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Dia Internacional da Água

As águas sensuais de Neruda

Água, líquido incolor, inodoro e insípido – esta a definição que aprendemos na escola sobre o precioso elemento da natureza, um dos quatro fundamentais, segundo os antigos alquimistas – junto ao fogo, o ar e a terra. Se pensarmos bem, ela é o mais importante, pois sem ela não há vida. Dela nascemos, não do pó da terra, e sem ela morreremos. Ela oxigena o ar, alimenta a terra e ai do fogo que se intrometer, pois ela é capaz de extingui-lo.

Dizem que será mais preciosa que o petróleo, que o próprio ouro. E guerras já se fazem para disputá-la (atenção aos governadores Alckmin e Cabral, que ensaiam brigas pelas águas do rio Paraíba do Sul, face à seca que acomete a região Sudeste), principalmente em regiões onde ela escasseou e desertificou imensas áreas. Diz a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) que a cada 15 segundos uma criança morre, no mundo, de doenças relacionadas à falta de água potável, de saneamento e de condições de higiene. Mesmo o Brasil, rico em água potável, convive com a morte infantil causada por sua falta.

No dia 22 de março comemorou-se o Dia Mundial da Água, que se seguiu aos dias da Poesia e das Árvores/Florestas. Mas água também tem poesia e é indispensável para as plantas. Apesar das 24 horas de atraso, vamos lembrá-la com um belo poema de Neruda.

agua sexual

Pablo Neruda

Rodando a goterones solos,
a gotas como dientes,
a espesos goterones de mermelada y sangre,
rodando a goterones,
cae el agua,
como una espada en gotas,
como un desgarrador río de vidrio,
cae mordiendo,
golpeando el eje de la simetría, pegando en las costuras del
alma,
rompiendo cosas abandonadas, empapando lo oscuro.

Solamente es un soplo, más húmedo que el llanto,
un líquido, un sudor, un aceite sin nombre,
un movimiento agudo,
haciéndose, espesándose,
cae el agua,
a goterones lentos,
hacia su mar, hacia su seco océano,
hacia su ola sin agua.

Veo el verano extenso, y un estertor saliendo de un granero,
bodegas, cigarras,
poblaciones, estímulos,
habitaciones, niñas
durmiendo con las manos en el corazón,
soñando con bandidos, con incendios,
veo barcos,
veo árboles de médula
erizados como gatos rabiosos,
veo sangre, puñales y medias de mujer,
y pelos de hombre,
veo camas, veo corredores donde grita una virgen,
veo frazadas y órganos y hoteles.

Veo los sueños sigilosos,
admito los postreros días,
y también los orígenes, y también los recuerdos,
como un párpado atrozmente levantado a la fuerza
estoy mirando.

Y entonces hay este sonido:
un ruido rojo de huesos,
un pegarse de carne,
y piernas amarillas como espigas juntándose.
Yo escucho entre el disparo de los besos,
escucho, sacudido entre respiraciones y sollozos.

Estoy mirando, oyendo,
con la mitad del alma en el mar y la mitad del alma
en la tierra,
y con las dos mitades del alma miro al mundo.

y aunque cierre los ojos y me cubra el corazón enteramente,
veo caer un agua sorda,
a goterones sordos.
Es como un huracán de gelatina,
como una catarata de espermas y medusas.
Veo correr un arco iris turbio.
Veo pasar sus aguas a través de los huesos.

Dia Mundial da Água

ÁGUA SEXUAL

Rodando em solitárias goteiras,
em gotas como dentes,
em espessas goteiras de geleia e sangue,
rodando em goteiras,
cai a água,
como uma espada em gotas,
como um desgarrador rio de vidro,
cai mordendo,
golpeando o eixo da simetria, grudando nas costuras da alma,
rompendo coisas abandonadas, empapando o escuro.

Somente é um sopro, mais úmido que o pranto,
um líquido, um suor, um óleo sem nome,
um movimento agudo,
fazendo-se, espessando-se,
cai a água,
em goteiras lentas,
rumo a seu mar, até se seco oceano,
até sua onda sem água.

Vejo o verão extenso, e um estertor saindo de um silo,
adegas, cigarras,
populações, estímulos,
habitações, meninas
dormindo com as manos no coração,
sonhando com bandidos, com incêndios,
vejo barcos,
vejo árvores de medula
eriçados como gatos raivosos,
vejo sangue, punhais e meias de mulher,
e cabelos de homem,
vejo camas, vejo corredores onde grita uma virgem,
vejo cobertores e órgãos e hotéis.

Vejo os sonhos sigilosos,
admito os pósteros dias,
e também as origens, e também as lembranças,
como uma pálpebra atrozmente levantada a força
estou olhando.

E então há este som:
um ruído escarlate de ossos,
um grudar-se de carne,
e pernas amarelas como espigas a se juntar.
Eu escuto entre o disparo dos beijos,
escuto, sacudido entre respirações e soluços.

Estou olhando, ouvindo,
com a metade da alma no mar e a metade da alma
na terra,
e com as duas metades da alma olho o mundo.

E ainda que feche os olhos e me cubra o coração inteiramente,
vejo cair uma água surda,
em goteiras surdas.
É como um furacão de gelatina,
como uma catarata de espermas e medusas.
Vejo correr um arco íris turvo.
Vejo passar suas águas através dos ossos.

Tradução e ilustração de Cleto de Assis

Walter Bezerra, de Maceió, reflete sobre o Fim do Mundo

Crônica sobre o fim do mundo

Sabemos que o mundo não se acabou no ano 2000, frustrando a interpretação de uma das centúrias do astrólogo, astrônomo, alquimista, erudito e mago francês Michel Nostradamus.

Agora, os donos da bola de cristal estão afirmando que o dia 21 de dezembro de 2012 será o fim do mundo (ou o início de um novo ciclo, como dizem os mais românticos), segundo previsão apocalíptica baseada na cultura maia.

O pressentimento é que o Sol nascerá, no tal dia, aliado ao planeta e ao centro da Via Láctea, um fato astronômico que só acontece a cada 26 mil anos e que provocará o cataclismo, causando o fim da vida na Terra.

Em alguns países, como na Espanha, as pessoas de alto poder econômico estão construindo, em sistema de cooperativas, os famosos bunkers, refúgios subterrâneos emergenciais, para se protegerem da possível explosão do planeta.

Os bunkers permitem que as pessoas permaneçam no interior deles até 3 anos, respirando ar puro e sobrevivendo à base de medicamentos e alimentos estocados. Eles estão protegidos por uma capa de 60 centímetros de concreto e contam com filtros de partículas radioativas para evitar a infiltração de resíduos tóxicos ou a passagem de radiação ou bactérias.

A história dos bunkers é uma realidade inconteste. Mas, digamos que as pessoas realmente acreditem que o mundo vai se acabar em 21 de dezembro, eu fico a imaginar, cá da minha porção vidente hilária, o que poderia acontecer diante dos efeitos colaterais causados pela síndrome do pânico generalizada:

Milhares e milhares de mulheres grávidas desesperadas por não poderem sequer conhecer a cara dos frutos de seus ventres;

Mulheres casadas – reprimidas, sofridas e traídas por seus maridos – pulando, por simples vingança, a cerca pela primeira e última vez;

Outras revelando, para seus maridos mulherengos, que tais filhos não são deles, mas dos vizinhos, patrões e pés de lã;

Outras ainda, agora decididas e encorajadas, revelando suas fantasias sexuais a seus maridos, namorados e parceiros de cama conservadores e recatados sexualmente;

Caretas e falsos moralistas experimentando maconha, cocaína, LSD e outras drogas alucinógenas e “reveladoras”;

Pais repressores, arrependidos, pedindo perdão a seus filhos;

Boa percentagem dos católicos, evangélicos, mulçumanos, espíritas e outros crédulos rogando a Deus para que lhes salve as almas, posto que só eles – por serem religiosos confessos e praticantes – merecem mais do que ninguém sobreviver à tragédia;

Centenas de milhares de agnósticos saindo de cima do muro e fazendo opção definitiva por Deus;

Empresários e milionários gastando tudo com viagens, extravagâncias e orgias;

Maus políticos, insaciáveis, promovendo a farra do Dinheiro Público dos Últimos Dias;

Homens e mulheres de bem revelando seus quinhões corruptos camuflados;

Multidões incautas, pobres, honestas e sem grandes ambições jogadas ao deus-dará;

Empregados e bajuladores mandando seus gerentes, diretores e patrões tomarem no devido lugar;

Formação acirrada e célere de cartéis, empresários majorando os preços, inflação a todo pique;

Devedores rindo da cara de seus credores;

Aproveitadores e caloteiros adquirindo tudo a crédito: carros de luxo, lanchas, vinhos, uísques, jóias, casacos de couro e perfumes caríssimos, visando desfrutar os (últimos) prazeres da vida;

Todo mundo, pessoas jurídicas e físicas, sonegando impostos, provocando a falência múltipla de países, estados e municípios e quebrando, por osmose, seus funcionários e fornecedores;

Tchau, tchau serviços essenciais públicos (saúde, segurança, educação etc.)!;

Estupradores de plantão violentando ídolos, divas e paixões adormecidas e dissimuladas;

Homossexuais enrustidos assumindo suas opções e preferências sexuais,

Vegetarianos devorando carnes, inclusive vermelhas, e naturalistas comendo produtos de origem animal, incluindo enlatados;

Naturistas e exibicionistas desfilando nus pelas ruas, sem nenhum pudor ou constrangimento;

Comercialização massificada de confessionários eletrônicos aplicados em iPhones, (concessão já aprovada pela Igreja Católica), e a efervescência da prática do Sacramento da Confissão nas paróquias de todo o mundo;

O Vaticano revelando, ainda que tarde, seus segredos históricos e eclesiásticos guardados secularmente a sete chaves;

Líderes de todas as facções religiosas revelando – em confissão e por desencargo de consciência – que Dostoiévski, Nietzsche, Saramago, Chaplin, Galilei, Reich, Freud, Einstein, Huxley, Epicuro, Fernando Pessoa, Thomas Edison, Charles Darwin e Lennon, entre inúmeros gênios, eram figuras sapientes, confiáveis, generosas e amáveis, dignos de serem ouvidos e seguidos;

A NASA tirando do baú e divulgando, embora sem mais nenhuma serventia, suas descobertas científicas e pesquisas espaciais sigilosas;

Terroristas e homens-bombas explodindo de raiva, revoltados com o efeito bumerangue;

Todo mundo, incluindo aidéticos, praticando sexo sem camisinha;

Pedófilos dissimulados praticando suas taras imorais e esdrúxulas;

Psicanalistas, psicólogos e terapeutas irresponsáveis seduzindo seus pacientes;

Homofóbos, racistas, chauvinistas, xenófobos e preconceituosos em geral praticando calorosamente suas aversões nefastas;

Depravação, obscenidade, parentes copulando com parentes, Sodoma e Gomorra se reeditando, tudo como Satã quer e gosta;

Pessoas revoltadas fazendo justiça com as próprias mãos, visando, por exemplo, vingar a morte do irmão assassinado ou a da mãe acidentada no trânsito;

Pessoas injustiçadas dando, numa atitude revanchista, o troco a seus déspotas e opressores;

Oportunistas e caras de pau vendendo terrenos na Lua e em Marte, à vista e em espécie, com desconto de 90%;

Internautas inescrupulosos espalhando boatos e defecando nas redes sociais contra seus desafetos;

Desesperados querendo ser tornar, a todo custo, cobaias de extraterrestres, só para fugir da catástrofe;

Propaganda de lançamento de um novo produto: Fique invisível e se livre da explosão mundial!

Grandes laboratórios farmacêuticos futurando zilhões e zilhões de euros com a pandemia de doenças como a antlofobia, astrofobia, brontofobia, termofobia, calipsefobia, demonofobia, somnifobia, meteorofobia e necrofobia, entre outros transtornos de ansiedade de nomes morfológica e semanticamente psicodélicos;

Superpotências pedindo perdão à Humanidade pela ganância capitalista e ocupações imperialistas, que causaram guerras e mortes de milhões de pessoas inocentes em diversos continentes do Planeta.

Enfim, se as pessoas acreditassem plenamente na previsão apocalíptica, o fim do mundo seria um verdadeiro deus nos acuda, uma bagaceira sem igual.

Mas, se eu fosse Deus, não destruiria o mundo não. Faria algumas reformas essenciais, justas e necessárias

Primeiro ato: em vez de Terra, o planeta passaria a se chamar Paz!

Em seguida, ignoraria essa conversa de herdeiros  do pecado original. Nada de pagar o justo pelo pecador! Nem aqui, nem na China!

Chega de tragédias: não haverá terremotos, tsunamis, tornados, vulcões, dilúvios ou qualquer outro fenômeno natural destrutivo em nenhum lugar do mundo!

Eu, o Todo-Poderoso, acabaria com a indústria bélica. Não haverá bombas nucleares, mísseis e nenhum tipo de arma de fogo sobre o planeta!

Eu, o Criador Onipresente, faria a reforma racial: não haverá brancos, negros, amarelos, índios.Todos serão coloridos!

Eu, o Soberano Onipotente, implantaria a reforma geográfica: não haverá país maior que outro! Todos terão os mesmos metros quadrados e a mesma quantidade de recursos e belezas naturais! Todos falaram uma só língua e suas moedas correntes terão o mesmo valor cambial! Não haverá mais superpotências e nem impérios!

Eu, o Supremo Magistrado, faria a reforma moral: fora todos os corruptos, crápulas, usurpadores e ditadores de qualquer tendência político-ideológica!

Eu, o Senhor da Democracia, promoveria também a reforma social: todos serão realmente iguais perante a lei e gozarão dos mesmos privilégios materiais e culturais!

Eu, o Sumo Sacerdote da Alma, faria, com urgência e sem pestanejar, a reforma religiosa e espiritual: a partir de hoje, a religião do planeta será o Amor!

E, por fim, eu, o Onisciente, decretaria: não tentarás contra a natureza. A partir de agora, a consciência ecológica passará a ser matéria disciplinar obrigatória em todas as escolas do planeta Paz!

Walter Bezerra

(ilustração de Cleto de Assis)

 

Coelhinho da Páscoa, que trazes pra mim?

Um ovo, dois ovos, três ovos, assim!

Tem criança que não gosta de ovo de galinha, mas nunca vi alguém rejeitar ovo de chocolate. E no domingo de Páscoa os adultos também se transformam em crianças gulosas e ajudam a saborear as gostosuras que o Coelhinho traz para todo mundo.

Os povos antigos – muito antes dos Judeus e Cristãos terem transformado a Páscoa em data tradicional de seus respectivos ritos, embora por diferentes motivos – celebravam a chegada da Primavera com homenagem a  Eostre ou Ostera, deusa da estação das flores, das plantas renovadas, das árvores mais uma vez enverdecidas e também da época de reprodução de muitos animais. Ela também é conhecida como Eostra, Eostrae, Eastre e Estre. Note-se que Páscoa em inglês é Easter e em alemão Ostern, com certeza palavras derivadas do nome da deusa

Eostre, deusa pagã da Primavera

Eostre tinha sempre em suas mãos um ovo, a simbolizar o início de nova vida. Junto a ela, o coelho, símbolo da fertilidade. As antigas lendas que envolvem a sua história têm explicação para isso.

Seu nome tem origem no advérbio anglo-saxão ostar, que quer dizer sol nascente ou “sol que sobe. Daí sua associação com a aurora e, depois, com a luz radiante da Primavera, estação que trazia alegria para o povo e coisas boas para a mãe Terra.

Os gregos também tiveram uma deusa para a Primavera e seu nome era Eos. E eos, em grego, quer dizer aurora. Também há quem a identifique com Ishtar e Astarte, respetivamente deusas da Primavera da Babilônia e da Fenícia.

As lendas também contam que Eostre nutria predileção por crianças, que a seguiam por onde passasse. A deusa cantava e brincava com elas. Em um desses encontros, um pássaro pousou nas mãos de Eostre. Ela, então, pronunciou palavras mágicas e transformou o pássaro em seu animal favorito, uma lebre. Embora as crianças tivessem se maravilhado com a magia, meses mais tarde notaram que a lebre não se mostrava alegre, já que não podia mais voar ou cantar. Pediram, portanto, que a deusa retirasse o encantamento, mas suas tentativas foram em vão. Explicou às crianças que, como já estavam no Inverno, suas forças mágicas estavam diminuídas. Mas tentaria novamente na próxima Primavera.

Quando a Primavera retornou, Eostre fez com que a lebre voltasse à forma original de pássaro, durante certo tempo. Grato à deusa, o pássaro botou ovos em sua homenagem. E, também em consideração às crianças, que pediram sua liberdade, o pássaro, quando novamente voltou a ser uma lebre, pintou os ovos e os distribuiu em todo o mundo.

E acabou-se o que era doce.

Acabou não, porque amanhã tem mais chocolate.

Voltemos à Poesia

De grão em grão, a galinha enche o papo. E de ovo em ovo, podemos encher cestas de alegria e cornucópias de Poesia, já que estamos falando de fertilidade e fartura. Fui buscar ovos nos ninhos de Calíope, Polímnia, Euterpe e Erato e elas me ofertaram uma preciosiade: um poema talvez inspirado diretamente pelas musas, em seus tempos de mando no Olimpo, em companhia de Apolo. Trata-se do primeiro poema visual da história da Poesia, composto três séculos antes de Cristo, por Símias de Rodes. Abaixo, uma imagem do poema original, com duas dificuldades: é quase ilegível e o texto está escrito em grego antigo.  Em seguida, a exímia versão para o Português, feita pelo poeta brasileiro José Paulo Paes. Como a composição de J. P. Paes foi feita, em suas primeiras publicações, em outros sistemas gráficos, utilizei novos programas para “ovalar” melhor o poema.  Sobre o tradutor e o tema dos poemas visuais o Banco da Poesia se dedicará, em breve. (C. de A.)

O Ovo, de Símias de Rodes, versão de José Paulo Paes