Arquivo do dia: 4 de maio de 2009

A poesia de Chaplin

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Se vivo estivesse, Sir Charles Spencer Chaplin Jr. teria festejado seus 110 anos de idade no último dia  16 de abril. Ele nasceu na Inglaterra em 1889 e – é preciso dizer? – tornou-se conhecido como Charlie Chaplin, ou Carlito, ator, diretor, dançarino, roteirista e músico. E também poeta, pois deixou muita coisa bela e inteligente escrita, não só nas letras de suas músicas, como Limelght (Luzes da Ribalta) e Smile (Sorri – veja letra abaixo).
Recolhemos algumas frases-quase-poemas que ele espalhou pelo mundo todo, em seus filmes, em suas músicas e em um livro de memórias. Também segue um longo poema do nosso Carlos, o Drummond de Andrade, no qual ele canta ao homem do povo que se tornou um nobre da corte inglesa.

E terminamos com um poema cinematográfico de Charlie Chaplin, a cena antológica do discurso do filme “O Grande Ditador”.

Diizem alguns críticos que ele era tremendamente egocêntrico e tirano, mas sua obra apagou esses rastos de fealdade, se é que existiram.

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Não fique triste quando ninguém notar o que fez de bom. Afinal, o sol faz um enorme espetáculo ao nascer e, mesmo assim, a maioria de nós continua dormindo.

A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso cante, chore, ria e viva intensamente antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos.

Cada pessoa que passa em nossa vida, passa sozinha, é porque cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra. Cada pessoa que passa em nossa vida passa sozinha, e não nos deixa só, porque deixa um pouco de si e leva um pouquinho de nós. Essa é a prova de que as pessoas não se encontram por acaso.

Não devemos ter medo dos confrontos.
Até os planetas se chocam e do caos nascem as estrelas.

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Eu continuo a ser uma coisa só: um palhaço, o que me coloca em nível mais alto do que o de qualquer político.

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A coisa mais injusta sobre a vida é a maneira como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso. Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo. Ganhar um relógio de ouro e ir trabalhar. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante pra poder aproveitar sua aposentadoria.Aí você curte tudo, bebe bastante álcool, faz festas e se prepara pra faculdade. Você vai pro colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando… E termina tudo com um ótimo orgasmo!!!Não seria perfeito?

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Não preciso me drogar para ser um gênio;
Não preciso ser um gênio para ser humano;
Mas preciso do seu sorriso para ser feliz.

Smile

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Smile,
Tough your heart is aching,
Smile,
Even though it’s breaking,
When there are clouds in the sky, you’ll get by
If you smile.

Through your fears and sorrow, smile
And maybe tomorrow
You’ll see the sun come shining through for you.
Light up your face with gladness,
Hide every trace of sadness,
Although a tear
may be ever so near,
That’s the time you must keep on trying,
Smile,
What’s the use of crying,
You’ll find that life is still worthwhile,
If you just smile.

Sorri

Sorri
quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos vazios

Sorri
quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador

Sorri
Quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados doridos

Sorri
Vai mentindo a sua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz.

Canto ao Homem do Povo

Charles Chaplin

Carlos Drummond Andrade
rca-19charlie-chaplin-city-lights-postersPoster de Renato Casaro

I

Era preciso que um poeta brasileiro,
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,

era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos
e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,

era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.

Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo – inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,

vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.

Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.

Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,
nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti
como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins.

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens – e te descobriram e salvaram-se.

Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,
os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,
falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,
os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,
cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.

II

A noite banha tua roupa.
Mal a disfarças no colete mosqueado,
no gelado peitilho de baile,
de um impossível baile sem orquídeas.

És condenado ao negro. Tuas calças
confundem-se com a treva. Teus sapatos
inchados, no escuro do beco,
são cogumelos noturnos. A quase cartola,
sol negro, cobre tudo isto, sem raios.

Assim, noturno cidadão de uma república
enlutada, surges a nossos olhos
pessimistas, que te inspecionam e meditam:
Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,
o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde
a um mundo muito velho.

E a lua pousa
em teu rosto. Branco, de morte caiado,
que sepulcros evoca mas que hastes
submarinas e álgidas e espelhos
e lírios que o tirano decepou, e faces
amortalhadas em farinha. O bigode
negro cresce em ti como um aviso
e logo se interrompe. É negro, curto,
espesso. O rosto branco, de lunar matéria,
face cortada em lençol, risco na parede,
caderno de infância, apenas imagem
entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,
sozinha, experiente, calada vem a boca
sorrir, aurora, para todos.

E já não sentimos a noite,
e a morte nos evita, e diminuímos
como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos
ao país secreto onde dormem os meninos.
Já não é o escritório e mil fichas,
nem a garagem, a universidade, o alarme,
é realmente a rua abolida, lojas repletas,
e vamos contigo arrebentar vidraças,
e vamos jogar o guarda no chão,
e na pessoa humana vamos redescobrir
aquele lugar – cuidado! – que atrai os pontapés: sentenças
de uma justiça não oficial.

III

Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome
dos que não foram chamados à ceia celeste
ou industrial. Há ossos, há pudins
de gelatina e cereja e chocolate e nuvens
nas dobras do teu casaco. Estão guardados
para uma criança ou um cão. Pois bem conheces
a importância da comida, o gosto da carne,
o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata,
e sabes a arte sutil de transformar em macarrão
o humilde cordão de teus sapatos.

Mais uma vez jantaste: a vida é boa.
Cabe um cigarro: e o tiras
da lata de sardinhas.
Não há muitos jantares no mundo, já sabias,
e os mais belos frangos
são protegidos em pratos chineses por vidros espessos.

Há sempre o vidro, e não se quebra,
há o aço, o amianto, a lei,
há milícias inteiras protegendo o frango,
e há uma fome que vem do Canadá, um vento,
uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha
baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida
que mal decifras
o cristal infrangível. Entre a mão e a fome,
os valos da lei, as léguas. Então te transformas
tu mesmo no grande frango assado que flutua
sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro
e chama, comida geral, que tarda.

IV

O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas.
No festim solitário teus dons se aguçam.
És espiritual e dançarino e fluido,
mas ninguém virá aqui saber como amas
com fervor de diamante e delicadeza de alva,
como, por tua mão a cabana se faz lua.

Mundo de neve e sal, de gramofones roucos
urrando longe o gozo de que não participas.
Mundo fechado, que aprisiona as amadas
e todo o desejo, na noite, de comunicação.

Teu palácio se esvai, lambe-te o sono,
ninguém te quis, todos possuem,
tudo buscaste dar, não te tomaram.
Então encaminhas no gelo e rondas o grito.

Mas não tens gula de festa, nem orgulho
nem ferida nem raiva nem malícia.
És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa
correndo, os copos voam,
os corpos saltam rápido, as amadas
te procuram na noite… e não te vêem,
tu pequeno, tu simples, tu qualquer.

Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,
andar aos mil num corpo só, franzino,
e ter braços enormes sobre as casas,
ter um pé em Guerrero e outro no Texas,
falar assim a chinês a maranhense,
a russo, a negro: ser um só, de todos,
sem palavra, sem filtro,
sem opala:
há uma cidade em ti, que não sabemos.

V

Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.
Não, não te ama. Um rico, em álcool,
é teu amigo e lúcido repele
tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos
o que há de água, de sopro e de inocência
no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos
que cultuamos, falsos: flores pardas,
anjos desleais, cofres redondos, arquejos
poéticos acadêmicos; convenções
do branco, azul e roxo; maquinismos,
telegramas em série, e fábricas e fábricas
e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.
Ficaste apenas um operário
comandado pela voz colérica do megafone.
És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.

Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,

aprendiz
bombeiro
caixeiro
doceiro
emigrante
forçado
maquinista
noivo
patinador
soldado
músico
peregrino
artista de circo
marquês
marinheiro
carregador de piano

apenas sempre entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos

VI

Já não penso em ti. Penso no ofício
a que te entregas. Estranho relojoeiro
cheiras a peça desmontada: as molas unem-se,
o tempo anda. És vidraceiro.
Varres a rua. Não importa
que o desejo de partir te roa; e a esquina
faça de ti outro homem; e a lógica
te afaste de seus frios privilégios.

Há o trabalho em ti, mas caprichoso,
mas benigno,
e dele surgem artes não burguesas,
produtos de ar e lágrimas, indumentos
que nos dão asa ou pétalas, e trens
e navios sem aço, onde os amigos
fazendo roda viajam pelo tempo,
livros se animam, quadros se conversam,
e tudo libertado se resolve
numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.

O ofício é o ofício
que assim te põe no meio de nós todos,
vagabundo entre dois horários; mão sabida
no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,
o pé insiste em levar-te pelo mundo,
a mão pega a ferramenta: é uma navalha,
e ao compasso de Brahms fazes a barba
neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido
onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos.

Foi bom que te calasses.
Meditavas na sombra das chaves,
das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,
juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas,
anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta
de mil, os braços cruzados de mil.

E nada dizias. E um bolo, um engulho
formando-se. E as palavras subindo.
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada,
contra a miséria e a fúria dos ditadores,

ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança.

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Discurso do Grande Ditador

(Editado por http://www.youtube.com/leomeida)

Aniversário da Carta do Achamento

carta-caminhaEm abril, no dia do Descobrimento do Brasil, eu prometi voltar ao tema da Carta do Achamento em 1º de maio, data de sua assinatura por Pero Vaz de Caminha, escrivão lotado na armada de Pedro Álvares Cabral. A data passou em branco, em razão de uma viagem minha, não tão longa, mas que afastou-me do blog por alguns dias. No final da última semana, deparei-me com outro probleminha, pois a banda larga da Internet estreitou, talvez também devido às calmarias, e não consegui postar além de dois títulos.

Portanto, pedindo desculpas à Carta e a seu escriba, como também aos leitores que eventualmente procuraram pelo post  no dia 1º, entrego à leitura alguns poemas sobre o tema, a começar pelo já conhecido Pero Vaz de Caminha, de Oswald de Andrade.

Pero Vaz de Caminha

Oswald de Andrade

oswalddeandradeA descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra

Os selvagens

Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam pôr a mão
E depois a tomaram como espantados

Primeiro chá

Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real

As meninas da gare

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha

De Pau-brasil (1925)

Erro de Português

Oswald de Andrade

Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio teria despido
O português

in Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.
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Nova do Achamento (Quarta-feira, 22 de Abril)

Manuel Alegre

Sabei porém que foi um sobressalto
E tremo ainda ao pô-lo no papel.
Vimos primeiro um monte muito alto
E outras serras mais baixas ao sul dele.

Vimos depois as serras terra chã
Muito formosa e cheia de arvoredos.
Era a luz a surgir de seus segredos
E em nós embora tarde era manhã.

Nem sei dizer Senhor o espanto e os medos.

Achar Senhor é pão que mata a fome
Da ânsia de mais mundo e de mais luz.
E ao monte grande o Capitão pôs nome
De Pascoal. E à terra de Vera Cruz.

Lisboa, Publicações Europa-América, s.d.

Descobrimento

Sophia de Mello Breyner Andresen

caravelas
Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados

Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam as crinas nos alísios

O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados

Brasil ou do outro lado do mar
Obra Poética III, Lisboa, Ed. Caminho

Carta de Pero Vaz de Caminha

Luís Filipe Castro Mendes

É equívoca a ternura. Demasiados gestos
Para uma só palavra.
E agora que será de nós? Ficar aqui?

Esta terra contém água em demasia.
Prefiro a inteireza da pedra. Mas que podemos nós fazer
Quando as palavras sobram
E o amor acontece?

Rio Caí

Rui Rasquilho

Encontrada a terra
Na coincidência da Páscoa
Caminha olhou da grande nau
A praia
E escreveu ao Rei

Nu
O dono da terra
Olhou o branco marítimo
Trazido pelo vento

A praia clareava a floresta
Junto do mar
Enfeitada de penas e flechas

De espadas

No vermelho branco do encontro
A surpresa não teve fingimento
Na vertigem do silêncio da palavra

O Rei
Leu a carta de Caminha
E ordenou a invenção da história
Como se nada fosse o que era

25 Poemas brasileiros e uma Saga Lusitana
Thesaurus, Brasília, 1997

Em defesa de Caminha e de nosso caráter

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D. Manuel I, o Venturoso – Afinal, o Rei atendeu Caminha
 e fez seu genro retornar a Portugal?

Difundiu-se pelas terras descobertas por Cabral, em favor da diminuição de nosso caráter, o boato de que o nepotismo e a corrupção do País brasílico se originaram no primeiro texto escrito sobre a Ilha de Vera Cruz. O escriba da esquadra cabralina teria aproveitado a comunicação com o Rei de Portugal e pedido a ele um emprego para parente. Para apimentar ainda mais a fofoca, disseram que era para um sobrinho seu, o que caracterizaria o nepotismo (embora sua correta acepção não seja essa). Erro de quem não leu ou passou superficialmente pela carta de Caminha.

Em verdade, em verdade vos digo: Caminha tão somente aproveitou a carta (que levaria algum tempo para chegar a Portugal e, portanto, não haveria uma próxima segunda oportunidade para fazê-lo) para solicitar a Sua Alteza a vinda (provável transferência) de seu genro Jorge de Osório, por alguma razão situado, naquele momento, na Ilha de São Tomé, na costa da África, colônia portuguesa desde 1470, quando João de Santarém e Pedro Escobar a descobriram (hoje é a República de São Tomé e Príncipe, independentes desde 1975, e faz parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP). Imagine-se as condições de vida naquela colônia, inabitada até a data de sua descoberta pelos navegadores lusos.

É preciso que lembremos que, naquele tempo, embora Portugal fosse uma potência econômica mundial, líder no setor de navegação, era ainda um país pequeno, em relação aos dias de hoje. O Rei tinha poder discricionário e somente ele podia definir a sorte dos funcionários da corte. Além disso, Pero Vaz de Caminha era Cavaleiro da Corte, durante os reninados de D. Afonso V, D. João II e, na época do descobrimento,  D. Manuel I, por quem fora nomeado escrivão em Calecut, integrado à armada de Pedor Álavres Cabral. Tinha, portanto, intimidade com a corte e lhe era perfeitamente permitido tal aproximação com o monarca. Ora, ao pedir a transferência de seu genro daquela ilha, distante de Lisboa em cerca de 4.500 quilômmetros, Caminha não estava a utilizar nenhum favor especial. Simplesmente fazia um requerimento bastante compreensível para reunir sua família em Portugal (ao lado de um genro, sempre há uma filha). Pedido que podia ser atendido ou não. Onde estão a corrupção e o nepotismo?

Mais razões há para registrarmos o início de nossa saudável miscigenação, como observa Carlos Eduardo de Soveral, no Dicionário de Literatura, ao ver na Carta “o mais vivo testemunho relativo ao reconhecimento oficial da terra de Vera Cruz. Nela se patenteia com pitoresco inexcedível a impressão que no civilizado, saído da Idade Média, infunde o espectáculo genesíaco, e também, especialmente, o atrativo que a mulher indígena exerce na forte compleição do português”. Depois, seria a vez da mulher da africana, cujo relacionamento com “a forte compleição do português” daria origem a formosas mulatas. Pena é que, hoje, haja quem lute em favor do retrocesso, com tantas iniciativas para se implantar o neoracismo no Brasil.

Para os que desejarem ler (ou guardar) a Carta completa, vejam em http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/a_carta.htm.