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Finalmente, a primeira casa do poeta

Em La Chascona, o primeiro encontro com Neruda

Os visitantes se revesam, pois os pequenos ambientes da casa construída por Neruda para sua terceira mulher e seu grande amor, Matilde Urrutia, não permitem o trânsito de muita gente. A casa não apresenta aspectos faustosos, mas assimilou os gostos pessoais do poeta, que imprimiu detalhes fascinantes no projeto original do arquiteto catalão Germán Rodriguez Arias. O terreno, descoberto pelos dois amantes que ainda se escondiam dos olhares da sociedade (Neruda era casado com Delia del Carril quando conheceu Matilde e por ela se apaixonou) se encontra em uma das ladeiras do Cerro San Cristóbal, no bairro Bella Vista, em Santiago. O arquiteto propôs que a casa fosse voltada para o sol, mas o poeta queria uma vista para a cordilheira, o que resultou em mudança da orientação da construção. Foram tantas as intervenções de Neruda que, ao final, Germán Rodriguez reconheceu que o projeto era mais criação de Neruda do que dele. Cômodos pequenos: “para viver um grande amor”, como diria Vinicius de Moraes, amigo do poeta. Vários ambientes separados, acrescentados ao correr do tempo e ganhando espaços na montanha. Por isso, várias escadas, de um plano a outro. Até passagem secreta, simulando um armário, que conduzia à parte íntima da casa, do escritório e dos aposentos de Matilde. Um ninho de paixões astuciosamente protegido.

Visão da entrada pincipal, com as várias construções que compõem a residência.No alto, a sala envidraçada onde o poeta foi velado, em 23 de setembro de 1973

Visão da entrada principal, com as várias construções que compõem a residência.No alto, a sala envidraçada onde o poeta foi velado, em 23 de setembro de 1973

A primeira explicação é sobre o nome da casa, batizada também em homenagem a Matilde e seus cabelos ruivos. Era assim que ele a chamava, carinhosamente. A própria Matilde recordava que, quando caminhavam pelo bairro chamado Bella Vista, encontraram um terreno à venda, no início da encosta do cerro San Cristóbal. Era coberto de sarças e tinha um declive bastante pronunciado. “Estávamos como que enfeitiçados por um ruído de água, era una verdadeira catarata a que vinha pelo canal, no topo do lugar.” Tomados pelo entusiasmo, decidiram comprá-lo. Tempos depois, em seu poema “La Chascona”, del libro La barcarola, Neruda evocaria a “água que corre escrevendo em seu idioma”, e as sarças “que guardavam o lugar com sua sanguinária ramagem”.  Talvez a ondulada cabeleira ruiva de Matilde tenha sugerido a metáfora da água ondulante e das sarças vermelhas.

Em “Cem Sonetos de Amor” Neruda canta aos cabelos de Matilde, no Soneto XIV:

Me falta tiempo para celebrar tus cabellos.
Uno por uno debo contarlos y alabarlos:
otros amantes quieren vivir con ciertos ojos,
yo sólo quiero ser tu peluquero.

En Italia te bautizaron Medusa
por la encrespada y alta luz de tu cabellera.
Yo te llamo chascona mía y enmarañada:
mi corazón conoce las puertas de tu pelo.

Cuando tú te extravíes en tus propios cabellos,
no me olvides, acuérdate que te amo,
no me dejes perdido ir sin tu cabellera.

por el mundo sombrío de todos los caminos
que sólo tiene sombra, transitorios dolores,
hasta que el sol sube a la torre de tu pelo.

 ***

Falta-me tempo para celebrar teus cabelos. 
Um por um devo contá-los e louvá-los: 
outros amantes querem viver com certos olhos, 
eu quero somente ser teu cabeleireiro. 

Na Itália te batizaram de Medusa 
pela encrespada e alta luz de tua cabeleira. 
Eu te chamo chascona minha e emaranhada: 
meu coração conhece as portas de teu pelo. 

Quando tu te extravies em teus próprios cabelos, 
não me esqueças, lembra que te amo, 
não me deixes perdido ir sem tua cabeleira 

pelo mundo sombrio de todos os caminhos 
que só tem sombra, transitórias dores, 
até que o sol sobe à torre de teu pelo.

Versão ao Português de Cleto de Assis
Fragmento do Soneto XIV, de "Cem Sonetos de Amor", autografado pelo poeta

Fragmento do Soneto XIV, de “Cem Sonetos de Amor”, autografado pelo poeta

O pintor Diego Rivera, amigo do poeta, que conhecia seu amor secreto, fez um retrato de Matilde, com duas cabeças, que simbolizaria a dualidade dessa união, na fase que Neruda tramitava sua separação com Delia del Carril. Conta-se que a casa deveria denominar-se de Medusa, no início, em alusão aos cabelos encaracolados de Matilde, como sugere o soneto acima, mas Pablo Neruda decidiu batizá-la definitivamente de La Chascona.

Retrato de Matilde - pintura de Diego Rivera. No lado direito,  o artista sugeriu o perfil de Neruda, formado pelos cabelos ondulados

Retrato de Matilde – pintura de Diego Rivera. No lado direito, o artista sugeriu o perfil de Neruda, oculto nos cabelos ondulados

Com muita emoção, visitei cada canto da casa e dos terrenos que a compõem. E notei que, de certa forma, houve uma coincidência com o texto postado anteriormente, no qual anunciei a viagem ao Chile. Na montagem da ilustração da Ode ao Vinho, coloquei cachos de uva à frente de uma das casas-museu. Em La Chascona, encontrei uma parreira com uvas ainda verdes, a formar um pequeno portal no início de uma das escadas, como a demonstrar que esse símbolo que povoou a poesia nerudiana renasce todos os anos para nos provar que o poeta ainda está por ali, à espera dos amigos que ele tanto gostava de receber.

Encontrei-me com Neruda por meio de suas uvas ainda verdes. Alusão ao menino perdido em Parral (Parreiral, em Português) e recuperado na construção das casas, como se fossem brinquedos? (Foto de Teresas Vargas Sierra)

Encontrei-me com Neruda por meio de suas uvas ainda verdes. Alusão ao menino perdido em Parral (Parreiral, em Português) e recuperado na construção das casas, como se fossem brinquedos? (Foto de Teresas Vargas Sierra)

Entretanto, o encantamento que o motivou a construir La Chascona, em Santiago, La Sebastiana, em Valparaíso, e Isla Negra, em El Quisco, como se fossem brinquedos de infância, como ele mesmo reconheceria, foi substituído, na casa santiaguina, por duas tragédias. A primeira, sua semidestruição, com janelas quebradas por vândalos e inundação de parte da construção, causada pelo desvio do canal que antes regava a propriedade. A segunda, em tempo coincidente, foi a morte do poeta, doze dias após do golpe de estado liderado pelo general Augusto Pinochet. Após saber da rebelião militar e da terrível morte imposta pelos militares a Victor Jara, Neruda, que se encontrava em Isla Negra, decidiu abandonar o Chile e ir para o México, onde tentaria organizar um governo de exílio. Mas sua saúde não estava em ordem e por isso a família resolveu fazer exames em um hospital de Santiago, adiando por um dia a viagem já programada, em um avião que lhe mandara o governo mexicano. No dia seguinte, 23 de setembro de 1973 veio a falecer, segundo os médicos por problemas cardíacos. Sua morte até hoje é discutida, pois seu assessor e motorista, que o acompanhou até o hospital, levantou dúvidas, levado muita gente a acreditar que Neruda teria sido envenenado. Recentemente seus restos mortais foram exumados e três laboratórios de diferentes países fizeram análises. Nada foi encontrado que corroborasse a tese de morte causada por terceiros. Somente sinais de medicamentos utilizados para o tratamento da enfermidade – um câncer de próstata – que assaltava Neruda, na época.

Velório de Neruda, foto do jornalista brasileiro Evandro Teixeira (Jornal do Brasil), que fez a cobertura de sua morte

Velório de Neruda, foto do jornalista brasileiro Evandro Teixeira (Jornal do Brasil), que fez a cobertura de sua morte

A história registrou a coragem de Matilde, que decidiu velar o corpo de Neruda, em companhia de alguns amigos, em La Chascona. Depois ela passou a recuperar o local, pacientemente, e ali viveu até sua morte, em 5 de janeiro de 1985. Ontem, portanto, completaram-se 29 anos de seu falecimento, após o que a casa foi transformada em museu, assim como as outras duas. Porém, Matilde tinha outra missão a cumprir: levar o corpo de Pablo Neruda para Isla Negra, conforme ele havia determinado, poeticamente:

Compañeros, enterradme en Isla Negra, / frente al mar que conozco, a cada área rugosa de piedras/ y de olas que mis ojos perdidos/ no volverán a ver…” (Companheiros, enterrai-me em Isla Negra, / frente ao mar que conheço, a cada área rugosa de pedras/ e de ondas que meus olhos perdidos/ não voltarão a ver…).

Não o conseguiu em vida, mas em dezembro de 1992 finalmente seu desejo foi cumprido e ele foi enterrado em sua casa predileta ao lado da amada Matilde, frente ao Oceano Pacífico, que “saía do mapa. Não havia onde colocá-lo. Era tão grande, desordenado e azul que não cabia em nenhuma parte. Por isso o deixaram em frente a minha janela”.

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Há um texto riquíssimo que conta, em detalhes, como foi velado o corpo do poeta, em La Chascona, escrito por uma amiga que tudo viu. Como é longo, deixo o endereço eletrônico para quem quiser conhece-lo. http://www.archivochile.com/Homenajes/neruda/sobre_neruda/homenajepneruda0031.pdf

Por que NERUDA?

Ele nasceu com um nome mais extenso: Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto. Mas seu pai devia ter outros planos para seu futuro e não admitiria um poeta como filho. Aos 17 anos, já tocado pelas musas da Poesia, ele criou o pseudônimo definitivo, com o qual ascenderia à glória da literatura mundial. Em sua casa santiaguina existe uma placa de mármore, colocada no ano de 2000, na qual se oferece uma versão sobre a escolha do sobrenome, que teria sido uma homenagem ao poeta tcheco Jan Neruda (1834-1891). Dizem que o poeta chileno jamais desmentiu e também nunca confirmou essa versão. Alguns até a consideram improvável, porque o jovem Ricardo Neftalí, quando decidiu adotar o nome literário, vivia em uma época em que seria quase impossível haver livros de Jan Neruda traduzidos.

Placa da versão tcheca sobre a adoção do nome Neruda. O poeta não confirmou, nem desmentiu

Placa da versão tcheca sobre a adoção do nome Neruda. O poeta não confirmou, nem desmentiu

A versão mais verossímil diz ter sido a leitura de um livro de Arthur Conan Doyle, Um estudo em vermelho, que lhe levou a conhecer uma violinista moraviana, incluída nas aventuras de Sherlock Holmes, cujo nome de casada era Wilma Norman-Neruda, nascida Wilhelmine Maria Franziska Neruda ou Guillermina Maria Francisca Neruda (1838-1911). No livro, o detetive inglês, também apaixonado por violino, informa que iria escutar um concerto da famosa violinista. Daí teria nascido a escolha do nome do poeta.

E o prêmio não foi para...

Publicaram os jornais de Santiago do último sábado (04.jan.14), 50 anos depois de o poeta Pablo Neruda ter sido indicado ao Prêmio Nobel de Literatura (galardão que conquistaria mais tarde, em 1971), que, naquele ano de 1963, ele teria sido preterido em razão de sua militância junto ao Partido Comunista. Segundo as notícias, papéis secretos do Nobel foram finalmente liberados, dando conta que Neruda, indicado ao prêmio com mais quatro escritores (o irlandês Samuel Beckett, o japonês Yukio Mishima, o dinamarquês Aksel Sandemose, o britânico-estadunidense W. H. Auden e o grego Giorgos Seferis), teve levantada contra ele a tese de que “a tendência comunista, cada vez mais dominante em sua poesia” não seria “consistente com o propósito do Prêmio Nobel”. Na análise conclusiva do Comitê do Nobel, quando o poeta chileno já figurava entre um trio finalista, foi escolhido o grego Giorgios Seferis. A notícia cita como fonte principal o presidente do Comitê do Nobel e secretário permanente da academia naquele ano, Anders Osterling.

A informação e sua justificativa, no entanto, não coincidem com o objetivo do prêmio criado pelo sueco Alfred Nobel, que é distinguir personalidades importantes em diversas áreas, independentemente de critérios como a nacionalidade, a raça, a religião e a ideologia. Se cometido o erro, oito anos depois ele foi corrigido, com a merecida entrega do Nobel de Literatura de 1971 a Neruda.

Indicado em 1963, Neruda receberia o Prêmio Nobel de Literatura 13 anos depois

Indicado em 1963, Neruda receberia o Prêmio Nobel de Literatura 13 anos depois

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Autorretrato

Pablo Neruda

Por mi parte,
soy o creo ser duro de nariz,
mínimo de ojos,
escaso de pelos en la cabeza,
creciente de abdomen,
largo de piernas,
ancho de suelas,
amarillo de tez,
generoso de amores,
imposible de cálculos,
confuso de palabras,
tierno de manos,
lento de andar,
inoxidable de corazón,
aficionado a las estrellas, mareas, maremotos,
administrador de escarabajos,
caminante de arenas,
torpe de instituciones,
chileno a perpetuidad,
amigo de mis amigos,
mudo de enemigos,
entrometido entre pájaros,
mal educado en casa,
tímido en los salones,
arrepentido sin objeto,
horrendo administrador,
navegante de boca,
yerbatero de la tinta,
discreto entre los animales,
afortunado de nubarrones,
investigador en mercados,
oscuro en las bibliotecas,
melancólico en las cordilleras,
incansable en los bosques,
lentisimo de contestaciones,
ocurrente años después,
vulgar durante todo el año,
resplandeciente con mi cuaderno,
monumental de apetito,
tigre para dormir,
sosegado en la alegría,
inspector del cielo nocturno,
trabajador invisible,
desordenado, persistente,
valiente por necesidad,
cobarde sin pecado,
soñoliento de vocación,
amable de mujeres,
activo por padecimiento,
poeta por maldición y tonto de capirote.

Poster exposto em um dos jardins de La Chascona (foto de C. de Assis)

Poster exposto em um dos jardins de La Chascona (foto de C. de Assis)

Autorretrato

De minha parte,
sou ou creio ser duro de nariz,
mínimo de olhos,
escasso de pelos na cabeça,
crescente de abdômen,
comprido de pernas,
largo de solas,
amarelo de tez,
generoso de amores,
impossível de cálculos,
confuso de palavras,
terno de mãos,
lento de andar,
inoxidável de coração,
aficionado às estrelas, marés, maremotos,
administrador de escaravelhos,
caminhante de areias,
torpe de instituições,
perpetuamente chileno,
amigo de meus amigos,
mudo de inimigos,
intrometido entre pássaros,
mal educado em casa,
tímido nos salões,
arrependido sem objeto,
horrendo administrador,
navegante de boca,
ervateiro da tinta,
discreto entre os animais,
afortunado nos nuvarrões,
investigador em mercados,
obscuro nas bibliotecas,
melancólico nas cordilheiras,
incansável nos bosques,
lentíssimo de contestações,
ocorrente anos depois,
vulgar durante todo o ano,
resplandecente com meu caderno,
monumental de apetite,
tigre para dormir,
sossegado na alegria,
inspetor do céu noturno,
trabalhador invisível,
desordenado, persistente,
valente por necessidade,
covarde sem pecado,
sonolento por vocação,
amável com mulheres,
ativo por padecimento,
poeta por maldição e bobo com chapéu de burro.

versão ao Português de Cleto de Assis