Lembro-me de meus tempos de catecismo. Mais ou menos aos oito anos de idade. Era tempo de ver a vida do lado de fora da família, onde certas conversas ainda eram reservadas a adultos. Era tempo de descoberta da leitura, ou a arte de associar letrinhas a coisas e sensações conhecidas e desconhecidas. Foi tempo da descoberta do cinema, lugar onde temas maiores que os familiares eram colocados ante os olhos infantis. E havia o amor e havia a paixão. Amor era meta permanente, dominante; paixão, coisa secreta, quase fulminante. Amor era a chama a ser conservada tranquila, apenas calorosa, para durar até a eternidade. Paixão era chama sem controle, incendiária, a queimar rapidamente toda a lenha. Por amor se vivia; por paixão se morria.
E eis que surge, frente ao menino, a Paixão de Cristo. Assim mesmo, com inicial maiúscula. E quem era – perguntava a criança curiosa – o objeto de tamanha, arrepiante, dolorosa paixão? No drama apresentado, não havia amor ou paixão entre um homem e uma mulher. Tratava-se – diziam os mais sábios – de um dos mistérios eclesiásticos, um dos tantos que a razão humana não alcançava explicar e deveria ser aceito pela fé, outro dos tantos mistérios. Quase a mesma coisa que o menino ouvia em família: isso você vai entender quando crescer. Mas esse mistério ficou entalado na cabeça infantil que, se presume, cresceu e não entendeu o mistério da Paixão. A explicação circunloquial poderia ter sido mais simples, mais construtiva.
Independentemente do que sabemos ou não sabemos sobre tais mistérios (passei a contentar-me e extasiar-me com o grande e belo e infindo mistério da Vida), a celebração da Semana Santa, entre os cristãos, que culmina no domingo de Páscoa, assinala também momentos de reflexão sobre a crueldade que pessoas podem infligir a outras pessoas, muitas vezes porque apenas as separam pensamentos e idéias diferentes. No filme de Mel Gibson sobre o sofrimento de Cristo, a crueldade é mostrada em detalhes, quase num assomo de sadomasoquismo. Mas aquelas cenas não deixam de ser simbólicas, num momento de nossa sociedade em que a violência do homem contra o homem, talvez pela dinâmica instantânea da comunicação, está cada vez mais presente em nossas vidas.
Assim também o faz, por meio da poesia, Manoel de Andrade, no depósito feito no Banco da Poesia, para publicação na chamada Semana Santa. Somos todos gratos a você, Manoel, pela beleza de seu poema.
ECCE HOMO
Levam ao Sinédrio o humilde Nazareno
para que se julgue o amor e a inocência
e diante da judaica prepotência
o Mestre se mantém doce e sereno.
Por ser blasfemador é réu de morte
diz Caifás com desprezo ao acusado
e depois de cuspido e maltratado
aos romanos entregam a sua sorte.
No pátio do palácio a massa se aglutina
e um prenúncio sinistro percorre a multidão
traído e abandonado à própria provação
aguarda o prisioneiro a sua sina.
– É um visionário, um sonhador somente,
e me comove sua mansidão, sua pobreza…
diz Pilatos…, convicto da certeza
de estar frente a um homem inocente.
Diante da injustiça e do impasse
transfere a Antipas a sentença
mas o tetrarca devolve-lhe a presença
com os espinhos ensangüentando a face.
Coberto com o manto da ironia
e como cetro uma cana retorcida
nessa imagem de realeza escarnecida
trazem novamente o Rabi à pretoria.
Tenta Pilatos um último artifício
para acalmar a plebe alucinada
e espera que a espádua açoitada
salve o Galileu do sacrifício.
Rasga-lhe a carne o látego cruel
e nem um murmúrio de dor ante o flagelo.
Envilecido e ultrajado, invencível e belo
cumpre a Trágica Figura o seu papel.
Mas ainda assim a turba em desatino
exige que a condenação seja mantida
e Pilatos propõe à massa ensandecida
que delibere sobre o seu destino.
Diante do pretório e amotinado
o povo absolve Barrabás
e movido pelos asseclas de Caifás
exige o Galileu crucificado.
Ante a sentença e os gritos do estrupício
e entre a verdade e o interesse dos seus atos
lava as suas mãos Pôncio Pilatos
e entrega o Cordeiro ao sacrifício.
Na mais ingrata e suprema solidão
maltrapilho, descalço e abatido
para o meio da escória é conduzido
sob o escárnio cruel da multidão.
Passos cambaleantes, dor, delírio
toda a ignomínia no símbolo da cruz
o madeiro infame nos ombros de Jesus
e o lancinante caminho do martírio.
Ergue-se o holocausto ao amor crucificado
na dor que esmaga, na sede insaciável
no estóico silêncio, no deboche intolerável
no lento suplício de um Homem sem pecado.
E na agonia do Calvário, rumo à glória,
roga a Deus perdão para os algozes…
Por tanto amor recebe os golpes mais atrozes
e o julgamento mais iníquo da história.
Manoel de Andrade
Curitiba, 26/02/04
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NOTAS
Ecce homo – Eis o homem. Palavras de Pilatos ao apresentar Jesus aos judeus Ilustração: “Ecce homo” Georges Rouault (Paris, 1871 – 1958), Pintura completada entre 1937-41. Óleo sobre tela colada em madeira, 34 x 24.4 cmMuseu Nacional de Arte Moderna, Paris
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