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Finalmente, a casa predileta

A casa … Não sei quando nasceu… Era a meio da tarde, chegamos a cavalo por aquelas solidões … Don Eladio ia adiante, vadeando o banhado de Córdoba que havia aumentado… Pela primeira vez senti como uma pontada este cheiro de inverno marinho, mescla de boldo e areia salgada, algas e cardos… Aqui, disse don Eladio Sobrino (navegante) e ali ficamos. Logo a casa foi crescendo, como a gente, como as árvores.

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Em 1937, de volta ao Chile, obrigado a sair da Espanha pela ocorrência da Guerra Civil Espanhola, Neruda procurava um lugar onde pudesse se dedicar a um novo projeto literário, uma obra portentosa que viria a se chamar Canto General (Canto Geral), na qual o poeta reuniu os mais diversos temas, usando vários gêneros e técnicas para contar e cantar a sua América Latina, no princípio – como na gênesis bíblica – puro paraíso, sem nomes e sem homens. Depois, revive a história humana da América Latina, que começa nos pináculos de Machu Pichu e se espraia pelo continente, primeiro em sua origem indígena, depois atropelada pelos conquistadores.

A sonhada tarefa, porém, somente foi concluída mais tarde, depois de longa peregrinação do poeta pelas rotas políticas de seu país. Na década seguinte ao início de construção da casa de Isla Negra, eleito senador e envolvido em intensa discussão política, que lhe valeram a cassação da função senatorial, Neruda sofreria grande perseguição política do governo do então presidente González Videla e foi obrigado até mesmo a sair do país, refugiando-se na Argentina.

Sua amada Matilde Urrutia, nas memórias que deixou (Minha vida com Pablo Neruda) relata que ele “havia sonhado e lutado toda a vida pela erradicação da pobreza; queria que em seu país houvesse justiça social, um pouco de igualdade. Colocou sua pena e sua vida a serviço desta causa nobre. Muitas vezes arriscou sua integridade física perseguido por González Videla, que considerávamos um tirano. É que não conhecíamos a tirania de fato. (…) Sempre animado, entusiasta, alegre, falando às massas, tentando despertar a consciência adormecida e fatalista dos pobres que se contentam com as esmolas do nada!” O poeta sofre com o que chamava de opressão dos povos latino-americanos e sua altissonância poética o leva a concluir a obra quase enciclopédica, formada por 15 seções e 231 poemas, finalmente publicada em 1950, no México.

Apesar de se voltar quase que inteiramente à saga dos povos latino-americanos, no final de seu Canto Geral Neruda assina a extensa obra falando sobre sua morte e deixa dois testamentos e disposições gerais, à guisa de um estatuto da América nerudiana.

Adquirida a casa do marinheiro espanhol, entre 1943 e 1945, e com a ajuda do arquiteto catalão Germán Rodríguez Arias, Neruda fez no novo refúgio uma série de ampliações. Quis domesticar o Pacífico, mas não conseguiu. Como já registrei em outro texto, ele um dia escreveu: “Não sei que fazer com ele, ele saía do mapa. Não sabia onde colocá-lo. Era tão grande, desordenado e azul que não cabia em nenhuma parte. Por isso o deixaram frente a minha janela”. Para não se desmentir, Neruda colocou janelas em quase todas as paredes que olham para o mar. Janelas que dominam todo o Pacífico que, por sua vez, domina a casa predileta do poeta.

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O início da construção da residência de Isla Negra foi acompanhada por Delia del Carril, que desfrutou-a intensamente. Já casado com Matilde Urrutia, Neruda fez ampliações na casa, em 1965, que tornaram ainda mais fantástico o poema de pedra e madeira que continuamente rearranjava.  Já na sala de estar foram colocadas carrancas, ou figuras de proa, adquiridas em várias do mundo. Duas medusas estão voltadas permanentemente para o Pacífico e, ainda, um grande chefe comanche, uma sereia e outras tantas figuras emblemáticas. Todas as figuras contam suas histórias, carregadas de amores e de enfrentamento de naufrágios e de lutas oceânicas. Quadros e mais quadros, alguns trecos que se transformaram em relíquias.

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Mascarones

Da sala de estar passamos aos demais ambientes, construídos à maneira do arquiteto de sonhos e de casas sonhadoras. Em meio à infinidade de objetos reunidos pelo colecionista descobrimos relíquias folclóricas doadas pelo amigo Jorge Amado, como a coleção de garrafas com areias coloridas das praias do Nordeste brasileiro e pequenas esculturas religiosas também engarrafadas. Coleções de cachimbos, de aparelhos náuticos, de esculturas da Ilha de Páscoa, o telescópio doado pela Embaixada da França que chegou a Isla Negra depois da morte do poeta, os bares, as louças, uma profusão de máscaras africanas e fotografias de seus ídolos, entre os quais Whitmann e Rimbaud.

Cama de Neruda, onde ele passou seus últimos dias de Isla Negra. Sobre a cabeceira, a ovelhinha de pano comprada na França, que lhe recordava a infância

Cama de Neruda, onde ele passou seus últimos dias de Isla Negra. Sobre a cabeceira, a ovelhinha de pano comprada na França, que lhe recordava a infância

Na parte íntima da casa, conservam-se roupas e objetos pessoais de Pablo e Matilde. A cama, de onde ditou os seus últimos textos. E, na extremidade da construção, que se alonga como o mapa do Chile, o seu escritório, onde guardava uma escrivaninha de madeira – única recordação que conseguiu conservar de seu pai. Em uma pequena sala contígua, o cavalo em tamanho natural, admirado pelo menino de Temuco e adquirido, anos mais tarde, quando o poeta recebeu a notícia de que o armazém que o mantinha como objeto de propaganda tinha se incendiado. (Neruda o levou, ainda chamuscado, para Isla Negra, e providenciou uma festa, na qual exigiu que os convidados levassem presentes para o cavalo, o que possibilitou uma completa restauração.) Ao final do conjunto, uma sala com a coleção do malacólogo amador Pablo Neruda – conchas recolhidas em várias partes do mundo e que foram classificadas, mais tarde, por especialistas.

O cavalo de Temuco, restaurado por presentes de amigos do poeta. Neruda dizia que era o único cavalo do mundo com rabo de três cores. A porta à esquerda, acima, é de um pequeno banheiro "só para homens" e decorado com postais eróticos antigos.

O cavalo de Temuco, restaurado por presentes de amigos do poeta. Neruda dizia que era o único cavalo do mundo com rabo de três cores. A porta à esquerda é de um pequeno banheiro “só para homens”, decorado com postais eróticos antigos.

Calcula-se que são mais de três mil e 500 objetos, ou coisas, como dizia o poeta, cobrindo todas os recintos da residência. Mas a variedade das coleções sempre tem cheiro de mar: “Eu sou um amador do mar, e há muito tempo coleciono conhecimentos que não me servem muito porque navego sobre a terra”.  Perguntado sobre sua especialização como colecionista, ele respondeu: “Sou ‘coisista’, gosto de colecionar coisas”…

No extremo sul da casa de Isla Negra, o escritório de Neruda. A mesa foi feita com uma porta de navio encontrada no mar. Sobre ela, utensílios de trabalho do poeta e a réplica da mão de Matilde, em bronze. Na parede à esquerda, uma escrivaninha que pertenceu a seu pai - único objeto paterno que conseguiu recuperar - e onde teria escrito o seu primeiro poema, dedicado a sua mãe.

No extremo sul da casa de Isla Negra, o escritório de Neruda. A mesa foi feita com uma porta de navio encontrada no mar. Sobre ela, utensílios de trabalho do poeta e a réplica da mão de Matilde, em bronze. Na parede à esquerda, uma escrivaninha que pertenceu a seu pai – único objeto paterno que conseguiu recuperar – e onde teria escrito seu primeiro poema, dedicado a sua mãe.

O escritório, visto da parte externa. Conta-se que foi por esta janela que o poeta teria avistado, boiando nas ondas, a porta de um navio que seria convertida em mesa de trabalho.

O escritório, visto da parte externa. Conta-se que foi por esta janela que o poeta teria avistado, boiando nas ondas, a porta de um navio que seria convertida em mesa de trabalho.

As maiores emoções são recolhidas no exterior, hoje transformado em santuário, desde que foram atendidas as disposições gerais do poeta: “Enterrai-me em Isla Negra…”. Numa espécie de castelo de proa natural, voltado para o oceano, foi construído um jardim onde repousam Pablo e Matilde, após o estranho trânsito de seu corpo por diversos cemitérios e laboratórios.

Neruda em um banco de pedra, voltado para o mar. Naquele momento ele não podia imaginar que bem à frente daquele banco seria colocado seu próprio túmulo, no qual a ele se juntaria, mais tarde, o corpo de Matilde.

Neruda em um banco de pedra, voltado para o mar. Naquele momento ele não podia imaginar que bem à frente daquele banco seria plantado seu próprio túmulo, no qual a ele se juntaria, mais tarde, o corpo de Matilde.

Túmulo de Pablo e Matilde, em Isla Negra

Túmulo de Pablo e Matilde, em Isla Negra

Da tumba do poeta e sua amada avista-se, altaneira, a casa idílica, a primeira a ser construída, a preferida, a que lhe recebeu em seus últimos dias e onde repousa com Matilde e o Oceano Pacífico.

Da tumba do poeta e sua amada avista-se, altaneira, a casa idílica, a primeira a ser construída, a preferida, a que lhe recebeu em seus últimos dias e perto da qual repousa com Matilde e o Oceano Pacífico.

Resta ao visitante menos preguiçoso uma visita às pedras e areias de Isla Negra, já fora dos limites da residência, hoje toda cercada por um muro de madeira. Como sei que o Oceano Pacífico não mudará sua forma nem sua força em razão de minha iconoclastia ambiental, guardei dois bons punhados de areia da praia do poeta para levar ao Brasil, com certeza de que tenho licença e a benção de Pablo Neruda. Uma troca justa, pois já contei que, na casa de Isla Negra, existem várias garrafas com areias de praias brasileiras.

Pelo portão de madeira Neruda tinha acesso à praia e às pedras que o protegiam do furor oceânico e, simultaneamente, emolduravam o mundo líquido que tanto amou. simultaneamente o l

Pelo portão de madeira Neruda tinha acesso à praia e às pedras que o protegiam do furor oceânico e, simultaneamente, emolduravam o mundo líquido que tanto amou. 

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El hombre en el océano

*****

PoR QUE ISLA NEGRA?

Continua Neruda em sua narrativa do libro “Una casa en la arena”: “Don Eladio morreu, mais tarde. Era andaluz o capitão Sobrino. A última vez que veio nos ver cantou durante toda a tarde canções serranas e marinhas. No mesmo dia que deixou de cantar e navegar para sempre, subi em uma escada e, na grande escuna veleira pendurada sobre a lareira, escrevi seu nome em letras maiúsculas. Assim se chama ‘Eladio Sobrino’(…) sobre a lareira de pedra de Isla Negra navega ‘Don Eladio’. Que bem denominada foi!”

Eladio Sobrino, o primeiro proprietário de Isla Negra

Eladio Sobrino, o primeiro proprietário de Isla Negra

Antes de comprar uma pequena casa de pedra que havia sido construída por Eladio Sobrino, o marinheiro espanhol que, um dia, chegou ao sul do Chile, subiu por sua costa e estacionou seus sonhos de navegador em uma região ao sul de Valparaíso, mais propriamente na província de San Antonio, comuna, ou município de El Quisco. Ali montou residência e família, comprou terras e, em um de suas extensões, colocou o nome de Córdoba, em homenagem à cidade onde nascera. Mais tarde, construiu casinhas de veraneio e foi por uma delas que Neruda o procurou, quando o acesso à costa acidentada da região ainda era difícil.

A praia onde estava a casinha original se chamava Las Gaviotas (Gaivotas), mas a criatividade do poeta logo divisou uma grande pedra escura e passou a chamar o local de Isla Negra, que, de fato, não é ilha nem é negra. O meio ambiente não foi alterado. Ao contrário, o desenvolvimento da residência da Isla Negra deu paisagem mais encantadora ao terreno, uma elevação a poucos metros da praia cheia de pedras que retém os sargaços vindos do mar e com povoação permanente de ruidosas gaivotas. Sua areia é grossa e forma uma pequena praia, ao sul da residência. Em frente à casa, uma muralha de pedras a protege, como um dique natural que tenta acalmar o agitado mar do Pacífico.

Eladio Sobrino também passou a fazer parte da história local. Seus descendentes criaram uma fundação, com seu nome, destinada a trabalhar pela cultura da região. A partir da restauração da casa de Neruda, nos anos 80, todo o município teve rápido desenvolvimento, em razão de ter sido transformado em rota obrigatória dos turistas. E as iniciativas culturais se multiplicam, como foi o caso das bordadeiras protegidas por Neruda, que tiveram uma das filhas de Eladio Sobrino como principal articuladora de suas atividades.

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El Mar

(de Memorial de Isla Negra)

Memorial_islanegra

Necesito del mar porque me enseña:
no sé si aprendo música o conciencia:
no sé si es ola sola o ser profundo
o sólo ronca voz o deslumbrante
suposición de peces y navios.
El hecho es que hasta cuando estoy dormido
de algún modo magnético circulo
en la universidad del oleaje.
No son sólo las conchas trituradas
como si algún planeta tembloroso
participara paulatina muerte,
no, del fragmento reconstruyo el día,
de una racha de sal la estalactita
y de una cucharada el dios inmenso.

Lo que antes me enseñó lo guardo! Es aire,
incesante viento, agua y arena.

Parece poco para el hombre joven
que aquí llegó a vivir con sus incendios,
y sin embargo el pulso que subía
y bajaba a su abismo,
el frío del azul que crepitaba,
el desmoronamiento de la estrella,
el tierno desplegarse de la ola
despilfarrando nieve con la espuma,
el poder quieto, allí, determinado
como un trono de piedra en lo profundo,
substituyó el recinto en que crecían
tristeza terca, amontonando olvido,
y cambió bruscamente mi existencia:
di mi adhesión al puro movimiento.

O Mar

Necessito do mar porque me ensina:
não sei se aprendo música ou consciência:
não sei se é onda só ou ser profundo
ou somente rouca voz ou deslumbrante
suposição de peixes e navios.
O fato é que até quando estou dormido
de algum modo magnético círculo
na universidade da ondulação.
Não são somente as conchas trituradas
como se algum trêmulo planeta
participara paulatina morte,
não, do fragmento reconstruo o dia,
de uma rajada de sal a estalactite
e de uma colherada o deus imenso.

O que antes me ensinou o guardo! É ar,
incessante vento, água e areia.

Parece pouco para o homem jovem
que aqui chegou a viver com seus incêndios,
e no entanto a pulsação que subia
e baixava a seu abismo,
o frio do azul que crepitava,
o desmoronamento da estrela,
o terno desdobra-se da onda
desperdiçando neve com a espuma,
o poder quieto, ali, determinado
como um trono de pedra no profundo,
substituiu o recinto em que cresciam
tristeza teimosa, amontoando esquecimento,
e mudou bruscamente minha existência:
de minha adesão ao puro movimento.

De Canto General

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XXIII

LA MUERTE

He renacido muchas veces, desde el fondo
de estrellas derrotadas, reconstruyendo el hilo
de las eternidades que poblé con mis manos,
y ahora voy a morir, sin nada más, con tierra
sobre mi cuerpo, destinado a ser tierra.

No compré una parcela del cielo que vendían
los sacerdotes, ni acepté tinieblas
que el metafísico manufacturaba
para despreocupados poderosos.

Quiero estar en la muerte con los pobres
que no tuvieron tiempo de estudiarla,
mientras los apaleaban los que tienen
el cielo dividido y arreglado.

Tengo lista mi muerte, como un traje
que me espera, del color que amo,
de la extensión que busqué inútilmente,
de la profundidad que necesito.

Cuando el amor gastó su materia evidente
y la lucha desgrana sus martillos
en otras manos de agregada fuerza,
viene a borrar la muerte las señales
que fueron construyendo tus fronteras.

XXIII

A MORTE

Renasci muitas vezes, do fundo
de estrelas derrotadas, reconstruindo o fio
das eternidades que povoei com minhas mãos,
e agora vou morrer, sem nada mais, com terra
sobre meu corpo, destinado a ser terra.

Não comprei una parcela do céu que vendiam
os sacerdotes, nem aceitei trevas
que o metafísico manufaturava
para despreocupados poderosos.

Quero estar na morte com os pobres
que não tiveram tempo para estudá-la,
enquanto os golpeavam os que têm
o céu dividido e arrumado.

Tenho pronta minha morte, como um traje
que me espera, da cor que amo,
da extensão que busquei inutilmente,
da profundidade que necessito.

Quando o amor gastou sua matéria evidente
e a luta descaroça seus martelos
em outras mãos de agregada força,
vem apagar a morte os sinais
que foram construindo tuas fronteiras.

XXIII

TESTAMENTO
(1)

Dejo a los sindicatos
del cobre, del carbón y del salitre
mi casa junto al mar de Isla Negra.
Quiero que allí reposen los maltratados hijos
de mi patria, saqueada por hachas y traidores,
desbaratada en su sagrada sangre,
consumida en volcánicos harapos.

Quiero que al limpio amor que recorriera
mi dominio, descansen los cansados,
se sienten a mi mesa los oscuros,
duerman sobre mi cama los heridos.

Hermano, ésta es mi casa, entra en el mundo
de flor marina y piedra constelada
que levanté luchando en mi pobreza.
Aquí nació el sonido en mi ventana
como en una creciente caracola
y luego estableció sus latitudes
en mi desordenada geología.

Tu vienes de abrasados corredores,
de túneles mordidos por el odio,
por el salto sulfúrico del viento:
aquí tienes la paz que te destino,
agua y espacio de mi oceanía.

XXIII

TESTAMENTO
(1)

Deixo aos sindicatos
do cobre, do carvão e do salitre
minha casa junto ao mar de Isla Negra.
Quero que ali repousem os maltratados filhos
de minha pátria, saqueada por achas e traidores,
desbaratada em seu sagrado sangue,
consumida em vulcânicos farrapos.

Quero que ao limpo amor que recorrera
meu domínio, descansem os cansados,
sentem-se a minha mesa os obscuros,
durmam sobre minha cama os feridos.

Irmão, esta é minha casa, entra no mundo
de flor marinha e pedra constelada
que levantei lutando em minha pobreza.
Aqui nasceu o som em minha janela
como em um crescente caracol
e logo estabeleceu suas latitudes
em minha desordenada geologia.

Tu vens de abrasados corredores,
de túneis mordidos pelo ódio,
pelo salto sulfúrico do vento:
aqui tens a paz que te destino,
água e espaço de minha oceania.

XXIV

TESTAMENTO
(2)

Dejo mis viejos libros, recogidos
en rincones del mundo, venerados
en su tipografía majestuosa,
a los nuevos poetas de América,
a los que un día
hilarán en el ronco telar interrumpido
las significaciones de mañana.

Ellos habrán nacido cuando el agreste puño
de leñadores muertos y mineros
haya dado una vida innumerable
para limpiar la catedral torcida,
el grano desquiciado, el filamento
que enredó nuestras ávidas llanuras.
Toquen ellos infierno, este pasado
que aplastó los diamantes, y defiendan
los mundos cereales de su canto,
lo que nació en el árbol del martirio.

Sobre los huesos de caciques, lejos
de nuestra herencia traicionada, en pleno
aire de pueblos que caminan solos,
ellos van a poblar el estatuto
de un largo sufrimiento victorioso.

Que amen como yo amé mi Manrique, mi Góngora,
mi Garcilaso, mi Quevedo:
fueron
titánicos guardianes, armaduras
de platino y nevada transparencia,
que me enseñaron el rigor, y busquen
en mi Lautréamont viejos lamentos
entre pestilenciales agonías.
Que en Maiakovsky vean cómo ascendió la estrella
y cómo de sus rayos nacieron las espigas.

XXIV

TESTAMENTO
(2)

Deixo meus velhos livros, recolhidos
em rincões do mundo, venerados
em sua tipografia majestosa,
aos novos poetas da América,
aos que um dia
fiarão no roufenho tear interrompido
os significados da amanhã.

Eles terão nascido quando o agreste punho
de lenhadores mortos e mineiros
tenha dado uma vida inumerável
para limpar a catedral torcida,
o grão descomposto, o filamento
que enredou nossas ávidas planícies.
Toquem eles inferno, este passado
que aplastou os diamantes, e defendam
os mundos cereais de seu canto,
o que nasceu na árvore do martírio.

Sobre os ossos de caciques, distante
de nossa herança atraiçoada, em pleno
ar de povos que caminham sozinhos,
eles vão povoar o estatuto
de um longo sofrimento vitorioso.

Que amem como eu amei meu Manrique, meu Góngora,
meu Garcilaso, meu Quevedo:
foram
titânicos guardiões, armaduras
de platina e nevada transparência,
que me ensinaram o rigor, e busquem
em meu Lautréamont velhos lamentos
entre pestilenciais agonias.
Que em Maiakovsky vejam como ascendeu a estrela
e como de seus raios nasceram as espigas.

 XXIV

DISPOSICIONES

Compañeros, enterradme en Isla Negra,
frente al mar que conozco, a cada área rugosa
de piedras y de olas que mis ojos perdidos
no volverán a ver.
Cada día de océano
me trajo niebla o puros derrumbes de
turquesa,
o simple extensión, agua rectilínea, invariable,
lo que pedí, el espacio que devoró mi frente.

Cada paso enlutado de cormorán, el vuelo
de grandes aves grises que amaban el
invierno,
y cada tenebroso círculo de sargazo
y cada grave ola que sacude su frío,
y más aún, la tierra que un escondido herbario
secreto, hijo de brumas y de sales, roído
por el ácido viento, minúsculas corolas
de la costa pegadas a la infinita arena:
todas las llaves húmedas de la tierra marina
conocen cada estado de mi alegría,
saben
que allí quiero dormir entre los párpados
del mar y de la tierra . . .
Quiero ser arrastrado
hacia abajo en las lluvias que el salvaje
viento del mar combate y desmenuza,
y luego por los cauces subterráneos, seguir
hacia la primavera profunda que renace.

Abrid junto a mí el hueco de la que amo, y
un día
dajadla que otra vez me acompañe en la
tierra.

 XXIV

DISPOSIçõES

Companheiros, enterrai-me em Isla Negra,
frente ao mar que conheço, a cada área rugosa
de pedras e de ondas que meus olhos perdidos
não voltarão a ver.
Cada dia de oceano
trouxe-me névoa ou puros desmoronamentos de
turquesa,
ou simples extensão, água retilínea, invariável,
o que pedi, o espaço que devorou minha fronte.

Cada passo enlutado de cormorão, o voo
de grandes aves cinzentas que amavam o
inverno,
e cada tenebroso círculo de sargaço
e cada grave onda que sacode seu frio,
e mais ainda, a terra que um oculto herbário
secreto, filho de brumas y de sais, roído
pelo ácido vento, minúsculas corolas
da costa coladas à infinita areia:
todas as chaves úmidas da terra marinha
conhecem cada estado de minha alegria,
sabem
que ali quero dormir entre as pálpebras
do mar e da terra …
Quero ser arrastado
para baixo nas chuvas que o selvagem
vento do mar combate e esmiúça,
e logo pelos leitos subterrâneos, seguir
até a primavera profunda que renasce.

Abri junto a mim a cova da que amo, e
um dia
deixai-a que outra vez me acompanhe na
terra.

Neruda_matilde_islanegra

*****

Versões ao Português de Ceto de Assis

O poeta e a Guerra Civil Espanhola

Neruda, capitão de terra, mar e guerra

winnipeg_neruda Conhecer um poeta não é somente ler e gostar de seus poemas. Comprovei esta verdade nas visitas que fiz às casas-museus de Pablo Neruda, em Santiago do Chile, Valparaíso e El Quisco, onde estão La Chacona, La Sabastiana e Isla Negra. As três residências do maior poeta chileno estão repletas de recordações. Talvez a falta de brinquedos em sua infância foi a principal razão de transformá-lo, já adulto, em um compulsivo colecionador de antiguidades. Talvez sua paixão pelo mar, marinheiro de terra firme autoconsiderado, o levou a recolher partes dos oceanos, nas conchas, âncoras, móveis, carrancas e objetos de barcos. Comecei a perguntar: e quando esse senhor arranjava tempo para escrever? Mas se descobre, também, que ele era um escritor quase compulsivo. Em cada casa ele construiu seus santuários de escrevinhador, dois no caso de Isla Negra. Escreveu até mesmo em seus últimos tempos, quando a enfermidade que o atacou obrigava-o a ficar em repouso, ditando textos a Matilde e seu secretário. Fiz mais perguntas. Além de seu declarado favoritismo às políticas de esquerda, quais as atividades sociais a que se dedicava para traduzir em obras o que declarara em poesia: “La solidaridad es la ternura de los pueblos”? Suas casas foram construídas como refúgios, onde entravam apenas os escolhidos. Em Valparaíso, um dos critérios que estabeleceu até encontrar La Sebastiana era o da discrição – “deve ser solitária, mas não em excesso. Vizinhos, oxalá invisíveis. Não deve ver-se nem escutar-se. Original, mas não muito incômoda. Muito alada mas firme. Nem muito grande nem muito pequena. Longe de tudo, mas perto da mobilização”. Isso daria a impressão que ele, tímido também confesso, se afastava do convívio social. Sabe-se, hoje, que Neruda, enquanto ocupou cargos na diplomacia de seu país, deu relevo ao trabalho das mulheres bordadeiras de El Quisco, levando-as a expor no Museu de Belas Artes de Santiago e nas embaixadas europeias onde prestou serviços. Mas sua grande obra social, engatilhada pela ira poética que o dominou durante a Guerra Civil Espanhola, foi a proteção oferecida a mais de duas mil pessoas que fugiram da Espanha quando os republicanos perderam o controle do país para Franco. Naquela época, em 1939, mais de 500 mil espanhóis fugiram para a França, mas ali não encontraram ambiente ameno, pois os franceses também viviam seus problemas e temiam que a intensa migração lhes aumentasse as preocupação sociais. Trataram de instalar os espanhóis em campos de refugiados que, na realidade, não seriam muito diferentes dos campos de concentração mantidos pelos alemães na Segunda Guerra Mundial. As noticias da derrota dos republicanos e as condições deploráveis em que viviam na França chegaram ao conhecimento de Pablo Neruda, que se encontrava no Chile, após ter dirigido a campanha eleitoral de Pedro Aguirre Cerda, eleito para o próximo período presidencial. O poeta, que tinha sido cônsul em Barcelona e Madri e que cultivava uma intensa paixão pela Espanha, procurou o novo presidente da nação e narrou o drama dos espanhóis. O Chile acabara de passar também por um momento terrível, causado pelo terremoto de Chillán, onde pereceram mais de 30 mil pessoas. Necessitava-se, portanto, de mão de obra e uma possível migração dos refugiados poderia ser solução social para ambas as partes. Aguirre imediatamente nomeou Neruda como Cônsul Especial, encarregado da missão de levar os espanhóis para o Chile, especialmente os que tinham habilidades profissionais das quais o país necessitava. Pablo Neruda seguiu imediatamente para Paris, onde tratou de organizar, com apoio dos representantes diplomáticos chilenos e do Serviço de Evacuação de Refugiados Espanhóis do governo francês, toda a logística para o transporte até o Chile. Foi comprado, então, um velho barco chamado Winnipeg, um velho cargueiro da Companhia Francesa de Navegação que havia servido para transportar tropas na Primeira Guerra Mundial. O barco foi adequado para receber mais de duas mil pessoas e em seus porões foram instaladas liteiras para acomodar os passageiros, além dos refeitórios e outras instalações que lhes proporcionassem um mínimo de conforto para a longa travessia. Atividades foram programadas para aproveitar os quase trinta dias de viagem, principalmente aulas para as crianças, nas quais foram transmitidas informações sobre o novo país onde viveriam. Feita a seleção dos migrantes, eles foram reunidos no porto fluvial de Trompeloup, perto de Bordéus. Muitas famílias ali se reencontraram, após anos de separação. Neruda e sua então esposa, Delia del Carril, se encarregaram pessoalmente de receber e inscrever os passageiros. No dial 4 de agosto de 1939 o Winnipeg zarpou rumo a Valparaíso, com 2.365 passageiros a bordo. Um mês mais tarde, ou mais exatamente, em 2 de setembro, atracou no porto chileno. Como chegou à noite, somente na manhã seguinte os passageiros puderam desembarcar. Imagina-se com que emoção e ansiedade passaram todos aquela noite, enxergando as luzes da baía de Valparaíso.

1.Combate na frente de Aragón. A Guerra Civil espanhola ocorreu entre 18 de julho de 1936 e 1º de abril de 1939 e enfrentou o governo da República Espanhola com grupos militares e de direita que terminam liderados pelo general Francisco Franco.

1. Combate na frente de Aragón. A Guerra Civil espanhola ocorreu entre 18 de julho de 1936 e 1º de abril de 1939 e enfrentou o governo da República Espanhola com grupos militares e de direita que terminam liderados pelo general Francisco Franco.

2.Soldados franquistas escoltam um grupo de soldados republicanos. O fim da contenda marcou o inicio da repressão franquista. Cerca de 500 mil refugiados cruzaram a fronteira entre a França e a Espanha no inverno de 1939.

2. Soldados franquistas escoltam um grupo de soldados republicanos. O fim da contenda marcou o inicio da repressão franquista. Cerca de 500 mil refugiados cruzaram a fronteira entre a França e a Espanha no inverno de 1939.

3.Pablo Neruda no Chile. A situação dos exiliados preocupou desde o início o poeta chileno, que se converteria em Cônsul Especial para a Emigração Espanhola e que já havia sido cônsul em Barcelona e Madrí. (Foto: Fundação Pablo Neruda).

3. Pablo Neruda no Chile. A situação dos exiliados preocupou desde o início o poeta chileno, que se converteria em Cônsul Especial para a Emigração Espanhola e que já havia sido cônsul em Barcelona e Madrí. (Foto: Fundação Pablo Neruda).

4.Imagem do presidente do Chile naquele momento, Pedro Aguirre Cerda, na coberta do Winnipeg. O velho cargueiro francês foi o barco contratado por Pablo Neruda para transportar 2.365 exilados espanhóis ao Chile. O barco foi adaptado para abrigá-los. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

4. Imagem do presidente do Chile naquele momento, Pedro Aguirre Cerda, na coberta do Winnipeg. O velho cargueiro francês foi o barco contratado por Pablo Neruda para transportar 2.365 exilados espanhóis ao Chile. O barco foi adaptado para abrigá-los. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

5.Um grupo de crianças na coberta do Winnipeg. A travessia desde o porto de Trompeloup, cerca de Bordeaux (França) até Valparaíso durou um mês. Durante esse tempo foram organizadas aulas para as crianças que viajavam no barco. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

5. Um grupo de crianças na coberta do Winnipeg. A travessia desde o porto de Trompeloup, cerca de Bordeaux (França) até Valparaíso durou um mês. Durante esse tempo foram organizadas aulas para as crianças que viajavam no barco. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

6.Vários homens desembarcam do Winnipeg em Valparaíso, Chile. No dia 3 de setembro de 1939 o barco chega às costas do território chileno. Todos os passageiros viajaram com um único passaporte coletivo. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

6. Vários homens desembarcam do Winnipeg em Valparaíso, Chile. No dia 3 de setembro de 1939 o barco chega às costas do território chileno. Todos os passageiros viajaram com um único passaporte coletivo. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

7.Grupo de mulheres que viajaram no Winnipeg. Naquele momento, Chile necessitava de mão de obra e a maioria dos passageiros do Winnipeg, por pedido expresso do presidente Aguirre Cerda, eram trabalhadores especializados, não intelectuais. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

7. Grupo de mulheres que viajaram no Winnipeg. Naquele momento, Chile necessitava de mão de obra e a maioria dos passageiros do Winnipeg, por pedido expresso do presidente Aguirre Cerda, eram trabalhadores especializados, não intelectuais. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).

8.Um homem alimenta uma criança recém desembarcada. Muitos dos passageiros eram crianças. A maioria delas começou uma vida nova no Chile e nunca voltaram a viver na Espanha. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile).
8. Um homem alimenta uma criança recém desembarcada. Muitos dos passageiros eram crianças. A maioria delas começou uma vida nova no Chile e nunca voltaram a viver na Espanha. (Foto: Biblioteca Nacional do Chile). Imagens extraídas de BBC Mundo – La aventura del Winnipeg en imágenes 

Na manhã de 3 de setembro de 1939 os refugiados espanhóis do barco de Na manhã de 3 de setembro de 1939 os refugiados espanhóis do barco de Neruda desembarcaram no Chile. Mais tarde, um deles recordava: “As pessoas nos atiravam rosas e nos davam as boas-vindas. Nós imaginávamos que aquilo era impossível. Na estação de Santiago se calcula que havia 70 mil pessoas à nossa espera. Isso é algo que jamais a gente esquece”.. Cartaz_winnipegSetenta anos mais tarde, em 2009, os refugiados remanescentes e descendentes dos que viajaram no  Winnipeg fizeram várias homenagens ao poeta que os resgatou da miséria em que viviam, às portas da Segunda Guerra Mundial, que mais tristezas causaria à Europa. Foi feita uma cerimônia no Palácio de La Moneda e alguns refugiados ainda vivos foram a Isla Negra para depositar terra espanhola no túmulo de Neruda e Matilde. Dessa época final da Guerra Civil Espanhola, Neruda também fez, como Picasso com o mural “Guernica”, a sua epopéia poética, denominada “España em el Corazón”. São 23 poemas, escritos depois que Neruda deixou a Espanha, mas editados em circunstâncias insólitas na frente de batalha, como contamos adiante. (Cleto de Assis)

Descobri, por acaso, em uma estação de metrô de Santiago, um busto de Neruda, ali colocada em homenagem ao seu esforço para transportar os refugiados espanhóis.

Descobri, por acaso, em uma estação de metrô de Santiago, um busto de Neruda, ali colocado em homenagem a seu esforço para transportar os refugiados espanhóis.

Do livro, o Banco da Poesia extraiu dois poemas – Explico algunas cosas e Generales traidores.

Explico algunas cosas 

Preguntaréis: Y dónde están las lilas? Y la metafísica cubierta de amapolas? Y la lluvia que a menudo golpeaba sus palabras llenándolas de agujeros y pájaros? Os voy a contar todo lo que me pasa. Yo vivía en un barrio de Madrid, con campanas, con relojes, con árboles. Desde allí se veía el rostro seco de Castilla como un océano de cuero. Mi casa era llamada la casa de las flores, porque por todas partes estallaban geranios: era una bella casa con perros y chiquillos. Raúl, te acuerdas? Te acuerdas, Rafael? Federico, te acuerdas debajo de la tierra, te acuerdas de mi casa con balcones en donde la luz de junio ahogaba flores en tu boca? Hermano, hermano! Todo eran grandes voces, sal de mercaderías, aglomeraciones de pan palpitante, mercados de mi barrio de Argüelles con su estatua como un tintero pálido entre las merluzas: el aceite llegaba a las cucharas, un profundo latido de pies y manos llenaba las calles, metros, litros, esencia aguda de la vida, pescados hacinados, contextura de techos con sol frío en el cual la flecha se fatiga, delirante marfil fino de las patatas, tomates repetidos hasta el mar. Y una mañana todo estaba ardiendo, y una mañana las hogueras salían de la tierra devorando seres, y desde entonces fuego, pólvora desde entonces, y desde entonces sangre. Bandidos con aviones y con moros, bandidos con sortijas y duquesas, bandidos con frailes negros bendiciendo venían por el cielo a matar niños, y por las calles la sangre de los niños corría simplemente, como sangre de niños. Chacales que el chacal rechazaría, piedras que el cardo seco mordería escupiendo, víboras que las víboras odiaran! Frente a vosotros he visto la sangre de España levantarse para ahogaros en una sola ola de orgullo y de cuchillos!

Guernica - Painel de Pablo Picasso

Guernica – Painel de Pablo Picasso

Explico algumas coisas 

Perguntareis: E onde estão os lilases? E a metafísica coberta de amapolas? E a chuva que a miúdo golpeava suas palavras enchendo-as de buracos e pássaros? Vos contarei tudo o que me passa. Eu vivia em um bairro de Madrí, com sinos, com relógios, com árvores. Dali se via o rosto seco de Castilla como un oceano de couro. Minha casa era chamada a casa das flores, porque por todas as partes estalavam gerânios: era uma bela casa com cachorros e crianças. Raúl, recordas? Recordas, Rafael? Federico, recordas debaixo da terra, recordas de minha casa com balcões onde a luz de junho afogava flores em tua boca? Irmão, irmão! Tudo eram grandes vozes, sal de mercadorias, aglomerações de pão palpitante, mercados de meu bairro de Argüelles com sua estátua como um tinteiro pálido entre as merluzas: o óleo chegava às colheres, um profundo pulsar de pés e mãos enchia as ruas, metros, litros, essência aguda da vida, peixes amontoados, contextura de tetos com sol frio no qual a flecha se fadiga, delirante marfim fino das batatas, tomates repetidos até o mar. E em uma manhã tudo estava ardendo, e em uma manhã as fogueiras saíam da terra devorando seres, e desde então fogo, pólvora desde então, e desde então sangue. Bandidos com aviões e com mouros, bandidos com anéis e duquesas, bandidos com frades negros bendizendo vinham pelo céu a matar crianças, e pelas ruas o sangue das crianças corria simplesmente, como sangue de crianças. Chacais que o chacal rejeitaria, pedras que o cardo seco morderia cuspindo, víboras que as víboras odiaram! Em frente a vós eu vi o sangue de Espanha levantar-se para afogar-vos em uma só onda de orgulho e de facões!

Generales traidores

Generales traidores: mirad mi casa muerta, mirad España rota: pero de cada casa muerta sale metal ardiendo en vez de flores, pero de cada hueco de España sale España, pero de cada niño muerto sale un fusil con ojos, pero de cada crimen nacen balas que os hallarán un día el sitio del corazón. Preguntaréis por qué su poesía no nos habla del sueño, de las hojas, de los grandes volcanes de su país natal? Venid a ver la sangre por las calles, venid a ver la sangre por las calles, venid a ver la sangre por las calles!

Retrao do General Francisco Franco, comemorando o fim da Guerra Civil Espanhol

Retrato do General Francisco Franco, comemorando o fim da Guerra Civil Espanhol

Generais traidores

Generais traidores: olhai minha casa morta, olhai Espanha rota: mas de cada casa morta sai metal ardendo em vez de flores, mas de cada buraco de Espanha sai Espanha, mas de cada criança morta sai um fuzil com olhos, mas de cada crime nascem balas que vos acharão um dia o lugar do coração. Perguntareis por quê sua poesia não nos fala do sonho, das folhas, dos grandes vulcões de seu país natal? Vinde ver o sangue pelas ruas, vinde ver o sangue pelas ruas, vinde ver o sangue pelas ruas!

Versões em Português de Cleto de Assis
 

MEU LIVRO SOBRE ESPANHA

Pablo Neruda

Passou o tempo. A guerra começava a perder-se. Os poetas acompanharam o povo espanhol em sua luta. Federico já havia sido assassinado em Granada. Miguel Hernández, de pastor de cabras havia se transformado em verbo militante. Com uniforme de soldado recitava seus versos na primeira linha de fogo.

Manuel Altolaguirre seguia com suas máquinas de impressão. Instalou uma em plena frente do Este, perto de Gerona, em um velho monastério. Ali foi impresso, de maneira singular, mui livro “España en el corazón”. Creio que poucos livros, na história estranha de tantos livros, teve tão curiosa gestação e destino.

Os soldados da frente aprenderão a compor os tipos de imprensa. Mas então faltou o papel. Encontraram um velho moinho, e ali decidiram fabricá-lo. Estranha mistura a que se elaborou, entre as bombas que caíam, em meio da batalha. De tudo levavam ao moinho, desde uma bandeira do inimigo até a túnica ensanguentada de um soldado morto. Apesar dos insólitos materiais e da total inexperiência dos fabricantes, o papel ficou muito bonito. Os poucos exemplares que desse livro se conservam assombram pela tipografia e pelos cadernos de misteriosa manufatura. Anos depois vi um exemplar desta edição em Washington, na Biblioteca do Congresso, colocado em uma vitrine como um dos livros mais raros de nosso tempo.

Capa da edição original de España en el corazón, da qual existem apenas seis exemplares.

Capa da edição original de España en el corazón, da qual existem apenas seis exemplares.

Tão logo foi impresso e encadernado meu livro, se precipitou a derrota da República. Centenas de milhares de homens fugitivos encheram as estradas que saíam da Espanha. Era o êxodo dos espanhóis, o acontecimento mais doloroso na história da Espanha.

Com essas filas que marchavam rumo ao desterro iam os sobreviventes do exército do Este, entre eles Manuel Altolaguirre e os soldados que fizeram o papel e imprimiram “España en el corazón”. Meu livro era o orgulho desses homens que haviam trabalhado minha poesia em um desafio à morte. Soube que muitos haviam preferido carregar sacos com os exemplares impressos em lugar de seus próprios alimentos e roupas. Com os sacos ao ombro empreenderam a longa marcha rumo à França.

A imensa coluna que caminhava rumo ao desterro foi bombardeada centenas de vezes. Caíram muitos soldados e se esparramaram os livros na estrada. Outros continuara a inacabável fuga. Além da fronteira trataram brutalmente os espanhóis que chegavam ao exilio. Em uma fogueira foram imolados os últimos exemplares daquele livro ardente que nasceu e morreu em plena batalha.

Pablo Neruda, Confieso que he vivido. Memorias, ― España en el corazón, 1974. 

Finalmente, a primeira casa do poeta

Em La Chascona, o primeiro encontro com Neruda

Os visitantes se revesam, pois os pequenos ambientes da casa construída por Neruda para sua terceira mulher e seu grande amor, Matilde Urrutia, não permitem o trânsito de muita gente. A casa não apresenta aspectos faustosos, mas assimilou os gostos pessoais do poeta, que imprimiu detalhes fascinantes no projeto original do arquiteto catalão Germán Rodriguez Arias. O terreno, descoberto pelos dois amantes que ainda se escondiam dos olhares da sociedade (Neruda era casado com Delia del Carril quando conheceu Matilde e por ela se apaixonou) se encontra em uma das ladeiras do Cerro San Cristóbal, no bairro Bella Vista, em Santiago. O arquiteto propôs que a casa fosse voltada para o sol, mas o poeta queria uma vista para a cordilheira, o que resultou em mudança da orientação da construção. Foram tantas as intervenções de Neruda que, ao final, Germán Rodriguez reconheceu que o projeto era mais criação de Neruda do que dele. Cômodos pequenos: “para viver um grande amor”, como diria Vinicius de Moraes, amigo do poeta. Vários ambientes separados, acrescentados ao correr do tempo e ganhando espaços na montanha. Por isso, várias escadas, de um plano a outro. Até passagem secreta, simulando um armário, que conduzia à parte íntima da casa, do escritório e dos aposentos de Matilde. Um ninho de paixões astuciosamente protegido.

Visão da entrada pincipal, com as várias construções que compõem a residência.No alto, a sala envidraçada onde o poeta foi velado, em 23 de setembro de 1973

Visão da entrada principal, com as várias construções que compõem a residência.No alto, a sala envidraçada onde o poeta foi velado, em 23 de setembro de 1973

A primeira explicação é sobre o nome da casa, batizada também em homenagem a Matilde e seus cabelos ruivos. Era assim que ele a chamava, carinhosamente. A própria Matilde recordava que, quando caminhavam pelo bairro chamado Bella Vista, encontraram um terreno à venda, no início da encosta do cerro San Cristóbal. Era coberto de sarças e tinha um declive bastante pronunciado. “Estávamos como que enfeitiçados por um ruído de água, era una verdadeira catarata a que vinha pelo canal, no topo do lugar.” Tomados pelo entusiasmo, decidiram comprá-lo. Tempos depois, em seu poema “La Chascona”, del libro La barcarola, Neruda evocaria a “água que corre escrevendo em seu idioma”, e as sarças “que guardavam o lugar com sua sanguinária ramagem”.  Talvez a ondulada cabeleira ruiva de Matilde tenha sugerido a metáfora da água ondulante e das sarças vermelhas.

Em “Cem Sonetos de Amor” Neruda canta aos cabelos de Matilde, no Soneto XIV:

Me falta tiempo para celebrar tus cabellos.
Uno por uno debo contarlos y alabarlos:
otros amantes quieren vivir con ciertos ojos,
yo sólo quiero ser tu peluquero.

En Italia te bautizaron Medusa
por la encrespada y alta luz de tu cabellera.
Yo te llamo chascona mía y enmarañada:
mi corazón conoce las puertas de tu pelo.

Cuando tú te extravíes en tus propios cabellos,
no me olvides, acuérdate que te amo,
no me dejes perdido ir sin tu cabellera.

por el mundo sombrío de todos los caminos
que sólo tiene sombra, transitorios dolores,
hasta que el sol sube a la torre de tu pelo.

 ***

Falta-me tempo para celebrar teus cabelos. 
Um por um devo contá-los e louvá-los: 
outros amantes querem viver com certos olhos, 
eu quero somente ser teu cabeleireiro. 

Na Itália te batizaram de Medusa 
pela encrespada e alta luz de tua cabeleira. 
Eu te chamo chascona minha e emaranhada: 
meu coração conhece as portas de teu pelo. 

Quando tu te extravies em teus próprios cabelos, 
não me esqueças, lembra que te amo, 
não me deixes perdido ir sem tua cabeleira 

pelo mundo sombrio de todos os caminhos 
que só tem sombra, transitórias dores, 
até que o sol sobe à torre de teu pelo.

Versão ao Português de Cleto de Assis
Fragmento do Soneto XIV, de "Cem Sonetos de Amor", autografado pelo poeta

Fragmento do Soneto XIV, de “Cem Sonetos de Amor”, autografado pelo poeta

O pintor Diego Rivera, amigo do poeta, que conhecia seu amor secreto, fez um retrato de Matilde, com duas cabeças, que simbolizaria a dualidade dessa união, na fase que Neruda tramitava sua separação com Delia del Carril. Conta-se que a casa deveria denominar-se de Medusa, no início, em alusão aos cabelos encaracolados de Matilde, como sugere o soneto acima, mas Pablo Neruda decidiu batizá-la definitivamente de La Chascona.

Retrato de Matilde - pintura de Diego Rivera. No lado direito,  o artista sugeriu o perfil de Neruda, formado pelos cabelos ondulados

Retrato de Matilde – pintura de Diego Rivera. No lado direito, o artista sugeriu o perfil de Neruda, oculto nos cabelos ondulados

Com muita emoção, visitei cada canto da casa e dos terrenos que a compõem. E notei que, de certa forma, houve uma coincidência com o texto postado anteriormente, no qual anunciei a viagem ao Chile. Na montagem da ilustração da Ode ao Vinho, coloquei cachos de uva à frente de uma das casas-museu. Em La Chascona, encontrei uma parreira com uvas ainda verdes, a formar um pequeno portal no início de uma das escadas, como a demonstrar que esse símbolo que povoou a poesia nerudiana renasce todos os anos para nos provar que o poeta ainda está por ali, à espera dos amigos que ele tanto gostava de receber.

Encontrei-me com Neruda por meio de suas uvas ainda verdes. Alusão ao menino perdido em Parral (Parreiral, em Português) e recuperado na construção das casas, como se fossem brinquedos? (Foto de Teresas Vargas Sierra)

Encontrei-me com Neruda por meio de suas uvas ainda verdes. Alusão ao menino perdido em Parral (Parreiral, em Português) e recuperado na construção das casas, como se fossem brinquedos? (Foto de Teresas Vargas Sierra)

Entretanto, o encantamento que o motivou a construir La Chascona, em Santiago, La Sebastiana, em Valparaíso, e Isla Negra, em El Quisco, como se fossem brinquedos de infância, como ele mesmo reconheceria, foi substituído, na casa santiaguina, por duas tragédias. A primeira, sua semidestruição, com janelas quebradas por vândalos e inundação de parte da construção, causada pelo desvio do canal que antes regava a propriedade. A segunda, em tempo coincidente, foi a morte do poeta, doze dias após do golpe de estado liderado pelo general Augusto Pinochet. Após saber da rebelião militar e da terrível morte imposta pelos militares a Victor Jara, Neruda, que se encontrava em Isla Negra, decidiu abandonar o Chile e ir para o México, onde tentaria organizar um governo de exílio. Mas sua saúde não estava em ordem e por isso a família resolveu fazer exames em um hospital de Santiago, adiando por um dia a viagem já programada, em um avião que lhe mandara o governo mexicano. No dia seguinte, 23 de setembro de 1973 veio a falecer, segundo os médicos por problemas cardíacos. Sua morte até hoje é discutida, pois seu assessor e motorista, que o acompanhou até o hospital, levantou dúvidas, levado muita gente a acreditar que Neruda teria sido envenenado. Recentemente seus restos mortais foram exumados e três laboratórios de diferentes países fizeram análises. Nada foi encontrado que corroborasse a tese de morte causada por terceiros. Somente sinais de medicamentos utilizados para o tratamento da enfermidade – um câncer de próstata – que assaltava Neruda, na época.

Velório de Neruda, foto do jornalista brasileiro Evandro Teixeira (Jornal do Brasil), que fez a cobertura de sua morte

Velório de Neruda, foto do jornalista brasileiro Evandro Teixeira (Jornal do Brasil), que fez a cobertura de sua morte

A história registrou a coragem de Matilde, que decidiu velar o corpo de Neruda, em companhia de alguns amigos, em La Chascona. Depois ela passou a recuperar o local, pacientemente, e ali viveu até sua morte, em 5 de janeiro de 1985. Ontem, portanto, completaram-se 29 anos de seu falecimento, após o que a casa foi transformada em museu, assim como as outras duas. Porém, Matilde tinha outra missão a cumprir: levar o corpo de Pablo Neruda para Isla Negra, conforme ele havia determinado, poeticamente:

Compañeros, enterradme en Isla Negra, / frente al mar que conozco, a cada área rugosa de piedras/ y de olas que mis ojos perdidos/ no volverán a ver…” (Companheiros, enterrai-me em Isla Negra, / frente ao mar que conheço, a cada área rugosa de pedras/ e de ondas que meus olhos perdidos/ não voltarão a ver…).

Não o conseguiu em vida, mas em dezembro de 1992 finalmente seu desejo foi cumprido e ele foi enterrado em sua casa predileta ao lado da amada Matilde, frente ao Oceano Pacífico, que “saía do mapa. Não havia onde colocá-lo. Era tão grande, desordenado e azul que não cabia em nenhuma parte. Por isso o deixaram em frente a minha janela”.

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Há um texto riquíssimo que conta, em detalhes, como foi velado o corpo do poeta, em La Chascona, escrito por uma amiga que tudo viu. Como é longo, deixo o endereço eletrônico para quem quiser conhece-lo. http://www.archivochile.com/Homenajes/neruda/sobre_neruda/homenajepneruda0031.pdf

Por que NERUDA?

Ele nasceu com um nome mais extenso: Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto. Mas seu pai devia ter outros planos para seu futuro e não admitiria um poeta como filho. Aos 17 anos, já tocado pelas musas da Poesia, ele criou o pseudônimo definitivo, com o qual ascenderia à glória da literatura mundial. Em sua casa santiaguina existe uma placa de mármore, colocada no ano de 2000, na qual se oferece uma versão sobre a escolha do sobrenome, que teria sido uma homenagem ao poeta tcheco Jan Neruda (1834-1891). Dizem que o poeta chileno jamais desmentiu e também nunca confirmou essa versão. Alguns até a consideram improvável, porque o jovem Ricardo Neftalí, quando decidiu adotar o nome literário, vivia em uma época em que seria quase impossível haver livros de Jan Neruda traduzidos.

Placa da versão tcheca sobre a adoção do nome Neruda. O poeta não confirmou, nem desmentiu

Placa da versão tcheca sobre a adoção do nome Neruda. O poeta não confirmou, nem desmentiu

A versão mais verossímil diz ter sido a leitura de um livro de Arthur Conan Doyle, Um estudo em vermelho, que lhe levou a conhecer uma violinista moraviana, incluída nas aventuras de Sherlock Holmes, cujo nome de casada era Wilma Norman-Neruda, nascida Wilhelmine Maria Franziska Neruda ou Guillermina Maria Francisca Neruda (1838-1911). No livro, o detetive inglês, também apaixonado por violino, informa que iria escutar um concerto da famosa violinista. Daí teria nascido a escolha do nome do poeta.

E o prêmio não foi para...

Publicaram os jornais de Santiago do último sábado (04.jan.14), 50 anos depois de o poeta Pablo Neruda ter sido indicado ao Prêmio Nobel de Literatura (galardão que conquistaria mais tarde, em 1971), que, naquele ano de 1963, ele teria sido preterido em razão de sua militância junto ao Partido Comunista. Segundo as notícias, papéis secretos do Nobel foram finalmente liberados, dando conta que Neruda, indicado ao prêmio com mais quatro escritores (o irlandês Samuel Beckett, o japonês Yukio Mishima, o dinamarquês Aksel Sandemose, o britânico-estadunidense W. H. Auden e o grego Giorgos Seferis), teve levantada contra ele a tese de que “a tendência comunista, cada vez mais dominante em sua poesia” não seria “consistente com o propósito do Prêmio Nobel”. Na análise conclusiva do Comitê do Nobel, quando o poeta chileno já figurava entre um trio finalista, foi escolhido o grego Giorgios Seferis. A notícia cita como fonte principal o presidente do Comitê do Nobel e secretário permanente da academia naquele ano, Anders Osterling.

A informação e sua justificativa, no entanto, não coincidem com o objetivo do prêmio criado pelo sueco Alfred Nobel, que é distinguir personalidades importantes em diversas áreas, independentemente de critérios como a nacionalidade, a raça, a religião e a ideologia. Se cometido o erro, oito anos depois ele foi corrigido, com a merecida entrega do Nobel de Literatura de 1971 a Neruda.

Indicado em 1963, Neruda receberia o Prêmio Nobel de Literatura 13 anos depois

Indicado em 1963, Neruda receberia o Prêmio Nobel de Literatura 13 anos depois

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Autorretrato

Pablo Neruda

Por mi parte,
soy o creo ser duro de nariz,
mínimo de ojos,
escaso de pelos en la cabeza,
creciente de abdomen,
largo de piernas,
ancho de suelas,
amarillo de tez,
generoso de amores,
imposible de cálculos,
confuso de palabras,
tierno de manos,
lento de andar,
inoxidable de corazón,
aficionado a las estrellas, mareas, maremotos,
administrador de escarabajos,
caminante de arenas,
torpe de instituciones,
chileno a perpetuidad,
amigo de mis amigos,
mudo de enemigos,
entrometido entre pájaros,
mal educado en casa,
tímido en los salones,
arrepentido sin objeto,
horrendo administrador,
navegante de boca,
yerbatero de la tinta,
discreto entre los animales,
afortunado de nubarrones,
investigador en mercados,
oscuro en las bibliotecas,
melancólico en las cordilleras,
incansable en los bosques,
lentisimo de contestaciones,
ocurrente años después,
vulgar durante todo el año,
resplandeciente con mi cuaderno,
monumental de apetito,
tigre para dormir,
sosegado en la alegría,
inspector del cielo nocturno,
trabajador invisible,
desordenado, persistente,
valiente por necesidad,
cobarde sin pecado,
soñoliento de vocación,
amable de mujeres,
activo por padecimiento,
poeta por maldición y tonto de capirote.

Poster exposto em um dos jardins de La Chascona (foto de C. de Assis)

Poster exposto em um dos jardins de La Chascona (foto de C. de Assis)

Autorretrato

De minha parte,
sou ou creio ser duro de nariz,
mínimo de olhos,
escasso de pelos na cabeça,
crescente de abdômen,
comprido de pernas,
largo de solas,
amarelo de tez,
generoso de amores,
impossível de cálculos,
confuso de palavras,
terno de mãos,
lento de andar,
inoxidável de coração,
aficionado às estrelas, marés, maremotos,
administrador de escaravelhos,
caminhante de areias,
torpe de instituições,
perpetuamente chileno,
amigo de meus amigos,
mudo de inimigos,
intrometido entre pássaros,
mal educado em casa,
tímido nos salões,
arrependido sem objeto,
horrendo administrador,
navegante de boca,
ervateiro da tinta,
discreto entre os animais,
afortunado nos nuvarrões,
investigador em mercados,
obscuro nas bibliotecas,
melancólico nas cordilheiras,
incansável nos bosques,
lentíssimo de contestações,
ocorrente anos depois,
vulgar durante todo o ano,
resplandecente com meu caderno,
monumental de apetite,
tigre para dormir,
sossegado na alegria,
inspetor do céu noturno,
trabalhador invisível,
desordenado, persistente,
valente por necessidade,
covarde sem pecado,
sonolento por vocação,
amável com mulheres,
ativo por padecimento,
poeta por maldição e bobo com chapéu de burro.

versão ao Português de Cleto de Assis

Rumo ao berço de Neruda

Estou tomando o rumo do Sul, em direção à pátria de Pablo Neruda. Pretendo descansar, divertir-me, degustar os sabores do Chile e conhecer a nova poesia chilena. Vou percorrer o triângulo de Neruda, formado pelos vértices de Santiago, Valparaiso e El Quisco, onde se encontram as três casas do poeta – La Chascona, La Sebastiana e Isla Negra, respectivamente.

Sobre esta, considerada a principal casa-museu de Neruda, o poeta deixou escrito: “En mi casa he reunido juguetes pequeños y grandes, sin los cuales no podría vivir. Son mis propios juguetes. Los he juntado a través de toda mi vida con el científico propósito de entretenerme solo. El niño que no juega no es niño, pero el hombre que no juega perdió, para siempre al niño que vivía en él y que le hará mucha falta. He edificado mi casa también como un juguete y juego en ella de la mañana a la noche”. (Em minha casa reuni brinquedos pequenos e grandes, sem os quais não poderia viver. São meus próprios brinquedos. Juntei-os através de toda minha vida com o científico propósito de entreter-me sozinho. O menino que não brinca não é menino, porém o homem que não brinca perdeu, para sempre, o menino que vivia nele e que lhe fará muita falta. Construí minha casa também como um brinquedo e brinco nela da manhã à noite.)

Do Chile enviarei notícias poéticas. Com a Ode ao Vinho, de Neruda, ergo um brinde pela paz maior que odos desejamos para o ano novo que se iniciará dentro de algumas horas.

Oda_al_vino

ODA AL VINO

Pablo Neruda

Vino color de día
vino color de noche
vino con pies púrpura
o sangre de topacio
vino,
estrelloado hijo
de la tierra
vino, liso
como una espada de oro,
suave
como un desordenado terciopelo
vino encaracolado
y suspendido,
amoroso, marino
nunca has cabido en una copa,
en un canto, en un hombre,
coral, gregario eres,
y cuando menos mutuo.

El vino
mueve la primavera
crece como una planta de alegría
caen muros,
peñascos,
se cierran los abismos,
nace el canto.
Oh tú, jarra de vino, en el desierto
con la saborosa que amo,
dijo el viejo poeta.
Que el cántaro del vino
al peso del amor sume su beso.

Amo sobre una mesa,
cuando se habla,
la luz de una botella
de inteligente vino.
Que lo beban,
que recuerden en cada
gota de oro
o copa de topacio
o cuchara de púrpura
que trabajó el otoño
hasta llenar de vino las vasijas
y aprenda el hombre obscuro,
en el ceremonial de su negocio,
a recordar la tierra y sus deberes,
a propagar el cántico del fruto.

ODE AO VINHO

Pablo Neruda

Vinho cor do dia
vinho cor da noite
vinho com pés púrpura
o sangue de topázio
vinho,
estrelado filho
da terra
vinho, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um desordenado veludo
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso, marinho
nunca coubeste em um copo,
em um canto, em um homem,
coral, gregário és,
e quando menos mútuo.

O vinho
move a primavera
cresce como uma planta de alegria
caem muros,
penhascos,
fecham-se os abismos,
nasce o canto.
Ó tu, jarra de vinho, no deserto
com a saborosa que amo,
disse o velho poeta.
Que o cântaro do vinho
ao peso do amor some seu beijo.

Amo sobre uma mesa,
quando se fala,
à luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou copo de topázio
ou colher de púrpura
que trabalhou o outono
até encher de vinho as vasilhas
e aprenda o homem obscuro,
no cerimonial de seu negócio,
a recordar a terra e seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.

versão ao Português de Cleto de Assis