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Bem-vindo, Outono!

Chegou o Outono, exatamente no Dia Mundial da Felicidade

Há dois anos a Organização das Nações Unidas aprovou a instituição do Dia Mundial da Felicidade,após campanha feita pelo Butão, que utiliza um índice nacional de Felicidade Bruta.  Dia a resolução da ONU que a “busca pela felicidade é um objetivo humano fundamental” e sugere que se comemore “o Dia Internacional da Felicidade de forma apropriada, incluindo por meio de atividades educativas e de conscientização pública”.

Até que ponto esses conceitos conseguem apagar, ou, pelo menos diminuir, entre nós, as diferenças ideológicas, políticas ou religiosas? Não poderíamos criar relações sociais baseadas no cultivo da felicidade, buscada por meio de estruturas comunitárias mais humanas? Em 1972, o rei do Butão, Jigme Singye Wangchuck, respondeu a críticas sobre o desenvolvimento econômico de seu país, instituindo o índice FIB – Felicidade Interna Bruta, afastando-se dos conceitos tradicionais que somente medem o crescimento econômico. Determinou sete pilares para a efetivação desse índice:

  • Promoção do desenvolvimento Educacional para a Inclusão Social
  • Preservação e promoção dos Valores Culturais
  • Resiliência Ecológica na base do Desenvolvimento Sustentável
  • Estabelecimento da Boa Governança
  • Preservação dos Valores capazes de garantirem a Vitalidade Comunitária
  • Saúde na Garantia da Vida
  • Desenvolvimento Sustentável para a Inclusão e potencialização do Padrão de Vida

Educação, cultura, saúde, meio ambiente e desenvolvimento sustentável, representação governamental confiável, desenvolvimento comunitário, de modo a desaguarem na ampliação dos padrões de vida. Precisa-se de mais alguma coisa, senhoras e senhores?

Saudemos o Outono com Fernando Pessoa.

Outono2

Saudação ao Outono

Ruínas

Se é sempre Outono o rir das primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair…
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruínas crescer heras.
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino de Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais altos do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!… Deixa-os tombar… deixa-os tombar…

Florbela Espanca

Crepúsculo de Outono

O crepúsculo cai, manso como uma benção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito…
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale…o horizonte purpúreo…
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.

Manoel Bandeira

Canção de Outono

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando àqueles
que não se levantarão…

Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
– a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão…

Cecília Meireles

No Ciclo Eterno

No ciclo eterno das mudáveis coisas
Novo inverno após novo outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
Porém a mim nem me acha diferente
Nem diferente deixa-me, fechado
Na clausura maligna
Da índole indecisa.
Presa da pálida fatalidade
De não mudar-me, me infiel renovo
Aos propósitos mudos
Morituros e infindos.

Fernando Pessoa / Ricardo Reis

Poema de Outono

Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.

Pablo Neruda

Uma canção de Natal, por Alberto Caeiro

Nossa mensagem de Natal

Mais alguns dias e estaremos festejando, como todos os anos, o Natal cristão, hoje mais materialista do que nunca. Todo mundo disposto a torrar parte do décimo terceiro salário em comilanças e presentes e até de arriscar o acúmulo de dívidas para que nada falte durantes as comemorações natalinas. Claro que muitos continuarão olhando pelo lado de fora das vidraças, a esperar pelo Papai Noel dos Correios ou pelo gesto de solidariedade de qualquer pessoa.

Crentes ou não no espírito religioso do Natal, podemos todos concordar que a data, próxima ao final do ano, é por demais oportuna para comemorar o término de uma etapa de vida e carregar as pilhas da esperança no ano que se seguirá. Não deixa de ser apropriada para renovarmos a solidariedade com nossos próximos e até com os distantes ao nosso imediato convívio social. É o que chamamos de espírito natalino, que faz bem para a alma.

O Banco da Poesia, em seu primeiro Natal (nascemos em março deste ano) quer registrar os votos de um Bom Natal para seus colaboradores e leitores, bem como para todo o mundo, nesta época de globalização e de comunicação instantânea.

Mas não vamos utilizar as tradicionais mensagens, que se afastam da vida real e sonham só com coisas boas. Pois a realidade é feita de coisas boas e ruins. E há crianças que serão felizes, neste e nos próximos Natais, e há meninos e meninas que sofrerão frio, medo, sede e fome neste e em Natais vindouros. E se o Natal, simbolicamente, festeja o nascimento do Menino Jesus, um símbolo de pureza e felicidade para todas as crianças da Terra, por que não pensarmos em um menino Jesus mais humano, mais parecido com nossos filhos e com todas as crianças que brincam e se divertem a olhar a natureza e a vagar por ela sem sentir o peso de responsabilidades e censuras?

Historicamente, nada foi registrado sobre a infância de Jesus, desde que seus pais fugiram com ele de Belém, afastando-o das ordens sanguinárias de Herodes. Não sabemos se ele teve uma infância considerada, à época, normal; se frequentou escolas; se teve amigos e participou de jogos e brincadeiras de crianças. Sua vida pública só foi testemunhada, segundo os livros religiosos, a partir dos 30 anos de idade e, até aí, e principalmente em seus primeiros estágios de vida, só podemos contar com nossa imaginação para tentar recriar a história daquele menino.

Os três heterônimos, na imaginação de José de Almada-Negreiros. Caeiro está à esquerda.

Alberto Caeiro (Lisboa, 1889- 1915) imaginou o seu Menino Jesus. Bem diferente do que pintam os quadros religiosos clássicos. Admite que ele era filho de Deus, mas exprime sua discordância sobre os modos em que foi gerado. E imagina o seu menino como um amigo íntimo, com quem brinca, para quem conta histórias. Tão íntimo que se confunde com sua própria alma. Foi essa história, narrada no oitavo poema de O Guardador de Rebanhos, que escolhemos para comemorar o Natal do Banco da Poesia.

Alberto Caeiro nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, e educação quase nenhuma, só instrução primária, morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Morreu tuberculoso.

Este é o resumo biográfico que Fernando Pessoa faz de uma de suas criaturas. Quase inculto, ele usa uma linguagem simples e o vocabulário limitado de um poeta camponês. pouco ilustrado. Por ser contra a metafísica ( “Há metafísica bastante em não pensar em nada”) é o poeta do realismo sensorial, o sensacionista por excelência, cuja atitude contraria as cogitações do Simbolismo.

Segundo Teresa Rita Lopes e Fabiana Santos, Caeiro “afirma que ‘pensar é estar doente dos olhos’, e quer apenas sentir a natureza. Em perfeita consonância com sua busca de simplicidade, escreve versos livres (sem métrica regular) e brancos (sem rimas). Agnóstico, escreve um poema ousado sobre o menino Jesus. Destituído de santidade, Cristo é representado como criança normal: espontânea, levada, brincalhona e alegre. Nisso está a religiosidade de Caeiro”.

Ainda: “Há dois Caeiro, o poeta e o pensador, sendo o primeiro que em teoria se desdobra no segundo. Segundo a imagem que dá dele próprio, vive de impressões, sobretudo visuais, e goza em cada impressão o seu conteúdo original. Não admite a realidade dos números e não quer saber de passado nem de futuro, pois recordar, é atraiçoar a Natureza”.

“No Poema dum Guardador de Rebanho se declara pastor por metáfora. O andar constante e sem destino, absorvido pelo espetáculo da inesgotável variedade das coisas. Os seus pensamentos não passam de sensações. Limita-se a existir, com um sorriso de existir e não de nos falar.”

“Caeiro surge, pois, como lírico espontâneo, instintivo, inculto (não foi além da instrução primária), impessoal e forte, mas muitas vezes, a simplicidade quase infantil do estilo, pobre de vocabulário, consegue exprimir a infinita diversidade, as incontáveis metamorfoses do mundo.”
Mas não se pense que Fernando Pessoa assumiu tudo o que Caeiro escreveu. Ele mesmo diz ter escrito “com sobressalto e repugnância o poema oitavo do ‘Guardador de Rebanhos’, com sua blasfêmia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto. Na minha pessoa própria, e aparentemente real, como que vivo social e objetivamente, nem uso de blasfêmia, nem sou antiespiritualista. Alberto Caeiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira, quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, nem era mulher, nem, que se saiba, histero-epilético, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito porque elas são fictícias e não porque estão num drama.”

“Parece escusado explicar uma coisa de si tão simples e intuitivamente compreensível. Sucede, porém, que a estupidez humana é grande, e a bondade humana não é notável.”

Como se nota. FP já fazia, na abertura de Ficções do Interlúdio (que abrigaO Guardador de Rebanhos) um defesa prévia aos possíveis ataques e desentendimentos que seu poema sobre o menino Jesus humano poderia provocar, após sua publicação.

E também traz, como advogado, seu outro heterônimo Ricardo Reis, este mais acostumado à linguagem clássica, que procura justificar a poesia de Caeiro dentro de uma “coerência intelectual (mais ainda que sentimental, ou emotiva)” e até “desconcertante”. Prossegue Reis: “Tudo isto, porém, é verdadeiramente o espírito pagão. Aquela ordem e disciplina que o paganismo tinha, e o cristismo nos fez perder, aquela inteligência raciocinada das coisas, que era seu apanágio e não é nosso, está ali. Porque, se falta na forma aqui está na essência. E não é forma exterior do paganismo — repito — que Caeiro veio reconstruir; é a essência que chamou de Averno, como Orfeu a Eurídice, pela magia harmônica (melódica) da sua emoção”. Ricardo Reis revela que alguns dos poemas/canções de O Guardador de Rebanhos foram escritos com Caeiro enfermo; daí as diferenças entre alguns dos poemas incluídos no livro.

E volta Pessoa a dizer que, em tais poemas, como em outros de seus heterônimos, “não há que buscar … ideias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler”.

É como se ele estivesse a dizer: eu os criei, mas não fui eu quem falou…

De qualquer modo, o poema oitavo de O Guardador de Rebanhos é um dos belos escritos de Fernando Pessoa, a interpretar o menino que fugiu do céu por puro aborrecimento e veio à Terra buscar o carinho que lá lhe faltava, como filho só de mãe, com pai postiço e espiritualmente gerado por seres metafísicos e distantes dos sentimentos humanos.

Mal sabia FP que, pouco depois de sua passagem por este planeta, existiriam milhares, talvez milhões de meninos e meninas sem pai, a depender só das mães e das andanças nas ruas, onde aprendem a roubar mais do que frutas em pomares e talvez nunca cheguem a perceber aquela “verdade / que uma flor tem ao florescer / e que anda com a luz do sol / a variar os montes e os vales”.

Mas, blasfemo ou não, o poema de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro é enorme em beleza e ternura, sentimentos que combinam com o espírito de Natal.

Poema Oitavo de O Guardador de Rebanhos

Fernando Pessoa com poucos meses, no colo de sua mãe

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Tríndade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas…
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu,
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou~se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Fernando Pessoa, um ano de idade

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estraadas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

A primeira cadeira de Fernando Pessoa

A primeira cadeira de Fernando Pessoa

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternídade a fazer meIa.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada das coisas que criou —
“Se é que ele as criou, do que duvido” —
Ele diz, por exemplo, que “os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.”
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

…………………………………………………………………………………………..

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

Fernando Pessoa aos dois anos e meio

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro.
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Fernando Pessoa com cinco anos

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

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Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

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Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

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Ilustrações: de Fernando Pessoa – Uma Fotobiografia. Organizada por Maria José de Lencastre. Lisboa:Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1981

Dia de Gaia

Hoje (22/04) festejamos o Dia da Terra. E, pelo menos uma vez por ano, refletimos sobre nossas responsabilidades como inquilinos deste Planeta. A tradição cultural da humanidade parece, nos ter dado, tal qual James Bond, licença para matar. Se sociologicamente definimos cultura como tudo o que é aprendido e partilhado por membros de um determinado grupo, o que cria identidade ao grupo a que pertençam, filosoficamente a concebemos como o conjunto de ações humanas que contrastam com a natureza ou com o comportamento natural, isto é, tudo o que o ser humano faz para alterar a natureza e adaptá-la – material ou espiritualmente – às suas necessidades de sobrevivência. Esses conceitos podem ser interpretados de maneira a proteger somente a vida humana e menosprrezar noosa indispensável interação com a terra. Se entendêssemos, desde o princípio, que somos parte da natureza e não seus senhores, teríamos uma convivência mais harmônica com o meio ambiente e, por extensão, com nossos semelhantes.

Dois momentos de reflexão: um poema de Fernando Pessoa/Ricardo Reis e um trecho do livro de Robert Russel sobre nossa relação com o Planeta. C. de A.

folhasevento3

A

Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde,
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos, pois, com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes,
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?

A HUMANIDADE EM GAlA

Se a biosfera inteira evoluiu como um único sistema vivo, no qual todos os inúmeros subsistemas desempenham papéis diversificados, mas mutuamente dependentes, então a humanidade, sendo um subsistema desse sistema planetário maior, não pode ser dele apartada nem tratada isoladamente. Qual é, consequentemente, a função da humanidade em relação a Gaia?

gaia

Há comumente duas respostas contrárias a esta pergunta. A primeira afirma que a humanidade é como um vasto sistema nervoso – um cérebro global, em que cada um de nós seria uma célula nervosa individual. A segunda possibilidade, mais pessimista, é a de que nós, seres humanos, somos semelhantes a algum tipo de câncer planetário.

No que tange à primeira resposta, a sociedade humana, da mesma forma como o nosso cérebro, pode ser vista como um enorme sistema de coleta de dados, comunicação e memória. Nós, seres humanos, nos juntamos em aglomerados de cidades e metrópoles de maneira semelhante à aglomeração de células nervosas em gânglios num vasto sistema nervoso. Para unir os “gânglios” e cada uma das “células nervosas” existem vastas redes de informação.

Na sociedade, os sistemas mais lentos de transporte – como os serviços postais, em que itens específicos são enviados a diferentes partes do sistema – assemelham-se às redes relativamente lentas de comunicação química do corpo, e.g., o sistema hormonal. Por sua vez, as redes muito mais rápidas de telecomunicação eletrônica (telefones, rádios, computadores etc.) são como os bilhões de minúsculas fibras que unem as células nervosas no cérebro.

Num dado instante qualquer, há milhões de mensagens zunindo pela rede global, assim como no cérebro humano incontáveis mensagens estão continuamente indo e vindo em altíssima velocidade. Nossas bibliotecas e diversos outros arquivos de informação, poderiam ser vistos como parte da memória coletiva de Gaia. Através da linguagem e da ciência, nós conseguimos entender muito do que ocorre ao nosso redor, monitorando o comportamento do planeta como o cérebro monitora o do corpo. Poderíamos ver as culturas do Oriente e do Ocidente como os dois hemisférios do cérebro de Gaia – o esquerdo mais racional/intelectual e o direito mais intuitivo. E a nossa busca de conhecimento poderia ser o modo de Gaia saber mais sobre si mesma e sobre o universo em que vive.

Muitos dos paralelos acima tratam das funções mentais superiores – pensamento, conhecimento, percepção, consciência. Estas funções estão associadas ao córtex do cérebro humano, uma fina camada de células nervosas que envolvem o cérebro por fora, de modo que talvez fosse mais exato assemelhar a humanidade ao córtex do planeta.

Em termos evolucionários, o córtex é um acréscimo relativamente tardio, tendo se desenvolvido principalmente nos mamíferos. Ele não é necessário para manter a vida; o córtex de um animal pode ser extirpado e seu coração, pulmão, sistema digestivo e metabolismo prosseguirão intactos. De maneira semelhante, o planeta Terra sobreviveu perfeitamente bem sem a humanidade por mais de quatro bilhões de anos, e poderia continuar muito bem sem ela.

Isso nos traz à segunda possibilidade, a de que a humanidade talvez seja alguma forma de tumor maligno de erupção recente e que o planeta estaria melhor sem ela. Esta possibilidade ocorreu a Edgar Mitchell* ainda na lua. Imediatamente após o sentimento de identidade com o planeta como um todo, veio-lhe o sentimento oposto, “de que debaixo daquela atmosfera azul e branca havia o crescente caos que os habitantes da Terra vinham gerando entre si. A população e a tecnologia estavam rapidamente fugindo do controle dos homens. A tripulação da ‘espaçonave Terra’ parecia ter virtualmente se amotinado contra a ordem do Universo”.

A analogia com o câncer não pode ser ignorada. A civilização moderna parece estar carcomendo indiscriminadamente a superfície do planeta, consumindo em décadas recursos minerais que a própria Gaia herdou bilhões de anos atrás. Ao mesmo tempo, a humanidade ameaça destruir a estrutura biológica que levou milhares de anos para ser criada. Grandes florestas, essenciais para o ecossistema, parecem devoradas por traças; espécies animais estão sendo caçadas até a extinção; rios e lagos tornam-se amargosos, e grandes áreas do planeta vão sendo transformadas em deserto pela mineração e pelo concreto das cidades. De fato, uma fotografia aérea de qualquer grande metrópole com seus subúrbios espraiados lembra muito o modo como certos cânceres crescem no corpo humano. A civilização tecnológica realmente assemelha-se a um virulento tumor maligno que devora cegamente a sua própria hospedeira ancestral num ato egoísta de consumpção.

Essa é uma visão que parece opor-se à idéia de que a humanidade constitui algum tipo de cérebro global. Todavia, é inteiramente possível que ambas as concepções do papel da humanidade em Gaia sejam válidas. Talvez nós sejamos parte de algum sistema nervoso global que atualmente atra¬vessa uma fase extremamente rápida de desenvolvimento; talvez sejamos para o planeta tudo o que nossos cérebros são para nós. Entretanto, num estágio extremamente crítico, este sistema nervoso parece ter se descontrolado, ameaçando destruir o próprio corpo que sustenta a sua existência.

Se, portanto, pretendemos desempenhar nosso papel como uma parte do cérebro planetário, teremos de sustar o nosso comportamento deletério e reverter nossas tendências negativas. Para tal, é imperativo que modifiquemos, da maneira mais radical concebível, as nossas atitudes perante nós mesmos, perante os outros e o planeta como um todo.

Peter Russel**: O Despertar da Terra – o cérebro global. São Paulo: Cultrix, 2005
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Notas

* Edgar Mitchell – astronauta norte-americano, piloto do módulo lunar Antares, na missão Apollo 14 (1971), foi o sexto ser humano a pisar na Lua.
** Peter Russell (1946) é um autor britânico e produtor de filmes sobre estudos da consciência, espiritualidade e o futuro da humanidade. Na Universidade de Cambridge, estudou Matemática e Física Teórica. Mas, em seguida, tornou-se fascinado pelos mistérios da mente humana e mudou seu interesse científico para a Psicologia Experimental. Perseguindo esse objetivo, viajou à Índia para estudar meditação e filosofia oriental, e, no seu retorno, iniciou uma extensa pesquisa sobre Psicologia e Meditação. Seus principais livros: The TM Technique, The Upanishads, The Brain Book, The Global Brain Awakens: Our Next Evolutionary Leap, The Creative Manager: Finding Inner Vision and Wisdom in Uncertain Times, The Consciousness Revolution, Waking Up in Time: Finding Inner Peace In Times of Accelerating Change, e From Science to God: A Physicist’s Journey into the Mystery of Consciousness.