Arquivo do dia: 27 de fevereiro de 2010

Homenagem aos 71 anos de morte de Antonio Machado

No último dia 22 de fevereiro completaram-se 71 anos da morte de Antonio Cipriano José María y Francisco de Santa Ana Machado Ruiz, mais conhecido como Antonio Machado (nascido em Sevilha, Espanha, a 26 de julho de 1875 e morto em Collioure, França, a 22 de fevereiro de 1939). Poeta, pertencente ao modernismo espanhol, Machado é hoje um poeta universal. (Veja mais em Os caminhos de Antonio Machado e em Nova visita de Antonio Machado ).

O poema que hoje publico, em sua homenagem, foi lembrado por Manoel de Andrade, há algum tempo. E ele permaneceu no computador, em sua versão original, desafiando meu atrevimento de versejador que temia não encontrar uma versão ao português apropriada a essa confissão biográfica do célebre poeta espanhol. Afinal, tradução ou versão poética não é apenas transliteração. Na realidade, traduzir poesia é quase um ato mediúnico, no qual o tradutor busca incorporar o espírito do poeta e sentir minimamente como ele, viver em suas paisagens, respirar o mesmo ar, abraçar pessoas queridas. Pressupõe, como diz Geir Campos, um íntimo diálogo com o “autor da obra traduzida, ao qual se credita o que possa a obra ter de positivo e belo”.

Não é à toa que os italianos brincam sobre a questão: traduttore, traditore. Como não podemos transferir para a nova língua a perfeição buscada pelo idioma original, quase sempre uma tradução fica apenas no nível de interpretação. Paulo Rónai lembra que o tradutor poético trabalha como um artesão e, por esta mesma razão, sempre acaba buscando justificações para seu trabalho complementar, pedindo o perdão do autor…

Não estou a me justificar, posto que o trabalho de ler e reescrever Machado sempre é um exercício enriquecedor. Apenas digo que para dar clareza à versão, sem macular em demasia a intenção e o sentimento do autor, muitas vezes alteramos a métrica, o ritmo e o pior entrave do poema, a rima. No caso de Retrato, poema construído em versos alexandrinos, busquei o mesmo comportamento estrutural (com alguns resvalos, por certo). Mas a maior preocupação foi de conteúdo, uma vez que não se trata de uma composição ilusória, mas de um relato autobiográfico. Portanto, sob o ferrolho da rima, procurei sentimentos assemelhados quando fui obrigado a utilizar outros substantivos, verbos e adjetivos.

O poema busca mostrar o íntimo do poeta. Na primeira estrofe, a sua origem, o seu pouso sobre a terra. Na segunda estrofe, uma definição de sua personalidade – afasta-se de características mundanas, mas qualifica-se como um homem apaixonado. Na terceira, assume uma posição política e define sua principal qualidade, como ser humano.

Nas três estrofes seguintes dispõe sobre sua condição de poeta e esboça crítica sobre a cultura literária de seu tempo. Sua confissão estética; a recusa ao modernismo reinante, para ele superficial e oco; sua independência em relação a movimentos ou classificações literárias.

Finalmente, nas três últimas estrofes a preocupação com o final e a finalidade. A grande viagem, quiçá recompensada pela paz e o diálogo com o eterno.

Nove estrofes que sintetizam uma vida. Corpo, espírito e alma. Um retrato por inteiro que se dispõe a responder as três perguntas fundamentais: de onde vim, quem sou eu e para onde vou? Corpo distante de nós há 71 anos, espírito e alma de Antonio Machado sempre presentes. (C. de A.)

Retrato

Mi infancia son recuerdos de un patio de Sevilla,
y un huerto claro donde madura el limonero;
mi juventud, veinte años en tierras de Castilla;
mi historia, algunos casos que recordar no quiero.

Ni un seductor Mañara, ni un Bradomín he sido
– ? ya conocéis mi torpe aliño indumentario? –
más recibí la flecha que me asignó Cupido,
y amé cuanto ellas puedan tener de hospitalario.

Hay en mis venas gotas de sangre jacobina,
pero mi verso brota de manantial sereno;
y, más que un hombre al uso que sabe su doctrina,
soy, en el buen sentido de la palabra, bueno.

Adoro la hermosura, y en la moderna estética
corté las viejas rosas del huerto de Ronsard;
mas no amo los afeites de la actual cosmética,
ni soy un ave de esas del nuevo gay-trinar.

Desdeño las romanzas de los tenores huecos vazio
y el coro de los grillos que cantan a la luna.
A distinguir me paro las voces de los ecos,
y escucho solamente, entre las voces, una.

¿Soy clásico o romántico? No sé. Dejar quisiera
mi verso, como deja el capitán su espada:
famosa por la mano viril que la blandiera,
no por el docto oficio del forjador preciada.

Converso con el hombre que siempre va conmigo
– ¿ quien habla solo espera hablar a Dios un día? –
mi soliloquio es plática con ese buen amigo
que me enseñó el secreto de la filantropía.

Y al cabo, nada os debo; debéisme cuanto he escrito.
A mi trabajo acudo, con mi dinero pago
el traje que me cubre y la mansión que habito,
el pan que me alimenta y el lecho en donde yago.

Y cuando llegue el día del último vïaje,
y esté al partir la nave que nunca ha de tornar,
me encontraréis a bordo ligero de equipaje,
casi desnudo, como los hijos de la mar.

Túmulo de Machado, em Collioure, França

Retrato

Minha infância são memórias de um pátio de Sevilla,
e um claro pomar onde matura o limoeiro;
a juventude, vinte anos em terras de Castilla;
minha história, casos que não lembro por inteiro.

Sequer Manãra fui, nem Bradomín eu sou
– já conheceis meu torpe alinho costumeiro? –
mas recebi a flecha que Cupido me atirou,
e amei quanto elas possam ter de hospitaleiro.

Em minhas veias corre sangue jacobino,
porém meu verso brota de manancial copioso;
e, mais que simples homem que segue seu destino,
no bom sentido da palavra, sou bondoso.

Adoro a formosura, e na moderna estética
cortei as velhas rosas do horto de Ronsard;
mas não amo os enfeites da atual cosmética,
nem sou uma ave dessas do novo gay-trinar.

Desdenho as romanças dos vazios tenores
e o coral de grilos que para a lua canta.
Fico a distinguir nas vozes os cantores
E, entre as vozes, somente uma encanta.

Sou clássico ou romântico? Não sei. Deixar queria
meu verso, como deixa o capitão sua espada:
famígera pela mão varonil que a brandia
não pelo douto ofício do forjador prezada.

Converso com o homem que sempre vai comigo
– quem fala só espera falar com Deus um dia? –;
meu solilóquio é prática com esse bom amigo
que me ensinou segredos da filantropia.

E ao fim, nada vos devo; deveis-me todo o escrito.
A meu trabalho acudo, com meu dinheiro ajeito
o traje que me cobre e a mansão que habito,
o pão que me alimenta e a cama onde me deito.

E ao chegar o dia da última viagem,
e esteja pronta a nave que nunca há de tornar,
me encontrareis a bordo livre de equipagem,
quase desnudo, tal os filhos deste mar.

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Notas

  • Os topônimos Sevilla e Castilla foram conservados na grafia original em benefício da rima.
  • A expressão gay-trinar não tinha, à época em que o poema foi escrito, qualquer significado sexual; provavelmente o autor se referia a sua recusa a um modernismo mais ousado. Nas primeiras estrofes da quadra, ele aceita a beleza da arte e afirma que, na estética de seu tempo e de sua arte, abandonou os velhos conceitos do poetas renascentistas, como a simbolizar sua ruptura com artistas mais antigos. Mas nem tão modernista assim, ele se opõe à cosmética de seu tempo, provavelmente se manifestando contra os artifícios de linguagem então usados pelos mais modernos. E o gay-trinar seria o canto belo, alegre, mas sem conteúdo.
  • Miguel Mañara, filantropo nascido em Sevilha (1627- 1679), filho de destacada família local.
  • Marquez de Bradomín, figura mítica da literatura espanhola, era um refinado e decadente Don Juan