A Sexta-feira da Paixão de Saramago

Morre José Saramago

Costuma-se dizer que, quando morremos, temos um encontro com Deus. E quem nele não acredita? Será bem recebido pelo que chamamos de Pai de Todos? Ou entrará simplesmente no eco cósmico, integrando-se ao pó das estrelas? Pode ser o caso do escritor português José Saramago, Nobel de Literatura, que encontrou seu ponto final (após abandonar milhões de pontos e vírgulas, à moda de Joyce) nesta sexta-feira, 18 de junho de 2010. Pessoalmente, gosto de alguns de seus textos, embora discordasse de suas posições políticas últimas. Quase reabilitou-se quando reconheceu publicamente que na ilha de Cuba os direitos humanos não são respeitados, notadamente com relação à liberdade de expressão. Teve a coragem, entretanto, de colocar-se contra as tradições religiosas, albergando-se na fé ateísta (existe?). Mas termina sua vida de quase nove décadas, as três últimas com maior dedicação à literatura, recompensada pelo reconhecimento internacional de sua obra. Nós, os ainda sobreviventes, ficamos curiosos: já do outro lado (existe?), Saramago se decepcionou com o que encontrou? Encontrou a resposta final: existe?Ou já estará satisfeito com a imortalidade que construiu na vidinha terrestre? Seguida à notícia de sua morte, publicamos a manifestação poética de nosso correntista Maurício Ferreira, visivelmente surpreso e entristecido com a ocorrência. Para completar a homenagem, o Saramago poeta, que pouca gente conhece. (C. de A.)

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O escritor português e Prêmio Nobel de Literatura José Saramago morreu nesta sexta-feira em sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, aos 87 anos. Segundo a família, a morte ocorreu por volta das 13h no horário local (8h de Brasília), quando o escritor estava em casa, acompanhado da mulher, Pilar del Río.

José Saramago havia passado uma noite tranquila. Após o café da manhã, começou a passar mal e pouco depois morreu, de acordo com informações da família.

Biografia

Prêmio Nobel de Literatura em 1998, primeiro escritor de língua portuguesa a obter a honraria, Saramago mostrou ao longo de sua vida uma paixão duradoura pela literatura.

Seus livros são marcados pelos períodos longos e pela pontuação em muitos momentos quase inexistente. Os artifícios formais são vistos como verdadeira barreira para vários leitores, mas outros se encantam com a fluidez de seus textos, sempre entremeados por reflexões fortemente humanistas.

Nascido em 16 de novembro de 1922, em aldeia do Ribatejo chamada Azinhaga, de família humilde, Saramago só veio a produzir sua primeira obra de sua fase mais madura em 1980, Levantado do Chão.

Dois anos depois, Memorial do Convento o colocou como um dos maiores autores de Portugal, posição confirmada com o lançamento do inventivo O ano da morte de Ricardo Reis, em que narra os dias finais do heterônimo de um dos pilares da literatura de seu país: Fernando Pessoa, em uma criativa mescla de fatos reais e imaginados.

Saramago era um autor prolífico. Além de romances, publicou diários, contos, peças, crônicas e poemas. Ainda em 2009, lançou mais um livro, Caim.

Esta obra retoma um personagem bíblico, subvertendo a versão oficial da Igreja Católica. Em 1991, seu Evangelho segundo Jesus Cristo dispôs de artifício semelhante. A “reescrita” do ateu convicto de esquerda não agradou aos religiosos, provocando grande polêmica em uma nação fortemente católica.

No ano seguinte, o livro foi indicado a um prêmio, mas o governo português vetou a candidatura. Insatisfeito, Saramago partiu para um “exílio voluntário” na espanhola Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde vivia desde 1993.

Outro de seus romances, Ensaio sobre a Cegueira, narra uma epidemia em que os personagens perdem a visão, enquanto uma mulher a mantém. A obra, uma das mais conhecidas do português, foi adaptada para o cinema pelas mãos do diretor brasileiro Fernando Meirelles. O filme foi exibido no Festival de Cannes. (Fonte: IG)

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Pô, Saramago?!

Maurício Ferreira, Jaú

Hoje o mundo ficou menos humano
Morreu o homem da virgula
E só nos restou o ponfo final.

Vontade imensa de chorar olhando sua foto, Saramago….
Você que combateu a vida toda a intolerância de qualquer fé
Era o único que considerava espelho…

Suficientemente humano
prá ao menos TENTAR!
salvar o homem de DEUS.

18 de junho de 2010

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Espaço curvo e finito

José Saramago, Portugal

Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

(De Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Lisboa, 1981. 3ª edição)

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Ilsutrações: C. de A.


Uma resposta para “A Sexta-feira da Paixão de Saramago

  1. Conheci José Saramago, ainda era ele um simples redator do ”Diário de Lisboa”, e eu de ”O País”, frequentadores das tascas do Bairro Alto, onde o Saramago se sentava, sem dar grande conversa, porque era extraordinàriamente introvertido. Nessa altura, comungando os dois das mesmas ideias políticas, tivemos oportunidade de algumas trocas de impressões, porque, com ele, falava ao sabor das minhas convicções com as quais estávamos sempre ou quase sempre de acordo, exceto quando se versava sobre a religião. Que outro mérito não houvesse, já que neste ponto discordávamos em absoluto, salvava-se a dose de originalidade,que eu não deixava de admirar e até me dava gozo, quanto mais não fosse por lhe proporcionar motivos de azedume que acabavam sempre em grandes risadas…
    A vida levou-nos para rumos diferentes. Estive sempre atenta ao seu percurso literário e à sua subida em espiral rumo ao sucesso.
    Mas da sua imagem permanece a daquele colega zombeteiro, irônico, que se ria dos patriotas encartados, sem a ”honesta” hipocrisia social.
    Hoje choro por esse Saramago, por essas horas passadas nas tasquinhas lisboetas, não o Prêmio Nobel, mas o camarada, falando das guerras, ditaduras, revoluções, monstruosas inocências e desenganos, mortos e até de vivos conhecidos que até hoje não sei a que plagas foram dar.
    E acalento apenas a ambição de voltarmos um dia, onde quer que seja, a retomarmos essas discussões intermináveis.

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