará seu primeiro livro de poemas, com o título Distrações.

Grato ao Isaias poeta ( também fotógrafo) pelos depósitos iniciais. Aos nossos leitores podemos recomendar, como o Isaías profeta: “Aplicai os ouvidos para ouvir sua voz, / sêde atentos para escutar sua palavra” (Isaías 28:23).

O olhar de um jovem fotógrafo

Montagem sobre fotos de Isaias de Faria – C. de A.

Um casal. 20 ele, 29 ela.
1º dia de um encontro
pra se conhecerem
numa praça florida.
feriado. Dia absorto
em sua quietude:

ele: os dias nublados
são os melhores dias
pra fotografar

ela: melancólico… seus
olhos não negam

Para a poiesis de Homero

Illion

irá de imortal e covalente suplício
desbravar setadas confusas de virtudes
nas moradas falsamente desnudas

objetivante
revela completo
desta busca
turbulenta deidade
na raiz de pedra
épico como ele só

destino de contendas traça aquiles
papel de epopéia
sucessivas até a morte

semideuses num próprio céu

A Apoteose de Homero - Jean Auguste Dominique Ingres, 1827 – Museu do Louvre (Paris)

Odisseus

em que fala a
fonte erga
vibre
em que fala –semiviva, fornalha, estentor, adaga, lança,
fonte mire
incline
em que o
passado estentor
semiviva
de
fornalhas ditas
venha de irrealidade
que não se pode fugir
mas plangente

se vai sim a adaga,
lança, aço em mãos e
ostenta golpe afrente a
voltar
(tão caro nunca se foi, odisseu!)
ostente a volta

recalcando a lida (consumindo-se pelo extenso trilho)
prestes ao amor que volta:
não sabeis

certeza de quem se
arruma sabes
em flanco brilhante horrendo

fina farpa a cada ponto,
trancos, barrancos, barras
e amargas despalavras
sentias e tais tais azeus

e o tal zeus,
retoma as energias desfeitas,
nervos desarrumados
o corpo a avante e prevista ira,
não pode pasmar de ver
nada de dó de açoite
a almejada rota

prossiga,
já tens a terra em pés, pele,
tateamento nos céus

árduo estrategista de ouvidos atentos
no jogo cantado-lírico

orgulho ainda intacto
cravado e repouso atento mito

Os poetas não morrem

Mario_Benedetti_1Os poetas perseguem o sonho e a eternidade, o maior dos sonhos. A música é arte universal, cósmica e a seus autores pertencem somente os traços de estilo. As artes visuais remetem às formas e cores da natureza, de quando em quando pinceladas de um momento fixado pelo artista. O escritor também descreve fatos e fados, distanciando-se do que ele mesmo é, a não ser também por lampejos estilísticos e latejos da alma.

Já o poeta fala por si mesmo. Quando lemos um poema de Homero, em sua grandiloqüência histórica, ou os versos de Pessoa, mais introvertidos, não vemos ali apenas palavras soltas, mas reflexos da alma dos autores, que foram ao fundo de suas consciências e inconsciências para recompor o belo das letras e dos sons das palavras. Se na Ilíada ou na Odisséia seguimos Homero a contar a história de seus heróis, é Homero que nos fala, presente, altissonante.

Morreu Mario Benedetti, dizem os jornais. Cessou a respiração física de um dos maiores poetas latino-americanos. Mas o respirar poético, o pulsar do coração anímico jamais cessará. Suas palavras ecoarão com maior intensidade, mesmo que suas mãos já não possam escrever versos novos. Seus 89 anos dedicados à literatura, à poesia e, sobretudo, à ânsia pela justiça social, bem justificam uma vida bem vivida e, agora, coroada com sua ascensão à galeria dos poetas universais.

Porque cantam os poetas

Talvez para eternizar-se, como refletimos acima. Mas Benedetti buscava por razões mais sólidas. Assim como o nosso Manoel de Andrade, ao inspirar-se no poeta uruguaio para fazer a mesma reflexão, em poema homônimo de  alguns anos atrás. Em homenagem ao poeta que se despediu da vida física, publicamos os dois poemas. Em seguida, um resumo biográfico de Mário Benedetti, que, a partir de hoje, está também em nossa Biblioteca Virtual:  https://cdeassis.wordpress.com/biblioteca-virtual-de-poesia/ (C. de A.)

Por qué cantamos

Si cada hora viene con su muerte
si el tiempo es una cueva de ladrones
los aires ya no son los buenos aires
la vida es nada más que un blanco móvil

Usted preguntará por qué cantamos

Si nuestros bravos quedan sin abrazo
la patria se nos muere de tristeza
y el corazón del hombre se hace añicos
antes aún que explote la vergüenza

Usted preguntará por qué cantamos

Si estamos lejos como un horizonte
si allá  quedaron árbores y cielo
Si cada noche es siempre alguna ausencia
y cada despertar un desencuentro

Usted preguntará por qué cantamos

Cantamos porque el río está sonando
y cuando suena el río / suena el río
cantamos porque el cruel no tiene nombre
y en cambio tiene nombre su destino

Cantamos por el niño y porque todo
y porque algún futuro y porque el pueblo
cantamos porque los sobrevivientes
y nuestros muertos quieren que cantemos

Cantamos porque el grito no es bastante
y no es bastante el llanto ni la bronca
cantamos porque creemos en la gente
y porque venceremos la derrota

Cantamos porque el sol nos reconoce
y porque el campo huele a primavera
y porque en este tallo en aquel fruto
cada pregunta tiene su respuesta

Cantamos porque llueve sobre el surco
y somos militantes de la vida
y porque no podemos ni queremos
dejar que la canción se haga ceniza.

(De Retratos y Canciones)
PorQueCantamos

Por que cantamos

(versão em Português – tradutor não localizado)

Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

Você perguntará por que cantamos

Se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

Você perguntará por que cantamos

Se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

Você perguntará por que cantamos

Cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

Cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

Cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota

Cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

Cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.

“Por que cantamos”

de Manoel Andrade

para Mario Benedetti(*)

manoel-de-andrade-foto-dele-img_7355Se tantas balas perdidas cruzam nosso espaço
e já são tantos os  caídos nesta guerra…
Se há uma possível emboscada em cada esquina
e  temos que caminhar num chão minado…

“você perguntará  por que  cantamos”

Se a violência sitia os nossos atos
e a corrupção gargalha da justiça…
Se respiramos esse ar abominável
impotentes diante do deboche…

“você perguntará por que cantamos”

Se o medo  está  tatuado em nossa agenda
e a perplexidade estampada em nosso olhar…
Se há um mantra entoado no silêncio
e as lágrimas repetem: até quando, até quando, até quando…

“você perguntará  por que cantamos”

Cantamos porque uma lei maior sustenta a vida
e porque um olhar ampara os nossos passos.
Cantamos porque há uma partícula de luz no túnel da maldade
e porque nesse embate só o amor é invencível.

Cantamos porque é imprescindível dar as mãos
e recompor, em cada dia, a condição humana.
Cantamos porque a paz é uma bandeira solitária
a espera de um punho inumerável.

Cantamos porque o pânico não retardará a primavera
e porque em cada amanhecer as sombras batem em retirada.
Cantamos porque a luz se redesenha em cada aurora
e porque as estrelas e porque as rosas.

Cantamos porque nos riachos e lá na fonte as águas cantam
e porque toda essa dor desaguará um dia.
Cantamos porque no trigal o grão amadurece
e porque a seiva cumprirá o seu destino.

Cantamos porque os pássaros estão piando
e ninguém poderá silenciar seu canto.
Cantamos para saudar o Criador e a criatura
e porque alguém está parindo neste instante.

Pelo encanto de cantar e pela esperança nós cantamos
e porque a utopia persiste a despeito da descrença.
Cantamos porque nessa trincheira global, nessa ribalta
nossa canção viverá para dizer por que cantamos.

Cantamos porque somos os trovadores desse impasse
e porque a poesia tem um pacto com a beleza.
E porque nesse verso ou nalgum lugar deste universo
o nosso sonho floresce deslumbrante.

Curitiba, maio de 2003
(*)  Escrevi  estes  versos motivado pelo belíssimo  poema  “Por qué cantamos”,  do poeta uruguaio Mario Benedetti. Num tempo em que todos caminhamos sobre o “fio da navalha”, me senti, como poeta,  implicitamente convocado a  também  testemunhar  por que cantamos. (Manoel de Andrade)

Súmula biográfica


don-mario-benedettiMario Benedetti nasceu em Paso de los Toros (Tacuarembó, Uruguay) no dia 14 de setembro de 1920. Educou-se no Colégio Alemão de Montevidéu e no Liceu Miranda, e trabalhou como vendedor, taquígrafo, contabilista, funcionário público e jornalista. Entre 1938 e 1941 residiu quase continuadamente em Buenos Aires e, em 1945, de regresso a Montevidéu, se integrou na redação do célebre semanário Marcha.  Ali se forma como jornalista, junto a Caros Quijano, e fez parte de sua equipe até 1974, com o encerramento da publicação. Naquele mesmo ano de1945, publica seu primeiro livro de poemas, La víspera indeleble, que não foi reeditado.

Depois do lançamento de sua primeira obra ensaística, Peripecia y novela, (1948) siguiu, em 1949, seu primeiro livro de contos, Esta mañana, e, um ano mais tarde, os poemas de Sólo mientras tanto. Em 1953, aparece Quién de nosotros, sua primeira novela, mas é o volume de contos Montevideanos (1959) – nos quais tomam forma as principais características da narrativa de Benedetti – o que supôs sua consagração como escritor. Com sua seguinte novela, La tregua (1960), Benedetti adquire projeção internacional: a obra teve mais de uma centena de edições, foi traduzida em dezenove idiomas e levada ao cinema, ao teatro, à rádio e à televisão.

Por razões políticas, teve que abandonar seu país em 1973, iniciando, assim, um longo exílio de doze anos, que o levou a residir na Argentina, no Peru, em Cuba e na Espanha, e que deu lugar também a esse processo por ele batizado como desexílio: uma experiência com marcas tão profundas tanto no vital como no literário.

Sua ampla produção literária abarca todos os gêneros, inclusive famosas letras de canções, e soma mais de setenta obras.  Entre elas se destacam suas recopilações poéticas Inventario e Inventario Dos, o ensaio El escritor latinoamericano y la revolución posible (1974), os contos de La muerte y otras sorpresas (1968), Con y sin nostalgia (1977) e Geografías (1984), as novelas Gracias por el fuego (1965) e Primavera con una esquina rota, que, em 1987, recebeu o Prêmio Chama de Ouro, da Anistia Internacional, assim como a extraordinária novela em verso El cumpleaños de Juan Ángel.

Seus livros mais recentes são Despistes y franquezas (1990), Las soledades de Babel (1991), La borra del café (1992), Perplejidades de fin de siglo (1993) e sua mais recente novela Andamios (1996). Sua obra poética completa foi recolhida en Inventario Uno (1950-1985) e Inventario Dos (1986-1991), e seus contos em Cuentos completos (1947-1994). Existe uma biografía de Benedetti escrita por Mario Paoletti, que se intitula Mario Benedetti, el aguafiestas.