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LA SEBASTIANA, A CASA DE VALPARAÍSO

Comecemos com um poema de Pablo Neruda.

A ”LA SEBASTIANA”

Yo construí la casa.

La hice primero de aire.
Luego subí en el aire la bandera
y la dejé colgada
del firmamento, de la estrella, de
la claridad y de la oscuridad.

Cemento, hierro, vidrio,
eran la fábula,
valían más que el trigo y como el oro,
había que buscar y que vender,
y así llegó un camión:
bajaron sacos
y más sacos,
la torre se agarró a la tierra dura
— pero, no basta, dijo el constructor,
falta cemento, vidrio, fierro, puertas —,
y no dormí en la noche.

Pero crecía,
crecían las ventanas
y con poco,
con pegarle al papel y trabajar
y arremeterle con rodilla y hombro
iba a crecer hasta llegar a ser,
hasta poder mirar por la ventana,
y parecía que con tanto saco
pudiera tener techo y subiría
y se agarrara, al fin, de la bandera
que aún colgaba del cielo sus colores.

Me dediqué a las puertas más baratas,
a las que habían muerto
y habían sido echadas de sus casas,
puertas sin muro, rotas,
amontonadas en demoliciones,
puertas ya sin memoria,
sin recuerdo de llave,
y yo dije: “Venid
a mí, puertas perdidas:
os daré casa y muro
y mano que golpea,
oscilaréis de nuevo abriendo el alma,
custodiaréis el sueño de Matilde
con vuestras alas que volaron tanto.”

Entonces la  pintura
llegó también lamiendo las paredes,
las vistió de celeste y de rosado
para que se pusieran a bailar.
Así la torre baila,
cantan las escaleras y las puertas,
sube la casa hasta tocar el mástil,
pero falta dinero:
faltan clavos,
faltan aldabas, cerraduras, mármol.
Sin embargo, la casa
sigue subiendo
y algo pasa, un latido
circula en sus arterias:
es tal vez un serrucho que navega
como un pez en el agua de los sueños
o un martillo que pica
como alevoso cóndor carpintero
las tablas del pinar que pisaremos.

Algo pasa y la vida continúa.

La casa crece y habla,
se sostiene en sus pies,
tiene ropa colgada en un andamio,
y como por el mar la primavera
nadando como náyade marina
besa la arena de Valparaíso,
ya no pensemos más: ésta es la casa:
ya todo lo que falta será azul,
lo que ya necesita es florecer.

Y eso es trabajo de la primavera.

La Sebastiana_1

A ”LA SEBASTIANA”

Eu construí a casa.

A fiz primeiro de ar.
Logo subi no ar a bandeira
e a deixei pendurada
do firmamento, da estrela,
da claridade e da obscuridade.

Cimento, ferro, vidro,
eram uma fábula,
valiam mais que o trigo e como o ouro,
havia que buscar e que vender,
e assim chegou um caminhão:
baixaram sacos
e mais sacos,

a torre se agarrou à terra dura
— mas não basta, disse o construtor,
falta cimento, vidro, ferro, portas —,
e não dormi naquela noite.

Porém crescia,
cresciam as janelas
e com pouco,
com colar-lhe ao papel e trabalhar
e arremessá-la com roldana e ombro
iria crescer até chegar a ser,
até poder olhar pela janela,
e parecia que com tanto saco
pudesse ter teto e subiria
e se agarraria, por fim, à bandeira
que ainda pendurava do céus as suas cores.

Dediquei-me às portas mais baratas,
às que tinham morrido
e haviam sido retiradas de suas casas,
portas sem muro, rotas,
amontoadas em demolições,
portas já sem memória,
sem lembrança de chave,
e eu disse: “Vinde
a mim, portas perdidas:
vos darei casa e parede
e mão que bate,
oscilareis de novo abrindo a alma,
custodiareis o sono de Matilde
com vossas asas que voaram tanto.”

Então a  pintura
chegou também lambendo as paredes,
as vestiu de celeste e de rosado
para que se pusessem a dançar.
Assim a torre baila,
cantam as escadas e as portas,
sobe a casa até tocar o mastro,
mas falta dinheiro:
faltam pregos,
faltam aldravas, fechaduras, mármore.
No entanto, a casa
segue subindo
e algo se passa, um pulsar
circula em suas artérias:
é talvez um serrote que navega
como um peixe na água dos sonhos
ou um martelo que pica
como aleivoso condor carpinteiro
as tábuas do pinhal que pisaremos.

Algo se passa e a vida continua.

A casa cresce e fala,
se sustenta em seus pés,
tem roupa pendurada em um andaime,
e como pelo mar a primavera
nadando como náiade marinha
beija a areia de Valparaíso,
Já não pensemos mais: esta é a casa:
já tudo o que falta será azul,
o que já necessita é florescer.

E isso é trabalho da primavera.

Logo à entrada, deparei-me com um pinheiro, parecido com a nossa araucária, da mesma família mas de outra espécie. É uma araucaria araucana, que nasce na Argentina e no Chile, na região andina. O nosso pinheiro é da espécie araucaria angustifolia.

Logo à entrada, deparei-me com um pinheiro, parecido com a nossa araucária, da mesma família mas de outra espécie. É uma araucaria araucana, que nasce na Argentina e no Chile, na região andina. O nosso pinheiro é da espécie araucaria angustifolia.

A casa de Neruda em Valparaíso passou a fazer parte de sua vida a partir de 1959, quando pediu a duas amigas que procurassem um lugar para ele morar naquela cidade litorânea, pois se sentia cansado de Santiago. “Quero achar em Valparaíso uma casinha para viver e escrever tranquilo. Tem que possuir algumas condições. Não pode ser muito acima nem muito abaixo. Deve ser solitária, mas não em excesso. Vizinhos, oxalá invisíveis. Não devem ver-se nem escutar-se. Original, mas não incômoda. Muito alada, porém firme. Nem muito grande, nem muito pequena. Longe de tudo, mas perto da mobilidade. Independente, mas com comércio perto. Além disso, tem que ser muito barata. Acreditas que posso encontrar uma casa assim em Santiago?”

Suas amigas tiveram alguma dificuldade para encontrar a casa certa, mas apareceu uma construção inacabada, iniciada por certo Sebastián Collado, espanhol de nascimento, situada numa ladeira do bairro Florida. Seu antigo proprietário tinha morrido em 1949 e a casa ficou abandonada por muito tempo.

Apesar de achar a casa muito grande, Neruda foi atraída por sua forma incomum. Propôs dividir a propriedade com uma das amigas que a havia encontrado – a escultora Marie Martner – e seu marido Francisco Velasco. O poeta ficaria com os andares terceiro e quarto mais a torre, com uma vista privilegiada para a baía de Valparaíso. As reformas e adaptações demoraram cerca de três anos. Neruda decorou a casa com fotos antigas do porto e um grande retrato de Walt Whitman. Um dos pedreiros contratados para a reforma perguntou se o velho barbudo da foto era o pai de Neruda, ao que ele respondeu: “Sim, na poesia”.

A mesa de trabalho do poeta,em La Sebastiana

A mesa de trabalho do poeta,em La Sebastiana

A casa de Valparaíso, como as demais, foi decorada como um verdadeiro museu e recebeu parte das coleções que o poeta recolheu durante sua vida. Ela contém mapas antigos, pinturas, garrafas coloridas recolhidas em várias partes do mundo. Como em todas as casas, cantinho reservado para o bar, sempre com ar de bar de navio, com pouco espaço atrás do balcão, lugar reservadíssimo para o proprietário.

O bar de La Sebastiana

O bar de La Sebastiana

O decreto pelo qual La sebastiana foi declarada Monumento Nacional, descreve que “o exterior da casa se caracteriza por possuir uma variedade de formas, cores e alturas, desenhos originados em ideias que Pablo Neruda teve para suas diversas partes, incorporando à vivenda elementos como janelas, escadas, claraboias, corrimãos, portas e quinquilharias, que foram outorgando qualidades únicas a cada espaço”.

Desta pequena janela, acima de sua mesa de trabalho, Neruda admirava o por de sol. Na parede, uma parte de sue poema Aves do Caribe.

Desta pequena janela, acima de sua mesa de trabalho, Neruda admirava o por de sol. Na parede, um fragmento de seu poema Aves do Caribe.

Las aves del Caribe

 En esta breve ráfaga sin hombres
a celebrar los pájaros convido,
el vencejo, veloz vela del viento,
la deslumbrante luz del tucusito,
el limpiacasa que bifurca el cielo,
para el garrapatero más sombrío
hasta que la sustancia del crepúsculo
teje el color del aguaitacaminos.
Oh, aves, piedras preciosas del Caribe,
quetzal, rayo nupcial del Paraíso,
pedrerías del aire en el follaje,
pájaros del relámpago amarillo
amasados con gotas de turquesa
y fuegos de desnudos cataclismos:
venid a mi pequeño canto humano,
turpial del agua, perdigón sencillo,
paraulatas de estilo milagroso,
chocorocay en tierra establecido,
mínimos saltarines de oro y aire,
tintora ultravioleta y cola de hilo,
gallo de rocas, pájaro paraguas,
compañeros, misteriosos amigos,
¿cómo la pluma superó a la flor?

Pájaro paraguas / pássaro guarda-chuvas

Pájaro paraguas / pássaro guarda-chuvas

Máscara de oro, carpintero invicto,
qué puedo hacer para cantar en medio
de Venezuela, junto a vuestros nidos,
fulgores del semáforo celeste,
martines pescadores del rocío,
si del Extremo Sur la voz opaca
tengo, y la voz de un corazón sombrío,
y no soy en la arena del Caribe
sino una piedra que llegó del frío?
¿Qué voy a hacer para cantar el canto,
el plumaje, la luz, el poderío
de lo que vi volando sin creerlo
o escuché sin creer haberlo oído?
Porque las garzas rojas me cruzaron:
iban volando como un rojo río
y contra el resplandor venezolano
del sol azul ardiendo en el zafiro
surgió como un eclipse la hermosura:
volaron estas aves desde el rito.
Si no viste el carmín del corocoro
volar en un enjambre suspendido
cuando corta la luz como guadaña
y todo el cielo vuela sacudido
y pasan los plumajes escarlata
y dejan un relámpago encendido,
si tú no viste el aire del Caribe
manando sangre sin que fuera herido,
no sabes la belleza de este mundo,
desconoces el mundo en que has vivido.
Y por eso es que cuento y es que canto
y por todos los hombres veo y vivo:
es mi deber contar lo que no sabes
y lo que sabes cantaré contigo:
tus ojos acompañan mis palabras
y se abren mis palabras en el trigo
y vuelan con las alas del Caribe
o se pelean con tus enemigos.
Tengo tantos deberes, compañero,
que me voy a otro tema y me despido.

Tucusito / colibri

Tucusito / colibri

As aves do Caribe

Nesta breve lufada sem homens
a celebrar os pássaros convido,
o andorinhão, veloz vela do vento,
a deslumbrante luz do colibri,
o rabo-branco-cinza-claro que bifurca o céu,
para o anú-preto mais sombrio
até que a substância do crepúsculo
tece a cor do bacurau.
Oh, aves, pedras preciosas do Caribe,
quetzal, raio nupcial do Paraíso,
pedrarias do ar na folhagem,
pássaros do relâmpago amarelo
amalgamados com gotas de turquesa
e fogos de desnudos cataclismos:
venham a meu pequeno canto humano,
turpial da água, simples perdigão,
caraxuê de estilo milagroso,
corruíra em terra estabelecida,
mínimos corrupiões de ouro e ar,
tintureiro ultravioleta e rabo de fio,
galo da rocha, pássaro guarda-chuva,
companheiros, misteriosos amigos,
como a pluma superou a flor?
Máscara de ouro, pica-pau invicto,
que posso fazer para cantar em meio
da Venezuela, junto a vossos ninhos,
fulgores do semáforo celeste,
martins-pescadores do sereno,
se do Extremo Sul a voz opaca
tenho, e a voz de um coração sombrio,
e não sou na areia do Caribe
senão uma pedra que chegou do frio?
Que vou fazer para cantar o canto,
a plumagem, a luz, o poderio
do que vi voando sem acreditar
ou escutei sem crer haver-lhe ouvido?
Porque as garças vermelhas me cruzaram:
iam voando como um rubro rio
e contra o resplendor venezuelano
do sol azul ardendo na safira
surgiu como um eclipse a formosura:
voaram estas aves desde o rito.

Corocoro / guará

Corocoro / guará

Se não viste o carmim do guará
voar em um enxame suspenso
quando corta a luz como uma foice
e todo o céu voa sacudido
e passam as plumagens escarlate
e deixam um relâmpago aceso,
se tu não viste o ar do Caribe
brotando sangue sem ter sido ferido,
não sabes a beleza deste mundo,
desconheces o mundo em que tens vivido.
E por isso é que conto e é que canto
e por todos os homens vejo e vivo:
é meu dever contar o que não sabes
e o que sabes cantarei contigo:
teus olhos acompanham minhas palavras
e se abrem minhas palavras no trigo
e voam com as asas do Caribe
ou lutam com teus inimigos.
Tenho tantos deveres, companheiro,
que passo a outro tema e me despeço.

Sala de estar do terceiro andar de La Sebastiana. A vaca de porcelana no centro da mesa era usada por Neruda para servir ponches a seus convidados.

Sala de estar do terceiro andar de La Sebastiana. A vaca de porcelana no centro da mesa era usada por Neruda para servir ponches a seus convidados.

Após o golpe de Pinochet, em 1973, La Sebastiana foi saqueada e restaurada somente em 1991. Na ocasião, foi comprada a parte dos amigos de Neruda que eram seus sócios na propriedade, o que possibilitou uma total restauração e ampliação do espaço, com criação de uma praça e de um centro cultural.

Despeço-me de Neruda, em sua praça de La Sebastiana, já a fazer planos para a visita a Isla Negra.

Despeço-me de Neruda, em sua praça de La Sebastiana, já a fazer planos para a visita a Isla Negra.

O poeta e a Guerra Civil Espanhola

Neruda, capitão de terra, mar e guerra

winnipeg_neruda Conhecer um poeta não é somente ler e gostar de seus poemas. Comprovei esta verdade nas visitas que fiz às casas-museus de Pablo Neruda, em Santiago do Chile, Valparaíso e El Quisco, onde estão La Chacona, La Sabastiana e Isla Negra. As três residências do maior poeta chileno estão repletas de recordações. Talvez a falta de brinquedos em sua infância foi a principal razão de transformá-lo, já adulto, em um compulsivo colecionador de antiguidades. Talvez sua paixão pelo mar, marinheiro de terra firme autoconsiderado, o levou a recolher partes dos oceanos, nas conchas, âncoras, móveis, carrancas e objetos de barcos. Comecei a perguntar: e quando esse senhor arranjava tempo para escrever? Mas se descobre, também, que ele era um escritor quase compulsivo. Em cada casa ele construiu seus santuários de escrevinhador, dois no caso de Isla Negra. Escreveu até mesmo em seus últimos tempos, quando a enfermidade que o atacou obrigava-o a ficar em repouso, ditando textos a Matilde e seu secretário. Fiz mais perguntas. Além de seu declarado favoritismo às políticas de esquerda, quais as atividades sociais a que se dedicava para traduzir em obras o que declarara em poesia: “La solidaridad es la ternura de los pueblos”? Suas casas foram construídas como refúgios, onde entravam apenas os escolhidos. Em Valparaíso, um dos critérios que estabeleceu até encontrar La Sebastiana era o da discrição – “deve ser solitária, mas não em excesso. Vizinhos, oxalá invisíveis. Não deve ver-se nem escutar-se. Original, mas não muito incômoda. Muito alada mas firme. Nem muito grande nem muito pequena. Longe de tudo, mas perto da mobilização”. Isso daria a impressão que ele, tímido também confesso, se afastava do convívio social. Sabe-se, hoje, que Neruda, enquanto ocupou cargos na diplomacia de seu país, deu relevo ao trabalho das mulheres bordadeiras de El Quisco, levando-as a expor no Museu de Belas Artes de Santiago e nas embaixadas europeias onde prestou serviços. Mas sua grande obra social, engatilhada pela ira poética que o dominou durante a Guerra Civil Espanhola, foi a proteção oferecida a mais de duas mil pessoas que fugiram da Espanha quando os republicanos perderam o controle do país para Franco. Naquela época, em 1939, mais de 500 mil espanhóis fugiram para a França, mas ali não encontraram ambiente ameno, pois os franceses também viviam seus problemas e temiam que a intensa migração lhes aumentasse as preocupação sociais. Trataram de instalar os espanhóis em campos de refugiados que, na realidade, não seriam muito diferentes dos campos de concentração mantidos pelos alemães na Segunda Guerra Mundial. As noticias da derrota dos republicanos e as condições deploráveis em que viviam na França chegaram ao conhecimento de Pablo Neruda, que se encontrava no Chile, após ter dirigido a campanha eleitoral de Pedro Aguirre Cerda, eleito para o próximo período presidencial. O poeta, que tinha sido cônsul em Barcelona e Madri e que cultivava uma intensa paixão pela Espanha, procurou o novo presidente da nação e narrou o drama dos espanhóis. O Chile acabara de passar também por um momento terrível, causado pelo terremoto de Chillán, onde pereceram mais de 30 mil pessoas. Necessitava-se, portanto, de mão de obra e uma possível migração dos refugiados poderia ser solução social para ambas as partes. Aguirre imediatamente nomeou Neruda como Cônsul Especial, encarregado da missão de levar os espanhóis para o Chile, especialmente os que tinham habilidades profissionais das quais o país necessitava. Pablo Neruda seguiu imediatamente para Paris, onde tratou de organizar, com apoio dos representantes diplomáticos chilenos e do Serviço de Evacuação de Refugiados Espanhóis do governo francês, toda a logística para o transporte até o Chile. Foi comprado, então, um velho barco chamado Winnipeg, um velho cargueiro da Companhia Francesa de Navegação que havia servido para transportar tropas na Primeira Guerra Mundial. O barco foi adequado para receber mais de duas mil pessoas e em seus porões foram instaladas liteiras para acomodar os passageiros, além dos refeitórios e outras instalações que lhes proporcionassem um mínimo de conforto para a longa travessia. Atividades foram programadas para aproveitar os quase trinta dias de viagem, principalmente aulas para as crianças, nas quais foram transmitidas informações sobre o novo país onde viveriam. Feita a seleção dos migrantes, eles foram reunidos no porto fluvial de Trompeloup, perto de Bordéus. Muitas famílias ali se reencontraram, após anos de separação. Neruda e sua então esposa, Delia del Carril, se encarregaram pessoalmente de receber e inscrever os passageiros. No dial 4 de agosto de 1939 o Winnipeg zarpou rumo a Valparaíso, com 2.365 passageiros a bordo. Um mês mais tarde, ou mais exatamente, em 2 de setembro, atracou no porto chileno. Como chegou à noite, somente na manhã seguinte os passageiros puderam desembarcar. Imagina-se com que emoção e ansiedade passaram todos aquela noite, enxergando as luzes da baía de Valparaíso.

1.Combate na frente de Aragón. A Guerra Civil espanhola ocorreu entre 18 de julho de 1936 e 1º de abril de 1939 e enfrentou o governo da República Espanhola com grupos militares e de direita que terminam liderados pelo general Francisco Franco.

1. Combate na frente de Aragón. A Guerra Civil espanhola ocorreu entre 18 de julho de 1936 e 1º de abril de 1939 e enfrentou o governo da República Espanhola com grupos militares e de direita que terminam liderados pelo general Francisco Franco.

2.Soldados franquistas escoltam um grupo de soldados republicanos. O fim da contenda marcou o inicio da repressão franquista. Cerca de 500 mil refugiados cruzaram a fronteira entre a França e a Espanha no inverno de 1939.

2. Soldados franquistas escoltam um grupo de soldados republicanos. O fim da contenda marcou o inicio da repressão franquista. Cerca de 500 mil refugiados cruzaram a fronteira entre a França e a Espanha no inverno de 1939.

3.Pablo Neruda no Chile. A situação dos exiliados preocupou desde o início o poeta chileno, que se converteria em Cônsul Especial para a Emigração Espanhola e que já havia sido cônsul em Barcelona e Madrí. (Foto: Fundação Pablo Neruda).

3. Pablo Neruda no Chile. A situação dos exiliados preocupou desde o início o poeta chileno, que se converteria em Cônsul Especial para a Emigração Espanhola e que já havia sido cônsul em Barcelona e Madrí. (Foto: Fundação Pablo Neruda).

4.Imagem do presidente do Chile naquele momento, Pedro Aguirre Cerda, na coberta do Winnipeg. O velho cargueiro francês foi o barco contratado por Pablo Neruda para transportar 2.365 exilados espanhóis ao Chile. O barco foi adaptado para abrigá-los. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

4. Imagem do presidente do Chile naquele momento, Pedro Aguirre Cerda, na coberta do Winnipeg. O velho cargueiro francês foi o barco contratado por Pablo Neruda para transportar 2.365 exilados espanhóis ao Chile. O barco foi adaptado para abrigá-los. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

5.Um grupo de crianças na coberta do Winnipeg. A travessia desde o porto de Trompeloup, cerca de Bordeaux (França) até Valparaíso durou um mês. Durante esse tempo foram organizadas aulas para as crianças que viajavam no barco. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

5. Um grupo de crianças na coberta do Winnipeg. A travessia desde o porto de Trompeloup, cerca de Bordeaux (França) até Valparaíso durou um mês. Durante esse tempo foram organizadas aulas para as crianças que viajavam no barco. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

6.Vários homens desembarcam do Winnipeg em Valparaíso, Chile. No dia 3 de setembro de 1939 o barco chega às costas do território chileno. Todos os passageiros viajaram com um único passaporte coletivo. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

6. Vários homens desembarcam do Winnipeg em Valparaíso, Chile. No dia 3 de setembro de 1939 o barco chega às costas do território chileno. Todos os passageiros viajaram com um único passaporte coletivo. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

7.Grupo de mulheres que viajaram no Winnipeg. Naquele momento, Chile necessitava de mão de obra e a maioria dos passageiros do Winnipeg, por pedido expresso do presidente Aguirre Cerda, eram trabalhadores especializados, não intelectuais. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

7. Grupo de mulheres que viajaram no Winnipeg. Naquele momento, Chile necessitava de mão de obra e a maioria dos passageiros do Winnipeg, por pedido expresso do presidente Aguirre Cerda, eram trabalhadores especializados, não intelectuais. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

8.Um homem alimenta uma criança recém desembarcada. Muitos dos passageiros eram crianças. A maioria delas começou uma vida nova no Chile e nunca voltaram a viver na Espanha. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).
8. Um homem alimenta uma criança recém desembarcada. Muitos dos passageiros eram crianças. A maioria delas começou uma vida nova no Chile e nunca voltaram a viver na Espanha. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile). Imagens extraídas de BBC Mundo – La aventura del Winnipeg en imágenes 

Na manhã de 3 de setembro de 1939 os refugiados espanhóis do barco de Na manhã de 3 de setembro de 1939 os refugiados espanhóis do barco de Neruda desembarcaram no Chile. Mais tarde, um deles recordava: “As pessoas nos atiravam rosas e nos davam as boas-vindas. Nós imaginávamos que aquilo era impossível. Na estação de Santiago se calcula que havia 70 mil pessoas à nossa espera. Isso é algo que jamais a gente esquece”.. Cartaz_winnipegSetenta anos mais tarde, em 2009, os refugiados remanescentes e descendentes dos que viajaram no  Winnipeg fizeram várias homenagens ao poeta que os resgatou da miséria em que viviam, às portas da Segunda Guerra Mundial, que mais tristezas causaria à Europa. Foi feita uma cerimônia no Palácio de La Moneda e alguns refugiados ainda vivos foram a Isla Negra para depositar terra espanhola no túmulo de Neruda e Matilde. Dessa época final da Guerra Civil Espanhola, Neruda também fez, como Picasso com o mural “Guernica”, a sua epopéia poética, denominada “España em el Corazón”. São 23 poemas, escritos depois que Neruda deixou a Espanha, mas editados em circunstâncias insólitas na frente de batalha, como contamos adiante. (Cleto de Assis)

Descobri, por acaso, em uma estação de metrô de Santiago, um busto de Neruda, ali colocada em homenagem ao seu esforço para transportar os refugiados espanhóis.

Descobri, por acaso, em uma estação de metrô de Santiago, um busto de Neruda, ali colocado em homenagem a seu esforço para transportar os refugiados espanhóis.

Do livro, o Banco da Poesia extraiu dois poemas – Explico algunas cosas e Generales traidores.

Explico algunas cosas 

Preguntaréis: Y dónde están las lilas? Y la metafísica cubierta de amapolas? Y la lluvia que a menudo golpeaba sus palabras llenándolas de agujeros y pájaros? Os voy a contar todo lo que me pasa. Yo vivía en un barrio de Madrid, con campanas, con relojes, con árboles. Desde allí se veía el rostro seco de Castilla como un océano de cuero. Mi casa era llamada la casa de las flores, porque por todas partes estallaban geranios: era una bella casa con perros y chiquillos. Raúl, te acuerdas? Te acuerdas, Rafael? Federico, te acuerdas debajo de la tierra, te acuerdas de mi casa con balcones en donde la luz de junio ahogaba flores en tu boca? Hermano, hermano! Todo eran grandes voces, sal de mercaderías, aglomeraciones de pan palpitante, mercados de mi barrio de Argüelles con su estatua como un tintero pálido entre las merluzas: el aceite llegaba a las cucharas, un profundo latido de pies y manos llenaba las calles, metros, litros, esencia aguda de la vida, pescados hacinados, contextura de techos con sol frío en el cual la flecha se fatiga, delirante marfil fino de las patatas, tomates repetidos hasta el mar. Y una mañana todo estaba ardiendo, y una mañana las hogueras salían de la tierra devorando seres, y desde entonces fuego, pólvora desde entonces, y desde entonces sangre. Bandidos con aviones y con moros, bandidos con sortijas y duquesas, bandidos con frailes negros bendiciendo venían por el cielo a matar niños, y por las calles la sangre de los niños corría simplemente, como sangre de niños. Chacales que el chacal rechazaría, piedras que el cardo seco mordería escupiendo, víboras que las víboras odiaran! Frente a vosotros he visto la sangre de España levantarse para ahogaros en una sola ola de orgullo y de cuchillos!

Guernica - Painel de Pablo Picasso

Guernica – Painel de Pablo Picasso

Explico algumas coisas 

Perguntareis: E onde estão os lilases? E a metafísica coberta de amapolas? E a chuva que a miúdo golpeava suas palavras enchendo-as de buracos e pássaros? Vos contarei tudo o que me passa. Eu vivia em um bairro de Madrí, com sinos, com relógios, com árvores. Dali se via o rosto seco de Castilla como un oceano de couro. Minha casa era chamada a casa das flores, porque por todas as partes estalavam gerânios: era uma bela casa com cachorros e crianças. Raúl, recordas? Recordas, Rafael? Federico, recordas debaixo da terra, recordas de minha casa com balcões onde a luz de junho afogava flores em tua boca? Irmão, irmão! Tudo eram grandes vozes, sal de mercadorias, aglomerações de pão palpitante, mercados de meu bairro de Argüelles com sua estátua como um tinteiro pálido entre as merluzas: o óleo chegava às colheres, um profundo pulsar de pés e mãos enchia as ruas, metros, litros, essência aguda da vida, peixes amontoados, contextura de tetos com sol frio no qual a flecha se fadiga, delirante marfim fino das batatas, tomates repetidos até o mar. E em uma manhã tudo estava ardendo, e em uma manhã as fogueiras saíam da terra devorando seres, e desde então fogo, pólvora desde então, e desde então sangue. Bandidos com aviões e com mouros, bandidos com anéis e duquesas, bandidos com frades negros bendizendo vinham pelo céu a matar crianças, e pelas ruas o sangue das crianças corria simplesmente, como sangue de crianças. Chacais que o chacal rejeitaria, pedras que o cardo seco morderia cuspindo, víboras que as víboras odiaram! Em frente a vós eu vi o sangue de Espanha levantar-se para afogar-vos em uma só onda de orgulho e de facões!

Generales traidores

Generales traidores: mirad mi casa muerta, mirad España rota: pero de cada casa muerta sale metal ardiendo en vez de flores, pero de cada hueco de España sale España, pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos, pero de cada crimen nacen balas que os hallarán un día el sitio del corazón. Preguntaréis por qué su poesía no nos habla del sueño, de las hojas, de los grandes volcanes de su país natal? Venid a ver la sangre por las calles, venid a ver la sangre por las calles, venid a ver la sangre por las calles!

Retrao do General Francisco Franco, comemorando o fim da Guerra Civil Espanhol

Retrato do General Francisco Franco, comemorando o fim da Guerra Civil Espanhol

Generais traidores

Generais traidores: olhai minha casa morta, olhai Espanha rota: mas de cada casa morta sai metal ardendo em vez de flores, mas de cada buraco de Espanha sai Espanha, mas de cada criança morta sai um fuzil com olhos, mas de cada crime nascem balas que vos acharão um dia o lugar do coração. Perguntareis por quê sua poesia não nos fala do sonho, das folhas, dos grandes vulcões de seu país natal? Vinde ver o sangue pelas ruas, vinde ver o sangue pelas ruas, vinde ver o sangue pelas ruas!

Versões em Português de Cleto de Assis
 

MEU LIVRO SOBRE ESPANHA

Pablo Neruda

Passou o tempo. A guerra começava a perder-se. Os poetas acompanharam o povo espanhol em sua luta. Federico já havia sido assassinado em Granada. Miguel Hernández, de pastor de cabras havia se transformado em verbo militante. Com uniforme de soldado recitava seus versos na primeira linha de fogo.

Manuel Altolaguirre seguia com suas máquinas de impressão. Instalou uma em plena frente do Este, perto de Gerona, em um velho monastério. Ali foi impresso, de maneira singular, mui livro “España en el corazón”. Creio que poucos livros, na história estranha de tantos livros, teve tão curiosa gestação e destino.

Os soldados da frente aprenderão a compor os tipos de imprensa. Mas então faltou o papel. Encontraram um velho moinho, e ali decidiram fabricá-lo. Estranha mistura a que se elaborou, entre as bombas que caíam, em meio da batalha. De tudo levavam ao moinho, desde uma bandeira do inimigo até a túnica ensanguentada de um soldado morto. Apesar dos insólitos materiais e da total inexperiência dos fabricantes, o papel ficou muito bonito. Os poucos exemplares que desse livro se conservam assombram pela tipografia e pelos cadernos de misteriosa manufatura. Anos depois vi um exemplar desta edição em Washington, na Biblioteca do Congresso, colocado em uma vitrine como um dos livros mais raros de nosso tempo.

Capa da edição original de España en el corazón, da qual existem apenas seis exemplares.

Capa da edição original de España en el corazón, da qual existem apenas seis exemplares.

Tão logo foi impresso e encadernado meu livro, se precipitou a derrota da República. Centenas de milhares de homens fugitivos encheram as estradas que saíam da Espanha. Era o êxodo dos espanhóis, o acontecimento mais doloroso na história da Espanha.

Com essas filas que marchavam rumo ao desterro iam os sobreviventes do exército do Este, entre eles Manuel Altolaguirre e os soldados que fizeram o papel e imprimiram “España en el corazón”. Meu livro era o orgulho desses homens que haviam trabalhado minha poesia em um desafio à morte. Soube que muitos haviam preferido carregar sacos com os exemplares impressos em lugar de seus próprios alimentos e roupas. Com os sacos ao ombro empreenderam a longa marcha rumo à França.

A imensa coluna que caminhava rumo ao desterro foi bombardeada centenas de vezes. Caíram muitos soldados e se esparramaram os livros na estrada. Outros continuara a inacabável fuga. Além da fronteira trataram brutalmente os espanhóis que chegavam ao exilio. Em uma fogueira foram imolados os últimos exemplares daquele livro ardente que nasceu e morreu em plena batalha.

Pablo Neruda, Confieso que he vivido. Memorias, ― España en el corazón, 1974. 

Finalmente, a primeira casa do poeta

Em La Chascona, o primeiro encontro com Neruda

Os visitantes se revesam, pois os pequenos ambientes da casa construída por Neruda para sua terceira mulher e seu grande amor, Matilde Urrutia, não permitem o trânsito de muita gente. A casa não apresenta aspectos faustosos, mas assimilou os gostos pessoais do poeta, que imprimiu detalhes fascinantes no projeto original do arquiteto catalão Germán Rodriguez Arias. O terreno, descoberto pelos dois amantes que ainda se escondiam dos olhares da sociedade (Neruda era casado com Delia del Carril quando conheceu Matilde e por ela se apaixonou) se encontra em uma das ladeiras do Cerro San Cristóbal, no bairro Bella Vista, em Santiago. O arquiteto propôs que a casa fosse voltada para o sol, mas o poeta queria uma vista para a cordilheira, o que resultou em mudança da orientação da construção. Foram tantas as intervenções de Neruda que, ao final, Germán Rodriguez reconheceu que o projeto era mais criação de Neruda do que dele. Cômodos pequenos: “para viver um grande amor”, como diria Vinicius de Moraes, amigo do poeta. Vários ambientes separados, acrescentados ao correr do tempo e ganhando espaços na montanha. Por isso, várias escadas, de um plano a outro. Até passagem secreta, simulando um armário, que conduzia à parte íntima da casa, do escritório e dos aposentos de Matilde. Um ninho de paixões astuciosamente protegido.

Visão da entrada pincipal, com as várias construções que compõem a residência.No alto, a sala envidraçada onde o poeta foi velado, em 23 de setembro de 1973

Visão da entrada principal, com as várias construções que compõem a residência.No alto, a sala envidraçada onde o poeta foi velado, em 23 de setembro de 1973

A primeira explicação é sobre o nome da casa, batizada também em homenagem a Matilde e seus cabelos ruivos. Era assim que ele a chamava, carinhosamente. A própria Matilde recordava que, quando caminhavam pelo bairro chamado Bella Vista, encontraram um terreno à venda, no início da encosta do cerro San Cristóbal. Era coberto de sarças e tinha um declive bastante pronunciado. “Estávamos como que enfeitiçados por um ruído de água, era una verdadeira catarata a que vinha pelo canal, no topo do lugar.” Tomados pelo entusiasmo, decidiram comprá-lo. Tempos depois, em seu poema “La Chascona”, del libro La barcarola, Neruda evocaria a “água que corre escrevendo em seu idioma”, e as sarças “que guardavam o lugar com sua sanguinária ramagem”.  Talvez a ondulada cabeleira ruiva de Matilde tenha sugerido a metáfora da água ondulante e das sarças vermelhas.

Em “Cem Sonetos de Amor” Neruda canta aos cabelos de Matilde, no Soneto XIV:

Me falta tiempo para celebrar tus cabellos.
Uno por uno debo contarlos y alabarlos:
otros amantes quieren vivir con ciertos ojos,
yo sólo quiero ser tu peluquero.

En Italia te bautizaron Medusa
por la encrespada y alta luz de tu cabellera.
Yo te llamo chascona mía y enmarañada:
mi corazón conoce las puertas de tu pelo.

Cuando tú te extravíes en tus propios cabellos,
no me olvides, acuérdate que te amo,
no me dejes perdido ir sin tu cabellera.

por el mundo sombrío de todos los caminos
que sólo tiene sombra, transitorios dolores,
hasta que el sol sube a la torre de tu pelo.

 ***

Falta-me tempo para celebrar teus cabelos. 
Um por um devo contá-los e louvá-los: 
outros amantes querem viver com certos olhos, 
eu quero somente ser teu cabeleireiro. 

Na Itália te batizaram de Medusa 
pela encrespada e alta luz de tua cabeleira. 
Eu te chamo chascona minha e emaranhada: 
meu coração conhece as portas de teu pelo. 

Quando tu te extravies em teus próprios cabelos, 
não me esqueças, lembra que te amo, 
não me deixes perdido ir sem tua cabeleira 

pelo mundo sombrio de todos os caminhos 
que só tem sombra, transitórias dores, 
até que o sol sobe à torre de teu pelo.

Versão ao Português de Cleto de Assis
Fragmento do Soneto XIV, de "Cem Sonetos de Amor", autografado pelo poeta

Fragmento do Soneto XIV, de “Cem Sonetos de Amor”, autografado pelo poeta

O pintor Diego Rivera, amigo do poeta, que conhecia seu amor secreto, fez um retrato de Matilde, com duas cabeças, que simbolizaria a dualidade dessa união, na fase que Neruda tramitava sua separação com Delia del Carril. Conta-se que a casa deveria denominar-se de Medusa, no início, em alusão aos cabelos encaracolados de Matilde, como sugere o soneto acima, mas Pablo Neruda decidiu batizá-la definitivamente de La Chascona.

Retrato de Matilde - pintura de Diego Rivera. No lado direito,  o artista sugeriu o perfil de Neruda, formado pelos cabelos ondulados

Retrato de Matilde – pintura de Diego Rivera. No lado direito, o artista sugeriu o perfil de Neruda, oculto nos cabelos ondulados

Com muita emoção, visitei cada canto da casa e dos terrenos que a compõem. E notei que, de certa forma, houve uma coincidência com o texto postado anteriormente, no qual anunciei a viagem ao Chile. Na montagem da ilustração da Ode ao Vinho, coloquei cachos de uva à frente de uma das casas-museu. Em La Chascona, encontrei uma parreira com uvas ainda verdes, a formar um pequeno portal no início de uma das escadas, como a demonstrar que esse símbolo que povoou a poesia nerudiana renasce todos os anos para nos provar que o poeta ainda está por ali, à espera dos amigos que ele tanto gostava de receber.

Encontrei-me com Neruda por meio de suas uvas ainda verdes. Alusão ao menino perdido em Parral (Parreiral, em Português) e recuperado na construção das casas, como se fossem brinquedos? (Foto de Teresas Vargas Sierra)

Encontrei-me com Neruda por meio de suas uvas ainda verdes. Alusão ao menino perdido em Parral (Parreiral, em Português) e recuperado na construção das casas, como se fossem brinquedos? (Foto de Teresas Vargas Sierra)

Entretanto, o encantamento que o motivou a construir La Chascona, em Santiago, La Sebastiana, em Valparaíso, e Isla Negra, em El Quisco, como se fossem brinquedos de infância, como ele mesmo reconheceria, foi substituído, na casa santiaguina, por duas tragédias. A primeira, sua semidestruição, com janelas quebradas por vândalos e inundação de parte da construção, causada pelo desvio do canal que antes regava a propriedade. A segunda, em tempo coincidente, foi a morte do poeta, doze dias após do golpe de estado liderado pelo general Augusto Pinochet. Após saber da rebelião militar e da terrível morte imposta pelos militares a Victor Jara, Neruda, que se encontrava em Isla Negra, decidiu abandonar o Chile e ir para o México, onde tentaria organizar um governo de exílio. Mas sua saúde não estava em ordem e por isso a família resolveu fazer exames em um hospital de Santiago, adiando por um dia a viagem já programada, em um avião que lhe mandara o governo mexicano. No dia seguinte, 23 de setembro de 1973 veio a falecer, segundo os médicos por problemas cardíacos. Sua morte até hoje é discutida, pois seu assessor e motorista, que o acompanhou até o hospital, levantou dúvidas, levado muita gente a acreditar que Neruda teria sido envenenado. Recentemente seus restos mortais foram exumados e três laboratórios de diferentes países fizeram análises. Nada foi encontrado que corroborasse a tese de morte causada por terceiros. Somente sinais de medicamentos utilizados para o tratamento da enfermidade – um câncer de próstata – que assaltava Neruda, na época.

Velório de Neruda, foto do jornalista brasileiro Evandro Teixeira (Jornal do Brasil), que fez a cobertura de sua morte

Velório de Neruda, foto do jornalista brasileiro Evandro Teixeira (Jornal do Brasil), que fez a cobertura de sua morte

A história registrou a coragem de Matilde, que decidiu velar o corpo de Neruda, em companhia de alguns amigos, em La Chascona. Depois ela passou a recuperar o local, pacientemente, e ali viveu até sua morte, em 5 de janeiro de 1985. Ontem, portanto, completaram-se 29 anos de seu falecimento, após o que a casa foi transformada em museu, assim como as outras duas. Porém, Matilde tinha outra missão a cumprir: levar o corpo de Pablo Neruda para Isla Negra, conforme ele havia determinado, poeticamente:

Compañeros, enterradme en Isla Negra, / frente al mar que conozco, a cada área rugosa de piedras/ y de olas que mis ojos perdidos/ no volverán a ver…” (Companheiros, enterrai-me em Isla Negra, / frente ao mar que conheço, a cada área rugosa de pedras/ e de ondas que meus olhos perdidos/ não voltarão a ver…).

Não o conseguiu em vida, mas em dezembro de 1992 finalmente seu desejo foi cumprido e ele foi enterrado em sua casa predileta ao lado da amada Matilde, frente ao Oceano Pacífico, que “saía do mapa. Não havia onde colocá-lo. Era tão grande, desordenado e azul que não cabia em nenhuma parte. Por isso o deixaram em frente a minha janela”.

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Há um texto riquíssimo que conta, em detalhes, como foi velado o corpo do poeta, em La Chascona, escrito por uma amiga que tudo viu. Como é longo, deixo o endereço eletrônico para quem quiser conhece-lo. http://www.archivochile.com/Homenajes/neruda/sobre_neruda/homenajepneruda0031.pdf

Por que NERUDA?

Ele nasceu com um nome mais extenso: Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto. Mas seu pai devia ter outros planos para seu futuro e não admitiria um poeta como filho. Aos 17 anos, já tocado pelas musas da Poesia, ele criou o pseudônimo definitivo, com o qual ascenderia à glória da literatura mundial. Em sua casa santiaguina existe uma placa de mármore, colocada no ano de 2000, na qual se oferece uma versão sobre a escolha do sobrenome, que teria sido uma homenagem ao poeta tcheco Jan Neruda (1834-1891). Dizem que o poeta chileno jamais desmentiu e também nunca confirmou essa versão. Alguns até a consideram improvável, porque o jovem Ricardo Neftalí, quando decidiu adotar o nome literário, vivia em uma época em que seria quase impossível haver livros de Jan Neruda traduzidos.

Placa da versão tcheca sobre a adoção do nome Neruda. O poeta não confirmou, nem desmentiu

Placa da versão tcheca sobre a adoção do nome Neruda. O poeta não confirmou, nem desmentiu

A versão mais verossímil diz ter sido a leitura de um livro de Arthur Conan Doyle, Um estudo em vermelho, que lhe levou a conhecer uma violinista moraviana, incluída nas aventuras de Sherlock Holmes, cujo nome de casada era Wilma Norman-Neruda, nascida Wilhelmine Maria Franziska Neruda ou Guillermina Maria Francisca Neruda (1838-1911). No livro, o detetive inglês, também apaixonado por violino, informa que iria escutar um concerto da famosa violinista. Daí teria nascido a escolha do nome do poeta.

E o prêmio não foi para...

Publicaram os jornais de Santiago do último sábado (04.jan.14), 50 anos depois de o poeta Pablo Neruda ter sido indicado ao Prêmio Nobel de Literatura (galardão que conquistaria mais tarde, em 1971), que, naquele ano de 1963, ele teria sido preterido em razão de sua militância junto ao Partido Comunista. Segundo as notícias, papéis secretos do Nobel foram finalmente liberados, dando conta que Neruda, indicado ao prêmio com mais quatro escritores (o irlandês Samuel Beckett, o japonês Yukio Mishima, o dinamarquês Aksel Sandemose, o britânico-estadunidense W. H. Auden e o grego Giorgos Seferis), teve levantada contra ele a tese de que “a tendência comunista, cada vez mais dominante em sua poesia” não seria “consistente com o propósito do Prêmio Nobel”. Na análise conclusiva do Comitê do Nobel, quando o poeta chileno já figurava entre um trio finalista, foi escolhido o grego Giorgios Seferis. A notícia cita como fonte principal o presidente do Comitê do Nobel e secretário permanente da academia naquele ano, Anders Osterling.

A informação e sua justificativa, no entanto, não coincidem com o objetivo do prêmio criado pelo sueco Alfred Nobel, que é distinguir personalidades importantes em diversas áreas, independentemente de critérios como a nacionalidade, a raça, a religião e a ideologia. Se cometido o erro, oito anos depois ele foi corrigido, com a merecida entrega do Nobel de Literatura de 1971 a Neruda.

Indicado em 1963, Neruda receberia o Prêmio Nobel de Literatura 13 anos depois

Indicado em 1963, Neruda receberia o Prêmio Nobel de Literatura 13 anos depois

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Autorretrato

Pablo Neruda

Por mi parte,
soy o creo ser duro de nariz,
mínimo de ojos,
escaso de pelos en la cabeza,
creciente de abdomen,
largo de piernas,
ancho de suelas,
amarillo de tez,
generoso de amores,
imposible de cálculos,
confuso de palabras,
tierno de manos,
lento de andar,
inoxidable de corazón,
aficionado a las estrellas, mareas, maremotos,
administrador de escarabajos,
caminante de arenas,
torpe de instituciones,
chileno a perpetuidad,
amigo de mis amigos,
mudo de enemigos,
entrometido entre pájaros,
mal educado en casa,
tímido en los salones,
arrepentido sin objeto,
horrendo administrador,
navegante de boca,
yerbatero de la tinta,
discreto entre los animales,
afortunado de nubarrones,
investigador en mercados,
oscuro en las bibliotecas,
melancólico en las cordilleras,
incansable en los bosques,
lentisimo de contestaciones,
ocurrente años después,
vulgar durante todo el año,
resplandeciente con mi cuaderno,
monumental de apetito,
tigre para dormir,
sosegado en la alegría,
inspector del cielo nocturno,
trabajador invisible,
desordenado, persistente,
valiente por necesidad,
cobarde sin pecado,
soñoliento de vocación,
amable de mujeres,
activo por padecimiento,
poeta por maldición y tonto de capirote.

Poster exposto em um dos jardins de La Chascona (foto de C. de Assis)

Poster exposto em um dos jardins de La Chascona (foto de C. de Assis)

Autorretrato

De minha parte,
sou ou creio ser duro de nariz,
mínimo de olhos,
escasso de pelos na cabeça,
crescente de abdômen,
comprido de pernas,
largo de solas,
amarelo de tez,
generoso de amores,
impossível de cálculos,
confuso de palavras,
terno de mãos,
lento de andar,
inoxidável de coração,
aficionado às estrelas, marés, maremotos,
administrador de escaravelhos,
caminhante de areias,
torpe de instituições,
perpetuamente chileno,
amigo de meus amigos,
mudo de inimigos,
intrometido entre pássaros,
mal educado em casa,
tímido nos salões,
arrependido sem objeto,
horrendo administrador,
navegante de boca,
ervateiro da tinta,
discreto entre os animais,
afortunado nos nuvarrões,
investigador em mercados,
obscuro nas bibliotecas,
melancólico nas cordilheiras,
incansável nos bosques,
lentíssimo de contestações,
ocorrente anos depois,
vulgar durante todo o ano,
resplandecente com meu caderno,
monumental de apetite,
tigre para dormir,
sossegado na alegria,
inspetor do céu noturno,
trabalhador invisível,
desordenado, persistente,
valente por necessidade,
covarde sem pecado,
sonolento por vocação,
amável com mulheres,
ativo por padecimento,
poeta por maldição e bobo com chapéu de burro.

versão ao Português de Cleto de Assis

Rumo ao berço de Neruda

Estou tomando o rumo do Sul, em direção à pátria de Pablo Neruda. Pretendo descansar, divertir-me, degustar os sabores do Chile e conhecer a nova poesia chilena. Vou percorrer o triângulo de Neruda, formado pelos vértices de Santiago, Valparaiso e El Quisco, onde se encontram as três casas do poeta – La Chascona, La Sebastiana e Isla Negra, respectivamente.

Sobre esta, considerada a principal casa-museu de Neruda, o poeta deixou escrito: “En mi casa he reunido juguetes pequeños y grandes, sin los cuales no podría vivir. Son mis propios juguetes. Los he juntado a través de toda mi vida con el científico propósito de entretenerme solo. El niño que no juega no es niño, pero el hombre que no juega perdió, para siempre al niño que vivía en él y que le hará mucha falta. He edificado mi casa también como un juguete y juego en ella de la mañana a la noche”. (Em minha casa reuni brinquedos pequenos e grandes, sem os quais não poderia viver. São meus próprios brinquedos. Juntei-os através de toda minha vida com o científico propósito de entreter-me sozinho. O menino que não brinca não é menino, porém o homem que não brinca perdeu, para sempre, o menino que vivia nele e que lhe fará muita falta. Construí minha casa também como um brinquedo e brinco nela da manhã à noite.)

Do Chile enviarei notícias poéticas. Com a Ode ao Vinho, de Neruda, ergo um brinde pela paz maior que odos desejamos para o ano novo que se iniciará dentro de algumas horas.

Oda_al_vino

ODA AL VINO

Pablo Neruda

Vino color de día
vino color de noche
vino con pies púrpura
o sangre de topacio
vino,
estrelloado hijo
de la tierra
vino, liso
como una espada de oro,
suave
como un desordenado terciopelo
vino encaracolado
y suspendido,
amoroso, marino
nunca has cabido en una copa,
en un canto, en un hombre,
coral, gregario eres,
y cuando menos mutuo.

El vino
mueve la primavera
crece como una planta de alegría
caen muros,
peñascos,
se cierran los abismos,
nace el canto.
Oh tú, jarra de vino, en el desierto
con la saborosa que amo,
dijo el viejo poeta.
Que el cántaro del vino
al peso del amor sume su beso.

Amo sobre una mesa,
cuando se habla,
la luz de una botella
de inteligente vino.
Que lo beban,
que recuerden en cada
gota de oro
o copa de topacio
o cuchara de púrpura
que trabajó el otoño
hasta llenar de vino las vasijas
y aprenda el hombre obscuro,
en el ceremonial de su negocio,
a recordar la tierra y sus deberes,
a propagar el cántico del fruto.

ODE AO VINHO

Pablo Neruda

Vinho cor do dia
vinho cor da noite
vinho com pés púrpura
o sangue de topázio
vinho,
estrelado filho
da terra
vinho, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um desordenado veludo
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso, marinho
nunca coubeste em um copo,
em um canto, em um homem,
coral, gregário és,
e quando menos mútuo.

O vinho
move a primavera
cresce como uma planta de alegria
caem muros,
penhascos,
fecham-se os abismos,
nasce o canto.
Ó tu, jarra de vinho, no deserto
com a saborosa que amo,
disse o velho poeta.
Que o cântaro do vinho
ao peso do amor some seu beijo.

Amo sobre uma mesa,
quando se fala,
à luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou copo de topázio
ou colher de púrpura
que trabalhou o outono
até encher de vinho as vasilhas
e aprenda o homem obscuro,
no cerimonial de seu negócio,
a recordar a terra e seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.

versão ao Português de Cleto de Assis

Nilson Monteiro, novo e ilustre correntista

A estréia bancária de Nilson Monteiro

O Banco da Poesia recebe mais um correntista ilustre, que demorou a chegar mas, com certeza, estará sempre por aqui a enriquecer sua conta poética. Orgulho-me por tê-lo como amigo e ter participado de sua formação profissional, como jornalista, no tempo em que ele, um jovem entusiasmado pela área, mostrava o seu talento numa experiência inovadora, o Novo Jornal, por mim editado em Londrina.

Nilson Monteiro nasceu em Presidente Bernardes, no interior de São Paulo, Aportou  em Curitiba ainda aos 10 anos de idade, por força da profissão do pai, que era representante comercial. Um ano e meio depois, por volta de 1964, mudou-se com a família para Londrina, onde se estabeleceu e pôde desenvolver seus estudos, dividindo-se entre os cursos de Letras e Literatura Francesa e Comunicações, na Universidade Estadual de Londrina .

O grande estímulo para ingressar na profissão veio através do jornalista e escritor Domingos Pellegrini, que o levou para o Diário de Londrina, de Edson Maschio, onde, ainda adolescente, foi responsável pela coluna “No Mundo Estudantil”.

Sempre pelas mãos de Pellegrini deu o passo seguinte, que o conduziu à redação do semanário Novo Jornal, ao lado de Marcelo Oikawa, Roldão Arruda e Carlos Eduardo Lourenço Jorge, no início da década de 1970.

O convite para ingressar na Folha de Londrina surgiu na sequência, por intermédio de Walmor Macarini, em 1973. Lá permaneceu por cerca de cinco anos, passando por diversas editorias, com ênfase para a de Cultura. Simultaneamente, desenvolvia trabalhos em rádio e televisão e fazia incursões no terreno da literatura, escrevendo contos e poemas. Passou também por agências de publicidade e ajudou a fundar a Cooperativa de Jornalistas do Paraná, que produzia o jornal Paraná Repórter.

Ainda em meados de 1970 fez parte da redação do lendário Panorama, uma experiência ousada capitaneada pelo empresário e ex-governador Paulo Pimentel, que teve vida breve, porém marcou  história no jornalismo paranaense. Após seu fechamento, Nilson foi para São Paulo, trabalhar no jornal Movimento, o principal porta-voz da esquerda no país à época da ditadura militar. Voltou depois para a Folha de Londrina, onde atuou como repórter especial e editor do Caderno de Cultura, angariando vários prêmios por reportagens que publicou.

Em 1986 transferiu-se para o jornal O Estado de São Paulo, depois para a Gazeta Mercantil, onde editou o Caderno Regional do Paraná e, finalmente, para a revista Isto É.

Nesse meio tempo continuou produzindo poemas e contos. O livro de poemas “Simples” foi editado em 1984. Depois vieram “Curitiba Vista por um Pé Vermelho”, editado pela Fundação Cultural de Curitiba, “Ferroeste, um novo Rumo para o Paraná”, “Itaipu, a Luz”, e, finalmente, “Madeira de Lei”, que narra a trajetória do empresário Miguel Zattar, um pioneiro na área da silvicultura, na condução das Indústrias João José Zattar S/A.

Atualmente lotado no gabinete do governador Beto Richa, Nilson fez assessoria de imprensa no Banco Regional de Desenvolvimento Econômico (BDRE), na Companhia de Habitação do Paraná – Cohapar – e na Associação Comercial do Paraná – ACP. Também assessorou o ex-governador José Richa em sua última campanha para o Senado, na década de 1990.

Seu trabalho recebe, neste momento de sua vida, reconhecimento público, ao ser diplomado como Cidadão Honorário do Paraná, título que receberá no próximo dia 20 de março.

Bem vindo, Nilson poeta, ao nosso Banco. (Cleto de Assis, con informações da Assessoria de Impnresa da Assembléia Legislativa do Paraná)

Impressões de viagem

(crônica a Neruda)

 
Onde andas, poeta, como fantasma
grunhindo as tábuas do convés?

Onde passeias, leve, pipa entre as cores
dos varais e das casas penduradas nas escarpas?

Onde choras, líquido, em meio
às ondas largas e geladas do Pacífico?

Onde, plantas, mágico, teu coração
nas pedras, gelatinas de ostras endurecidas?

Onde, esfarinhas, versejador, tua alma
em estrelas, uvas bêbadas, cafés franceses?

Onde, fincas, amante, as âncoras
na vida, feira livre, de teu povo?

Onde, espalhas, boiadeiro, as crinas
de teus cavalos, relinchos selvagens?

Onde, anjo, sem alas, sem religião,
feito de renda branca da cordilheira,
tateias a pele desses muros?

Aqui, poeta,
aqui entre livros, mapas, bússolas, bananeiras
cerâmicas
e escadas,
as pessoas te chamam neste inferno de paixões
de anjo

Nesta cidade feita de ruelas,
peles, ondas, vinho, fumaça,
bodegas, teias, dores,
empanadas, penhascos que arranham o céu,
choclo e palta nos beiços dos pratos,
pisco e pinga nos copos,
funiculares ensandecidos

Descubro, num átimo, que amo
o atômico explodir da vida,
pedaços de gente esparramados
ao pé do cerro
sortidos em meio ao sebo do porto,
sentimentos espalhados sem cercas

Descubro que amo
cada arrulho de seus colegiais,
meias de lã, gravatas inglesas
achadas no passado,
maritacas de azul
gritando alegrias e mirando futuros
nas rachaduras da arquitetura

Descubro que amo
cada lágrima que desce
nas fendas molhadas da montanha,
vidro, cristal safira que fura os olhos
para embrulhar-se nos lençóis do Pacífico

Descubro que amo
cada suspiro de teu ar,
o cheiro pastoso de teu mercado,
cada célula de teus mariscos,
cada ensaio de voo
de teus copos suados

Descubro que amo
cada farelo de tuas pedras
cada dor de seu paraíso
cada ritmo de teus versos
cada sentimento de entranhas,
das putas e das guitarras,
de ventanas, de pinturas
em paredes sem casca

Onde, poeta, é permitido sonhar
com este prelúdio salgado
desta sinfonia doce que
deram o nome de Neruda?

Aqui,
neste chão agarrado em Valparaíso,
madeira de porão do mar
tua casa de degraus
de mastros eriçados,
La Sebastiana.
____________

Ilustrações: C. de A.