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Uma incelença entrou no Paraíso

Humor no céu

Walter Bezerra / de Alagoas

No translado para o céu, Chico Anysio ficou na dúvida sobre com qual caricatura iria se apresentar no paraíso. Silva, Popó, Coalhada, Haroldo, Salomé, Azambuja, Alberto Roberto, Painho, Bento Carreiro, Tavares, Gaspar, Canavieira, Quem, Quem… ou Justo Veríssimo, representante legítimo da corruptocracia?

Chico levava na bagagem a criação de 209 personagens memoráveis, entre os por ele interpretados e os que ele criou para outros humoristas, como o Seu Peru (Orlando Drummond), e o Seu Boneco (Lug de Paula). Com passagem pelo jornalismo esportivo, rádio, TV, teatro, literatura, música, dublagem, imitação e pintura, Chico fora, ainda em vida, idolatrado como ídolo, sábio, gênio, mito, fenômeno. Sociólogo do riso, iconoclasta, Deus do humor, Chico, porém, não se gabava com essas alusões ou – como diria ele – bajulações. Dizia-se simplesmente ”humorista do povo”.

Chegando ao céu, vestindo a camisa do Vasco, ele ouviu um background de risadas de auditório. Dava para distinguir inequivocamente a gargalhada inconfundível de boas-vindas de Nair Belo. Chico deparou logo com uma galera da pesada, donos também de um humor refinado e inteligente, segurando uma faixa: “Bem-vindo, Chico Total!” Era a bancada brasileira do riso no Planalto Celestial: Mazzaropi, José Vasconcelos, Ivon Curi, Costinha, Paulo Gracindo, Walter D’Ávila, Renato Corte Real, Grande Otelo, Golias, Mussum, Zacarias, Brandão Filho, Zezé Macedo, Rony Cócegas e Francisco Milani, liderados pela lendária Dercy Gonçalves, que, de cara, à sua maneira escrachada, quis confortar:

— Fica triste não, Pantaleão, a vida aqui não tem mentiras, não é lá muito engraçada, mas é melhor do que aquela porra lá embaixo!

Nesse ínterim, Chico ouve passadas vindo em sua direção. De súbito, à sua frente, surge um personagem histórico, dentro de uma túnica marrom. Era o seu xará Francisco, o de Assis, figura religiosa à esquerda do salafrário Tim Tones, ao qual Chico dedicara fiel adoração profissional. Devoto e seguidor de carteirinha do Protetor dos Animais, Chico acenou ajoelhar-se, no que foi repreendido:

— Não, não precisas, irmão. Somos da mesma estatura espiritual e intelectual. Vimos das mesmas origens e comungamos lutas, buscas e objetivos parecidos. Eu por minha opção pelos pobres e oprimidos e pela minha abnegação material. Tu pela generosidade humana e pela postura crítica da tua verve criativa e irreverente. Vamos por ali, ao encontro do Onisciente. Ele te espera para uma conversa informal. “É vapt-vupt!”- disse São Francisco, sorridente, ressuscitando a frase do velho Professor Raimundo, enquanto apontava para o Portão da Eternidade.

Chico apressou os passos e entrou no Recinto dos Justos. Deus, de cima de sua onisciência, saudou o humorista já com uma lisonja desnorteante, dessas que massageiam os mais despretensiosos e acanhados egos:

— É, Anysio, o Jô Soares tem razão. Tu realmente desmentes a frase “ninguém é insubstituível”.

— “Nem tanto, Mestre!” – rebateu Chico, acuado, meio sem graça, citando um bordão de um dos tipos da Escolinha.

— Verdade! Tu só não foste considerado o melhor e o mais conhecido humorista do mundo porque eu não te batizei com uma língua inglesa. Se tu tiveste nascido norte-americano ou inglês, com certeza tua fama teria corrido o mundo. E pensar que tu querias ser jogador de futebol! Isso não aconteceu porque assim estava escrito. Seria uma perda para a infinita comédia humana. Não tinhas vocação para Pelé. Mas, no humor, foste, sim, um craque. “Queria ter um filho assim!” – revelou Deus, com soberba paternal.

— Mas, Divino, por que me deletasse? Eu não estava a fim de embarcar agora não. Tinha umas coisinhas ainda a fazer. Quando o Senhor convocou a Darcyr, ela tinha 1001 anos. Por que não me permitisse a mesma data de validade, pelo menos uns 95, 98 anos? – reclamou Chico.

— Cada caso é um caso, “meu garoto”! Aliás, essa conversa eu já tive com o Calcanhar de Ouro e com O Anjo das Pernas Tortas, entre outros. É aquela história da livre escolha. Eles escolheram o álcool; tu, o cigarro. Lembras que disseste que fumar foi o teu grande arrependimento?! “Saúde é o que interessa; o resto não tem pressa. Iiiissa!” “Bateu pra tu!?” – explanou Deus, homenageando o recém-chegado com bordões de sua intimidade.

O cearense de Maranguape meteu o rabo entre as pernas e se rendeu:

— É… fumar, sinceramente, foi…

— “Não precisa explicar. Eu só queria entender!” – satirizou Deus, invocando a frase predileta do Sócrates, personagem do Planeta dos Macacos e também da Escolinha.

— Digníssimo, e a corrupção, as tramóias, os escândalos?  Os pobres lá embaixo… como ficam? – quis saber Chico, preocupado.

Deus, em conspiração, piscou o olho para São Francisco, que ouvia o diálogo desde o início, e alfinetou, em alto e bom som:

— “Tenho horror a pobre! Quero que pobre se exploda!” Ser dono do mundo não é nada engraçado e nem gratificante. Eu faço tudo por aquele povo lá de baixo. Apesar de sua insistente gula material, suas babaquices egocêntricas, suas lambanças judiciais e trapaças políticas, dou oportunidades para arrependimentos e correções. Através de poucos homens probos, faço refletir, oriento, aponto os caminhos a trilhar. Vez em quando, só para alertar que ainda estou vivo, faço alguns milagrezinhos. Faço tudo que posso e até o que não devo. E só exijo uma bagatela: a FÉ! “E o salário, ó!”

Depois do desabafo irado, Deus saiu à francesa e às gargalhadas. Diante daquela cena ímpar, Francisco, seguindo o estilo do Eterno, despediu-se, espirituoso:

— “Beijinho, beijinho, pau, pau!”

Minutos depois, Rogério Cardoso – esperançoso – aproximou-se e murmurou para Chico:

— E aí, Amado Mestre, a Escolinha vai rolar aqui ma cobertura? Chico evocou um dos seus personagens preferidos e, amuado, prometeu:

—  “Bento Carneiro, vampiro brasileiro… Deixa eles, minha vingança será malígrina!”

Walter Bezerra, de Maceió, reflete sobre o Fim do Mundo

Crônica sobre o fim do mundo

Sabemos que o mundo não se acabou no ano 2000, frustrando a interpretação de uma das centúrias do astrólogo, astrônomo, alquimista, erudito e mago francês Michel Nostradamus.

Agora, os donos da bola de cristal estão afirmando que o dia 21 de dezembro de 2012 será o fim do mundo (ou o início de um novo ciclo, como dizem os mais românticos), segundo previsão apocalíptica baseada na cultura maia.

O pressentimento é que o Sol nascerá, no tal dia, aliado ao planeta e ao centro da Via Láctea, um fato astronômico que só acontece a cada 26 mil anos e que provocará o cataclismo, causando o fim da vida na Terra.

Em alguns países, como na Espanha, as pessoas de alto poder econômico estão construindo, em sistema de cooperativas, os famosos bunkers, refúgios subterrâneos emergenciais, para se protegerem da possível explosão do planeta.

Os bunkers permitem que as pessoas permaneçam no interior deles até 3 anos, respirando ar puro e sobrevivendo à base de medicamentos e alimentos estocados. Eles estão protegidos por uma capa de 60 centímetros de concreto e contam com filtros de partículas radioativas para evitar a infiltração de resíduos tóxicos ou a passagem de radiação ou bactérias.

A história dos bunkers é uma realidade inconteste. Mas, digamos que as pessoas realmente acreditem que o mundo vai se acabar em 21 de dezembro, eu fico a imaginar, cá da minha porção vidente hilária, o que poderia acontecer diante dos efeitos colaterais causados pela síndrome do pânico generalizada:

Milhares e milhares de mulheres grávidas desesperadas por não poderem sequer conhecer a cara dos frutos de seus ventres;

Mulheres casadas – reprimidas, sofridas e traídas por seus maridos – pulando, por simples vingança, a cerca pela primeira e última vez;

Outras revelando, para seus maridos mulherengos, que tais filhos não são deles, mas dos vizinhos, patrões e pés de lã;

Outras ainda, agora decididas e encorajadas, revelando suas fantasias sexuais a seus maridos, namorados e parceiros de cama conservadores e recatados sexualmente;

Caretas e falsos moralistas experimentando maconha, cocaína, LSD e outras drogas alucinógenas e “reveladoras”;

Pais repressores, arrependidos, pedindo perdão a seus filhos;

Boa percentagem dos católicos, evangélicos, mulçumanos, espíritas e outros crédulos rogando a Deus para que lhes salve as almas, posto que só eles – por serem religiosos confessos e praticantes – merecem mais do que ninguém sobreviver à tragédia;

Centenas de milhares de agnósticos saindo de cima do muro e fazendo opção definitiva por Deus;

Empresários e milionários gastando tudo com viagens, extravagâncias e orgias;

Maus políticos, insaciáveis, promovendo a farra do Dinheiro Público dos Últimos Dias;

Homens e mulheres de bem revelando seus quinhões corruptos camuflados;

Multidões incautas, pobres, honestas e sem grandes ambições jogadas ao deus-dará;

Empregados e bajuladores mandando seus gerentes, diretores e patrões tomarem no devido lugar;

Formação acirrada e célere de cartéis, empresários majorando os preços, inflação a todo pique;

Devedores rindo da cara de seus credores;

Aproveitadores e caloteiros adquirindo tudo a crédito: carros de luxo, lanchas, vinhos, uísques, jóias, casacos de couro e perfumes caríssimos, visando desfrutar os (últimos) prazeres da vida;

Todo mundo, pessoas jurídicas e físicas, sonegando impostos, provocando a falência múltipla de países, estados e municípios e quebrando, por osmose, seus funcionários e fornecedores;

Tchau, tchau serviços essenciais públicos (saúde, segurança, educação etc.)!;

Estupradores de plantão violentando ídolos, divas e paixões adormecidas e dissimuladas;

Homossexuais enrustidos assumindo suas opções e preferências sexuais,

Vegetarianos devorando carnes, inclusive vermelhas, e naturalistas comendo produtos de origem animal, incluindo enlatados;

Naturistas e exibicionistas desfilando nus pelas ruas, sem nenhum pudor ou constrangimento;

Comercialização massificada de confessionários eletrônicos aplicados em iPhones, (concessão já aprovada pela Igreja Católica), e a efervescência da prática do Sacramento da Confissão nas paróquias de todo o mundo;

O Vaticano revelando, ainda que tarde, seus segredos históricos e eclesiásticos guardados secularmente a sete chaves;

Líderes de todas as facções religiosas revelando – em confissão e por desencargo de consciência – que Dostoiévski, Nietzsche, Saramago, Chaplin, Galilei, Reich, Freud, Einstein, Huxley, Epicuro, Fernando Pessoa, Thomas Edison, Charles Darwin e Lennon, entre inúmeros gênios, eram figuras sapientes, confiáveis, generosas e amáveis, dignos de serem ouvidos e seguidos;

A NASA tirando do baú e divulgando, embora sem mais nenhuma serventia, suas descobertas científicas e pesquisas espaciais sigilosas;

Terroristas e homens-bombas explodindo de raiva, revoltados com o efeito bumerangue;

Todo mundo, incluindo aidéticos, praticando sexo sem camisinha;

Pedófilos dissimulados praticando suas taras imorais e esdrúxulas;

Psicanalistas, psicólogos e terapeutas irresponsáveis seduzindo seus pacientes;

Homofóbos, racistas, chauvinistas, xenófobos e preconceituosos em geral praticando calorosamente suas aversões nefastas;

Depravação, obscenidade, parentes copulando com parentes, Sodoma e Gomorra se reeditando, tudo como Satã quer e gosta;

Pessoas revoltadas fazendo justiça com as próprias mãos, visando, por exemplo, vingar a morte do irmão assassinado ou a da mãe acidentada no trânsito;

Pessoas injustiçadas dando, numa atitude revanchista, o troco a seus déspotas e opressores;

Oportunistas e caras de pau vendendo terrenos na Lua e em Marte, à vista e em espécie, com desconto de 90%;

Internautas inescrupulosos espalhando boatos e defecando nas redes sociais contra seus desafetos;

Desesperados querendo ser tornar, a todo custo, cobaias de extraterrestres, só para fugir da catástrofe;

Propaganda de lançamento de um novo produto: Fique invisível e se livre da explosão mundial!

Grandes laboratórios farmacêuticos futurando zilhões e zilhões de euros com a pandemia de doenças como a antlofobia, astrofobia, brontofobia, termofobia, calipsefobia, demonofobia, somnifobia, meteorofobia e necrofobia, entre outros transtornos de ansiedade de nomes morfológica e semanticamente psicodélicos;

Superpotências pedindo perdão à Humanidade pela ganância capitalista e ocupações imperialistas, que causaram guerras e mortes de milhões de pessoas inocentes em diversos continentes do Planeta.

Enfim, se as pessoas acreditassem plenamente na previsão apocalíptica, o fim do mundo seria um verdadeiro deus nos acuda, uma bagaceira sem igual.

Mas, se eu fosse Deus, não destruiria o mundo não. Faria algumas reformas essenciais, justas e necessárias

Primeiro ato: em vez de Terra, o planeta passaria a se chamar Paz!

Em seguida, ignoraria essa conversa de herdeiros  do pecado original. Nada de pagar o justo pelo pecador! Nem aqui, nem na China!

Chega de tragédias: não haverá terremotos, tsunamis, tornados, vulcões, dilúvios ou qualquer outro fenômeno natural destrutivo em nenhum lugar do mundo!

Eu, o Todo-Poderoso, acabaria com a indústria bélica. Não haverá bombas nucleares, mísseis e nenhum tipo de arma de fogo sobre o planeta!

Eu, o Criador Onipresente, faria a reforma racial: não haverá brancos, negros, amarelos, índios.Todos serão coloridos!

Eu, o Soberano Onipotente, implantaria a reforma geográfica: não haverá país maior que outro! Todos terão os mesmos metros quadrados e a mesma quantidade de recursos e belezas naturais! Todos falaram uma só língua e suas moedas correntes terão o mesmo valor cambial! Não haverá mais superpotências e nem impérios!

Eu, o Supremo Magistrado, faria a reforma moral: fora todos os corruptos, crápulas, usurpadores e ditadores de qualquer tendência político-ideológica!

Eu, o Senhor da Democracia, promoveria também a reforma social: todos serão realmente iguais perante a lei e gozarão dos mesmos privilégios materiais e culturais!

Eu, o Sumo Sacerdote da Alma, faria, com urgência e sem pestanejar, a reforma religiosa e espiritual: a partir de hoje, a religião do planeta será o Amor!

E, por fim, eu, o Onisciente, decretaria: não tentarás contra a natureza. A partir de agora, a consciência ecológica passará a ser matéria disciplinar obrigatória em todas as escolas do planeta Paz!

Walter Bezerra

(ilustração de Cleto de Assis)

 

A Sexta-feira da Paixão de Saramago

Morre José Saramago

Costuma-se dizer que, quando morremos, temos um encontro com Deus. E quem nele não acredita? Será bem recebido pelo que chamamos de Pai de Todos? Ou entrará simplesmente no eco cósmico, integrando-se ao pó das estrelas? Pode ser o caso do escritor português José Saramago, Nobel de Literatura, que encontrou seu ponto final (após abandonar milhões de pontos e vírgulas, à moda de Joyce) nesta sexta-feira, 18 de junho de 2010. Pessoalmente, gosto de alguns de seus textos, embora discordasse de suas posições políticas últimas. Quase reabilitou-se quando reconheceu publicamente que na ilha de Cuba os direitos humanos não são respeitados, notadamente com relação à liberdade de expressão. Teve a coragem, entretanto, de colocar-se contra as tradições religiosas, albergando-se na fé ateísta (existe?). Mas termina sua vida de quase nove décadas, as três últimas com maior dedicação à literatura, recompensada pelo reconhecimento internacional de sua obra. Nós, os ainda sobreviventes, ficamos curiosos: já do outro lado (existe?), Saramago se decepcionou com o que encontrou? Encontrou a resposta final: existe?Ou já estará satisfeito com a imortalidade que construiu na vidinha terrestre? Seguida à notícia de sua morte, publicamos a manifestação poética de nosso correntista Maurício Ferreira, visivelmente surpreso e entristecido com a ocorrência. Para completar a homenagem, o Saramago poeta, que pouca gente conhece. (C. de A.)

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O escritor português e Prêmio Nobel de Literatura José Saramago morreu nesta sexta-feira em sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, aos 87 anos. Segundo a família, a morte ocorreu por volta das 13h no horário local (8h de Brasília), quando o escritor estava em casa, acompanhado da mulher, Pilar del Río.

José Saramago havia passado uma noite tranquila. Após o café da manhã, começou a passar mal e pouco depois morreu, de acordo com informações da família.

Biografia

Prêmio Nobel de Literatura em 1998, primeiro escritor de língua portuguesa a obter a honraria, Saramago mostrou ao longo de sua vida uma paixão duradoura pela literatura.

Seus livros são marcados pelos períodos longos e pela pontuação em muitos momentos quase inexistente. Os artifícios formais são vistos como verdadeira barreira para vários leitores, mas outros se encantam com a fluidez de seus textos, sempre entremeados por reflexões fortemente humanistas.

Nascido em 16 de novembro de 1922, em aldeia do Ribatejo chamada Azinhaga, de família humilde, Saramago só veio a produzir sua primeira obra de sua fase mais madura em 1980, Levantado do Chão.

Dois anos depois, Memorial do Convento o colocou como um dos maiores autores de Portugal, posição confirmada com o lançamento do inventivo O ano da morte de Ricardo Reis, em que narra os dias finais do heterônimo de um dos pilares da literatura de seu país: Fernando Pessoa, em uma criativa mescla de fatos reais e imaginados.

Saramago era um autor prolífico. Além de romances, publicou diários, contos, peças, crônicas e poemas. Ainda em 2009, lançou mais um livro, Caim.

Esta obra retoma um personagem bíblico, subvertendo a versão oficial da Igreja Católica. Em 1991, seu Evangelho segundo Jesus Cristo dispôs de artifício semelhante. A “reescrita” do ateu convicto de esquerda não agradou aos religiosos, provocando grande polêmica em uma nação fortemente católica.

No ano seguinte, o livro foi indicado a um prêmio, mas o governo português vetou a candidatura. Insatisfeito, Saramago partiu para um “exílio voluntário” na espanhola Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde vivia desde 1993.

Outro de seus romances, Ensaio sobre a Cegueira, narra uma epidemia em que os personagens perdem a visão, enquanto uma mulher a mantém. A obra, uma das mais conhecidas do português, foi adaptada para o cinema pelas mãos do diretor brasileiro Fernando Meirelles. O filme foi exibido no Festival de Cannes. (Fonte: IG)

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Pô, Saramago?!

Maurício Ferreira, Jaú

Hoje o mundo ficou menos humano
Morreu o homem da virgula
E só nos restou o ponfo final.

Vontade imensa de chorar olhando sua foto, Saramago….
Você que combateu a vida toda a intolerância de qualquer fé
Era o único que considerava espelho…

Suficientemente humano
prá ao menos TENTAR!
salvar o homem de DEUS.

18 de junho de 2010

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Espaço curvo e finito

José Saramago, Portugal

Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

(De Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Lisboa, 1981. 3ª edição)

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Ilsutrações: C. de A.


Deus para crentes e descrentes

Li no blog espanhol de Francisco Cenamor, Asamblea de Palabras, um poema da mexicana Guadalupe Amor Schmidtlein, mais conhecida como Guadalupe Amor ou Pita Amor (Pita deve ser o diminutivo do diminutivo Guadalupita). Ele faleceu em 2000, no dia 9 de maio, há, portanto, nove anos. Mas sua vida literária foi prolífica, assim como sua participação social em direção à emancipação feminina, na sociedade das primeiras décadas do Séc. XX, que se escandalizava por qualquer coisa.

Pita Amor nasceu no dia 30 de maio de 1918 na Cidade do México. Poeta experta em décimas, sua obra também se caracteriza por cuidadosos textos, influenciados, sem dúvida, por Quevedo, Sóror Joana e Gôngora.

PitaAmorPita cantou Deus, a morte, a solidão, a angústia, o nada. Desde muito jovem, Pita conviveu com artistas e intelectuais do México, graças a sua irmã Carita, colaboradora de Carlos Chávez e fundadora da Galería de Arte Mexicana, que foi instalada no porão da casa de seu pai, por onde desfilaram Rivera, Orozco, Tamayo, Siqueiros, O’Gorman entre muitos outros. Desta época surge a amizade de Pita con Juan Soriano, Cordelia Urueta, Roberto Montenegro, Antonio Peláez. Para todos eles pousou, inclusive para Rivera, que a pintou desnuda, o que produziu grande escândalo na família Amor.

Bonita, apaixonada e polêmica, foi apadrinhada poéticamente por Alfonso Reyes, que sobre ela assim se referiu: “…e nada de comparações odiosas, aqui se trata de um caso mitológico”. Pita, porém, seguiu de escândalo em escândalo, se envolveu em romances com toureiros, pintores, artistas e escritores, mas igualmente foi precursora do que depois se chamaria liberação feminina. “Não sou como muitas mulheres mexicanas”, dizia Pita.

Entre as obras que publicou, se destacam os poemários: Yo soy mi casa (1946), dedicado a sua amiga Gabriela Mistral; Puerta obstinada (1947), Círculo de angustia (1948), Polvo (1949), Décimas a Dios (1953), Sirviéndole a Dios, de hoguera (1958), Todos los siglos del mundo (1959), Soy dueña del universo (1984). Dentro do gênero narrativo: Yo soy mi casa (1957) – seu primeiro texto em prosa, e Galería de títeres (1959).

Sua personalidade a levou a dizer que sua poesia somente podia ser equiparada à de Sóror Joana Inés de la Cruz e Octavio Paz. E em alguma ocasião também afirmou: “Oxalá que algum destes versos possa dar a quem o leia um reflexo modesto de sua angústia, de sua esperança”.

Assim se descreveu:

Sozinha estou e plena de inquietudes;
cada dia me interno mais adentro;
meus defeitos atraem as virtudes;
de um misterioso círculo sou o centro.
O cansaço que tenho é infinito;
toda a dor do mundo tenho provado;
um labirinto de ansiedade habito
e tenteando me revolvo no intricado.

Décimas

Dios, invención admirable,
hecha de ansiedad humana
y de esencia tan arcana,
que se vuelve impenetrable.
¿Por qué no eres tú palpable
para el soberbio que vio?
¿Por qué me dices que no
cuando te pido que vengas?
Dios mío, no te detengas,
o ¿quieres que vaya yo?

***

Yo siempre vivo pensando
cómo serás si es que existes;
de qué esencia te revistes
cuando te vas entregando.
¡Debo a ti llegar callando
para encontrarte en lo oscuro!
O ¿es el camino seguro
el de la fe luminosa?
¿Es la exaltación grandiosa,
o es el silencio maduro?

***

Te quiero hallar en las cosas;
te obligo a que exista el cielo,
intento violar el velo
en que invisible reposas.
Sí, con tu ausencia me acosas
y el no verte me subleva;
pero de pronto se eleva
algo extraño que hay en mí,
y me hace llegar a ti
una fe callada y nueva.

***

Hablo de Dios como el ciego
que hablase de los colores
e incurro en graves errores
cuando a definirlo llego.
De mi soberbia reniego,
porque tengo que aceptar
que no sabiendo mirar
es imposible entender.
¡Soy ciega y no puedo ver,
y quiero a Dios abarcar!…

***

Oculto, ausente, baldío,
hermético, inalterable,
asfixiante, invulnerable,
absorbente, extraño y frío;
así te siento, Dios mío,
cuando sola y angustiada
me consumo alucinada
por lograr mi plenitud,
rompiendo esta esclavitud
a la que estoy condenada.

Dios_Cocijo
Museu Nacional de Antropologia don Mexico
O deus zapoteca Cocijo (deus da chuva) de Monte Albán
(200-500 d.C.)

Versão em português

Deus, invenção admirável,
feita de ansiedade humana
e de essência tão arcana,
que se torna impenetrável.
Por que não és mais palpável
para o soberbo de cá?
Por que me dizes que não
quando te peço que venhas?
Deus meu, não te detenhas,
ou queres que eu me vá?

***

Eu sempre vivo pensando
como serás, se é que existes;
de que essência te revestes
quando te vais entregando.
Devo a ti chegar calando
para encontrar-te no escuro!
Ou é caminho seguro
este da fé luminosa?
É a exaltação grandiosa,
ou o silêncio maduro?

***

Quero encontrar-te nas coisas;
obrigo a que exista o céu,
procuro violar o véu
em que, invisível,  repousas.
Se em tua ausência me acossas
e o não ver-te me subleva;
Mas de repente se eleva
algo estranho que há em mim,
e a ti entrego, enfim,
uma fé calada e nova.

***

Falo de Deus como o cego
que imaginasse o oceano
e incorro em desengano
quando a defini-lo chego.
Minha soberba renego,
porque tenho que aceitar
que não sabendo olhar
é impossível entender.
Sou cega e não posso ver,
e quero a Deus abarcar!…

***

Oculto, baldio,ausente,
hermético, inalterável,
asfixiante, invulnerável,
frio, estranho e absorvente;
assim te sinto, a Deus crente,
se sozinha  e angustiada
me consumo alucinada
para alcançar tua mão,
rompendo esta escravidão
a que estou condenada.

(C. de A.)