Dia de Gaia

Hoje (22/04) festejamos o Dia da Terra. E, pelo menos uma vez por ano, refletimos sobre nossas responsabilidades como inquilinos deste Planeta. A tradição cultural da humanidade parece, nos ter dado, tal qual James Bond, licença para matar. Se sociologicamente definimos cultura como tudo o que é aprendido e partilhado por membros de um determinado grupo, o que cria identidade ao grupo a que pertençam, filosoficamente a concebemos como o conjunto de ações humanas que contrastam com a natureza ou com o comportamento natural, isto é, tudo o que o ser humano faz para alterar a natureza e adaptá-la – material ou espiritualmente – às suas necessidades de sobrevivência. Esses conceitos podem ser interpretados de maneira a proteger somente a vida humana e menosprrezar noosa indispensável interação com a terra. Se entendêssemos, desde o princípio, que somos parte da natureza e não seus senhores, teríamos uma convivência mais harmônica com o meio ambiente e, por extensão, com nossos semelhantes.

Dois momentos de reflexão: um poema de Fernando Pessoa/Ricardo Reis e um trecho do livro de Robert Russel sobre nossa relação com o Planeta. C. de A.

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A

Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde,
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos, pois, com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes,
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?

A HUMANIDADE EM GAlA

Se a biosfera inteira evoluiu como um único sistema vivo, no qual todos os inúmeros subsistemas desempenham papéis diversificados, mas mutuamente dependentes, então a humanidade, sendo um subsistema desse sistema planetário maior, não pode ser dele apartada nem tratada isoladamente. Qual é, consequentemente, a função da humanidade em relação a Gaia?

gaia

Há comumente duas respostas contrárias a esta pergunta. A primeira afirma que a humanidade é como um vasto sistema nervoso – um cérebro global, em que cada um de nós seria uma célula nervosa individual. A segunda possibilidade, mais pessimista, é a de que nós, seres humanos, somos semelhantes a algum tipo de câncer planetário.

No que tange à primeira resposta, a sociedade humana, da mesma forma como o nosso cérebro, pode ser vista como um enorme sistema de coleta de dados, comunicação e memória. Nós, seres humanos, nos juntamos em aglomerados de cidades e metrópoles de maneira semelhante à aglomeração de células nervosas em gânglios num vasto sistema nervoso. Para unir os “gânglios” e cada uma das “células nervosas” existem vastas redes de informação.

Na sociedade, os sistemas mais lentos de transporte – como os serviços postais, em que itens específicos são enviados a diferentes partes do sistema – assemelham-se às redes relativamente lentas de comunicação química do corpo, e.g., o sistema hormonal. Por sua vez, as redes muito mais rápidas de telecomunicação eletrônica (telefones, rádios, computadores etc.) são como os bilhões de minúsculas fibras que unem as células nervosas no cérebro.

Num dado instante qualquer, há milhões de mensagens zunindo pela rede global, assim como no cérebro humano incontáveis mensagens estão continuamente indo e vindo em altíssima velocidade. Nossas bibliotecas e diversos outros arquivos de informação, poderiam ser vistos como parte da memória coletiva de Gaia. Através da linguagem e da ciência, nós conseguimos entender muito do que ocorre ao nosso redor, monitorando o comportamento do planeta como o cérebro monitora o do corpo. Poderíamos ver as culturas do Oriente e do Ocidente como os dois hemisférios do cérebro de Gaia – o esquerdo mais racional/intelectual e o direito mais intuitivo. E a nossa busca de conhecimento poderia ser o modo de Gaia saber mais sobre si mesma e sobre o universo em que vive.

Muitos dos paralelos acima tratam das funções mentais superiores – pensamento, conhecimento, percepção, consciência. Estas funções estão associadas ao córtex do cérebro humano, uma fina camada de células nervosas que envolvem o cérebro por fora, de modo que talvez fosse mais exato assemelhar a humanidade ao córtex do planeta.

Em termos evolucionários, o córtex é um acréscimo relativamente tardio, tendo se desenvolvido principalmente nos mamíferos. Ele não é necessário para manter a vida; o córtex de um animal pode ser extirpado e seu coração, pulmão, sistema digestivo e metabolismo prosseguirão intactos. De maneira semelhante, o planeta Terra sobreviveu perfeitamente bem sem a humanidade por mais de quatro bilhões de anos, e poderia continuar muito bem sem ela.

Isso nos traz à segunda possibilidade, a de que a humanidade talvez seja alguma forma de tumor maligno de erupção recente e que o planeta estaria melhor sem ela. Esta possibilidade ocorreu a Edgar Mitchell* ainda na lua. Imediatamente após o sentimento de identidade com o planeta como um todo, veio-lhe o sentimento oposto, “de que debaixo daquela atmosfera azul e branca havia o crescente caos que os habitantes da Terra vinham gerando entre si. A população e a tecnologia estavam rapidamente fugindo do controle dos homens. A tripulação da ‘espaçonave Terra’ parecia ter virtualmente se amotinado contra a ordem do Universo”.

A analogia com o câncer não pode ser ignorada. A civilização moderna parece estar carcomendo indiscriminadamente a superfície do planeta, consumindo em décadas recursos minerais que a própria Gaia herdou bilhões de anos atrás. Ao mesmo tempo, a humanidade ameaça destruir a estrutura biológica que levou milhares de anos para ser criada. Grandes florestas, essenciais para o ecossistema, parecem devoradas por traças; espécies animais estão sendo caçadas até a extinção; rios e lagos tornam-se amargosos, e grandes áreas do planeta vão sendo transformadas em deserto pela mineração e pelo concreto das cidades. De fato, uma fotografia aérea de qualquer grande metrópole com seus subúrbios espraiados lembra muito o modo como certos cânceres crescem no corpo humano. A civilização tecnológica realmente assemelha-se a um virulento tumor maligno que devora cegamente a sua própria hospedeira ancestral num ato egoísta de consumpção.

Essa é uma visão que parece opor-se à idéia de que a humanidade constitui algum tipo de cérebro global. Todavia, é inteiramente possível que ambas as concepções do papel da humanidade em Gaia sejam válidas. Talvez nós sejamos parte de algum sistema nervoso global que atualmente atra¬vessa uma fase extremamente rápida de desenvolvimento; talvez sejamos para o planeta tudo o que nossos cérebros são para nós. Entretanto, num estágio extremamente crítico, este sistema nervoso parece ter se descontrolado, ameaçando destruir o próprio corpo que sustenta a sua existência.

Se, portanto, pretendemos desempenhar nosso papel como uma parte do cérebro planetário, teremos de sustar o nosso comportamento deletério e reverter nossas tendências negativas. Para tal, é imperativo que modifiquemos, da maneira mais radical concebível, as nossas atitudes perante nós mesmos, perante os outros e o planeta como um todo.

Peter Russel**: O Despertar da Terra – o cérebro global. São Paulo: Cultrix, 2005
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Notas

* Edgar Mitchell – astronauta norte-americano, piloto do módulo lunar Antares, na missão Apollo 14 (1971), foi o sexto ser humano a pisar na Lua.
** Peter Russell (1946) é um autor britânico e produtor de filmes sobre estudos da consciência, espiritualidade e o futuro da humanidade. Na Universidade de Cambridge, estudou Matemática e Física Teórica. Mas, em seguida, tornou-se fascinado pelos mistérios da mente humana e mudou seu interesse científico para a Psicologia Experimental. Perseguindo esse objetivo, viajou à Índia para estudar meditação e filosofia oriental, e, no seu retorno, iniciou uma extensa pesquisa sobre Psicologia e Meditação. Seus principais livros: The TM Technique, The Upanishads, The Brain Book, The Global Brain Awakens: Our Next Evolutionary Leap, The Creative Manager: Finding Inner Vision and Wisdom in Uncertain Times, The Consciousness Revolution, Waking Up in Time: Finding Inner Peace In Times of Accelerating Change, e From Science to God: A Physicist’s Journey into the Mystery of Consciousness.

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