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Virginia revisitada

Mais sentimentos de Virginia Victorino

Para Eliane de Almeida Santos, Paulo Pereira e Ruda

Há quase quatro anos publiquei três sonetos de Virginia Victorino, poeta portuguesa (1895-1967). Recebo, de vez em quando, palavras de louvor a ela, principalmente de leitores portugueses. Vamos revisitá-la?

virgíniavitorino_Amor

O amor! O amor! Ninguém o definiu.
É sempre o mesmo. Acaba onde começa.
Quem mais o sente menos o confessa,
e quem melhor o diz nunca o sentiu.

Conhece a todos mas ninguém o viu.
Se o procuramos, foge-nos depressa.
Se o desprezamos, todo se interessa,
só está presente quando já fugiu.

É homem feito sendo criança.
E quanto mais se quer menos se alcança,
ninguém o encontra, e em toda parte mora.

Mata a quem dele vive. É sempre assim.
Só principia quando chega o fim,
morreu há muito e nasce a cada hora.

virgíniavitorino_Orgulho

És orgulhoso  altivo. Também eu.
Nem sei bem qual de nós o será mais,
as nossas forças são rivais:
se é grande o teu poder, maior é o meu.

Tão alto anda este orgulho! Toca o céu.
Nem eu quebro nem tu. Somos iguais.
Cremo-nos inimigos. Como tais
nenhum de nós ainda se rendeu.

Ontem, quando nos vimos frente a frente,
fingiste bem esse ar indiferente…
e eu, desdenhosa, ri, sem descorar…

Mas que lágrimas devo àquele riso!
E quanto, quanto esforço foi preciso
para, na tua frente, não chorar!

virgíniavitorino_Mágoa

Eu que cheguei a ter essa alegria
de junto ao meu possuir teu coração!
Eu que julgava eterna a duração
do voluptuoso amor que nos unia,

sou ‒  apagada a última ilusão,
morto o deslumbramento em que vivia,
‒  um cego que ao lembrar a luz do dia
sente mais negra ainda a escuridão.

Tu me deste a ventura mais perfeita,
perdi-a e dei-te a chama insatisfeita
dessa imensa paixão com que te quis…

Hoje, o que eu sinto, inútil, revoltada,
não é mágoa de ser desgraçada,
‒  é pena de  ter sido tão feliz.

Virgínia Victorino, (e)terna voz da poesia portuguesa do Séc. XX

A situação das mulheres em Portugal, na primeira metade do Século XX, não era nada confortável, embora a Europa vivesse momentos de tensões sociais profundas, com mudanças sensíveis na vida social e cultural. Surgiam, no Velho Continente, e se espraiavam pelo mundo, novas tecnologias artísticas e reformulações extremas de conceitos estéticos. Portugal também era influenciado por esses movimentos, mas obedecia a padrões internos bastante conformados pela vida política, principalmente nos anos do governo de Antonio de Oliveira Salazar (1889-1970; presidente do Conselho de Ministros durante quase todo o Estado Novo, de 1933 até sua morte).

No período salazarista, regido por preceitos religisos e soais que realçavam o trinômio “Deus, Pátria e Família”, imperava a tendência de considerar a mulher como ser social subsidiário do homem, inclusive afastando-a do trabalho, reservado prioritariamente aos profissionais masculinos, embora a mulher ocupasse, largamente, funções de trabalho mais árduo em vários segmentos sociais, do rural ao urbano. Mas, apesar de certo isolamento de Portugal provocado pela forte política nacionalsita da época, surgiram muitos valores altos na cultura portuguesa, a exemplo de Fernando Pessoa, a máxima expressão da poesia portuguesa de então.

Às mulheres com maior sensibilidade artística cabia lutar contra os preconceitos e impor seu trabalho a duras penas, como ocorreu com Florbela Espanca e Virgínia Victorino, poetas contemporâneas, mas pouco saudadas pela sociedade daquela época. Falaremos de Florbela mais tarde. Hoje vamos ver um pouco da vida e da obra de Virgínia Victorino, poeta ainda pouco conhecida no Brasil.

Virgínia Villa-Nova de Sousa Vitorino nasceu em Alcobaça, a 13 de Agosto de 1895 e morreu en Lisboa, em1967. Foi poeta e dramaturga. Estudou Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa e frequentou o Conservatório Nacional de Música, onde estudou piano, canto, harmonia e italiano. Professora de liceu, trabalhou também na Emissora Nacional, onde dirigia radioteatro. Autora de três livros de poesia e de seis peças de teatro, todas representadas pela Companhia de Amélia Rey Colaço, Virgínia Vitorino foi agraciada pelo governo português com o grau de Oficial da Ordem de Cristo, em 1929, e com a Comenda da Ordem de Santiago, em 1932.

Do governo espanhol recebeu a Cruz de D. Afonso XII, em 1930.  Almada Negreiros foi
autor de algumas das capas dos seus livros. Recebeu o Prêmio Gil Vicente do Secretariado Nacional de Informação pela peça Camaradas. A sua obra Namorados (1918) foi editada catorze vezes. Teve vasta colaboração em jornais e revistas portuguesas e brasileiras. Esteve no Brasil a convite de Getúlio Vargas, por volta de 1937.

Medo


Ouve o grande silêncio destas horas!
Há quanto tempo não dizemos nada…
Tens no sorriso uma expressão magoada,
tens lágrimas nos olhos, e não choras!

As tuas mãos nas minhas mãos demoras
numa eloqüência muda, apaixonada…
Se o meu sombrio olhar de amargurada
procura o teu, sucumbes e descoras…

O momento mais triste de uma vida
é o momento fatal da despedida,
— Vê como o medo cresce em mim, latente…

Que assustadora, enorme sombra escura!
Eis afinal, amor, toda a tortura:
— vejo-te ainda, e já te sinto ausente!

Palavras

Seja alegria, seja mágoa, ciúme
Pena de amor, ou grito de revolta
Tudo a palavra humana em si resume
Tudo arrasta suspenso á sua volta!

Palavras
Céu e inferno!
Cinza e lume!
Mistério que a nossa alma traz envolta!
Umas, consolação!
Outras, queixume…
Todas correndo como o vento á solta!

Tudo as palavras dizem
A verdade, a mentira, a crueldade…
Mas afinal, o que perturba e espanta
É o drama das que nunca foram ditas
Das palavras pequenas e infinitas
Que morrem sufocadas na garganta!”

Renúncia


Fui nova, mas fui triste; só eu sei
como passou por mim a mocidade!
Cantar era o dever da minha idade…
Devia ter cantado, e não cantei!

Fui bela. Fui amada. E desprezei…
Não quiz beber o filtro da ansiedade.
Amar era o destino, a claridade…
Devia ter amado, e não amei!

Ai de mim! Nem saudades, nem desejos;
nem cinzas mortas, nem calor de beijos…
— Eu nada soube, nada quis prender!

E o que me resta? Uma amargura infinda:
ver que é, para morrer, tão cedo ainda,
e que é tão tarde já para viver!

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Ilustrações: C. de A.

Saramar: dois poemas recentes

Carnaval

Carnaval
Passeio entre felizes foliões.
A festa despencou pelas ruas, chuva de confetes.
Máscaras não mais se usam,
só a da alegria, em todas as faces, pregada.
Suor colorido de músicas, um choque,
um tremor nessas ruas molhadas.
Beijos escorregam por todos os lados,
lascivos,
de línguas, bocas, pernas.
Procuro rostos, olhos… nada.
É carnaval.
Também fui,
trocando ilusões e lençóis engomados
por tiras coloridas e seu brilho de enganar.
Árvore,
de outra pele me vesti
e a primavera confunde as estações e os sons.

O que te levou de mim?

É medo, é pejo
ou acabou o desejo
do ermo noturno
dos beijos?

É medo, é dor
que entranha nos eixos
do dia
ou foi bom e adeus?

É medo da dor,
prima-irmã desse anseio
de tomar a pele do outro
que chamamos amor?

É medo?

Conta nova para Erly Welton Ricci

Nosso Medo

a-tempestade-munch

Não usa sapatos novos
Nem assoma na janela
O uivo de sete paredes
Nosso medo

Ruas mal-iluminadas
Pedra assentada no ombro
O que espreita na lida
O nosso medo

Signo de nenhuma estrela
Crucificada no erro
Em vestes corruptíveis
Nosso medo

Fala pelos cotovelos
Entre ossos e lama e aço
Cerra olhos e punhos
Nosso medo

Não tem a morte no rosto
Não oferece a outra face
Ferro e fogo do verso
O nosso medo

Cálice de vinho e veneno
Inverno de mitos sangrentos
Desperta mil vezes em cena
O nosso medo

É uma montanha de pedra
Ciência e deuses no Olimpo
Rosário de cal e areia
Nosso medo

Punhado de sal na têmpora
O dia que ainda não veio
Barco na névoa espessa
Nosso medo

Cova rasa do julgamento
A linha de qual horizonte
Minúcias de cal e areia
Nosso medo

São farpas e ferpas na unha
Estrada longa e estreita
Reza pra todos os santos
O nosso medo

Ferrugem no pó e nos pelos
O sangue de metal e fungos
A certeza de não sabermos
O nosso medo

Em doze motes de cera
Ferro de muros e cercas
Arame em torno do punho
O nosso medo

Erly Welton Ricci
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Ilustração:
A Tempestade (1893), de Edward Munch (1863-1944)
Óleo sobre tela
91,5 x 131 cm
Museu de Arte Moderna, Nova Iorque