No último dia 22 de fevereiro completaram-se 71 anos da morte de Antonio Cipriano José María y Francisco de Santa Ana Machado Ruiz, mais conhecido como Antonio Machado (nascido em Sevilha, Espanha, a 26 de julho de 1875 e morto em Collioure, França, a 22 de fevereiro de 1939). Poeta, pertencente ao modernismo espanhol, Machado é hoje um poeta universal. (Veja mais em Os caminhos de Antonio Machado e em Nova visita de Antonio Machado ).
O poema que hoje publico, em sua homenagem, foi lembrado por Manoel de Andrade, há algum tempo. E ele permaneceu no computador, em sua versão original, desafiando meu atrevimento de versejador que temia não encontrar uma versão ao português apropriada a essa confissão biográfica do célebre poeta espanhol. Afinal, tradução ou versão poética não é apenas transliteração. Na realidade, traduzir poesia é quase um ato mediúnico, no qual o tradutor busca incorporar o espírito do poeta e sentir minimamente como ele, viver em suas paisagens, respirar o mesmo ar, abraçar pessoas queridas. Pressupõe, como diz Geir Campos, um íntimo diálogo com o “autor da obra traduzida, ao qual se credita o que possa a obra ter de positivo e belo”.
Não é à toa que os italianos brincam sobre a questão: traduttore, traditore. Como não podemos transferir para a nova língua a perfeição buscada pelo idioma original, quase sempre uma tradução fica apenas no nível de interpretação. Paulo Rónai lembra que o tradutor poético trabalha como um artesão e, por esta mesma razão, sempre acaba buscando justificações para seu trabalho complementar, pedindo o perdão do autor…
Não estou a me justificar, posto que o trabalho de ler e reescrever Machado sempre é um exercício enriquecedor. Apenas digo que para dar clareza à versão, sem macular em demasia a intenção e o sentimento do autor, muitas vezes alteramos a métrica, o ritmo e o pior entrave do poema, a rima. No caso de Retrato, poema construído em versos alexandrinos, busquei o mesmo comportamento estrutural (com alguns resvalos, por certo). Mas a maior preocupação foi de conteúdo, uma vez que não se trata de uma composição ilusória, mas de um relato autobiográfico. Portanto, sob o ferrolho da rima, procurei sentimentos assemelhados quando fui obrigado a utilizar outros substantivos, verbos e adjetivos.
O poema busca mostrar o íntimo do poeta. Na primeira estrofe, a sua origem, o seu pouso sobre a terra. Na segunda estrofe, uma definição de sua personalidade – afasta-se de características mundanas, mas qualifica-se como um homem apaixonado. Na terceira, assume uma posição política e define sua principal qualidade, como ser humano.
Nas três estrofes seguintes dispõe sobre sua condição de poeta e esboça crítica sobre a cultura literária de seu tempo. Sua confissão estética; a recusa ao modernismo reinante, para ele superficial e oco; sua independência em relação a movimentos ou classificações literárias.
Finalmente, nas três últimas estrofes a preocupação com o final e a finalidade. A grande viagem, quiçá recompensada pela paz e o diálogo com o eterno.
Nove estrofes que sintetizam uma vida. Corpo, espírito e alma. Um retrato por inteiro que se dispõe a responder as três perguntas fundamentais: de onde vim, quem sou eu e para onde vou? Corpo distante de nós há 71 anos, espírito e alma de Antonio Machado sempre presentes. (C. de A.)
Retrato
Mi infancia son recuerdos de un patio de Sevilla,
y un huerto claro donde madura el limonero;
mi juventud, veinte años en tierras de Castilla;
mi historia, algunos casos que recordar no quiero.
Ni un seductor Mañara, ni un Bradomín he sido
– ? ya conocéis mi torpe aliño indumentario? –
más recibí la flecha que me asignó Cupido,
y amé cuanto ellas puedan tener de hospitalario.
Hay en mis venas gotas de sangre jacobina,
pero mi verso brota de manantial sereno;
y, más que un hombre al uso que sabe su doctrina,
soy, en el buen sentido de la palabra, bueno.
Adoro la hermosura, y en la moderna estética
corté las viejas rosas del huerto de Ronsard;
mas no amo los afeites de la actual cosmética,
ni soy un ave de esas del nuevo gay-trinar.
Desdeño las romanzas de los tenores huecos vazio
y el coro de los grillos que cantan a la luna.
A distinguir me paro las voces de los ecos,
y escucho solamente, entre las voces, una.
¿Soy clásico o romántico? No sé. Dejar quisiera
mi verso, como deja el capitán su espada:
famosa por la mano viril que la blandiera,
no por el docto oficio del forjador preciada.
Converso con el hombre que siempre va conmigo
– ¿ quien habla solo espera hablar a Dios un día? –
mi soliloquio es plática con ese buen amigo
que me enseñó el secreto de la filantropía.
Y al cabo, nada os debo; debéisme cuanto he escrito.
A mi trabajo acudo, con mi dinero pago
el traje que me cubre y la mansión que habito,
el pan que me alimenta y el lecho en donde yago.
Y cuando llegue el día del último vïaje,
y esté al partir la nave que nunca ha de tornar,
me encontraréis a bordo ligero de equipaje,
casi desnudo, como los hijos de la mar.
Retrato
Minha infância são memórias de um pátio de Sevilla,
e um claro pomar onde matura o limoeiro;
a juventude, vinte anos em terras de Castilla;
minha história, casos que não lembro por inteiro.
Sequer Manãra fui, nem Bradomín eu sou
– já conheceis meu torpe alinho costumeiro? –
mas recebi a flecha que Cupido me atirou,
e amei quanto elas possam ter de hospitaleiro.
Em minhas veias corre sangue jacobino,
porém meu verso brota de manancial copioso;
e, mais que simples homem que segue seu destino,
no bom sentido da palavra, sou bondoso.
Adoro a formosura, e na moderna estética
cortei as velhas rosas do horto de Ronsard;
mas não amo os enfeites da atual cosmética,
nem sou uma ave dessas do novo gay-trinar.
Desdenho as romanças dos vazios tenores
e o coral de grilos que para a lua canta.
Fico a distinguir nas vozes os cantores
E, entre as vozes, somente uma encanta.
Sou clássico ou romântico? Não sei. Deixar queria
meu verso, como deixa o capitão sua espada:
famígera pela mão varonil que a brandia
não pelo douto ofício do forjador prezada.
Converso com o homem que sempre vai comigo
– quem fala só espera falar com Deus um dia? –;
meu solilóquio é prática com esse bom amigo
que me ensinou segredos da filantropia.
E ao fim, nada vos devo; deveis-me todo o escrito.
A meu trabalho acudo, com meu dinheiro ajeito
o traje que me cobre e a mansão que habito,
o pão que me alimenta e a cama onde me deito.
E ao chegar o dia da última viagem,
e esteja pronta a nave que nunca há de tornar,
me encontrareis a bordo livre de equipagem,
quase desnudo, tal os filhos deste mar.
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Notas
- Os topônimos Sevilla e Castilla foram conservados na grafia original em benefício da rima.
- A expressão gay-trinar não tinha, à época em que o poema foi escrito, qualquer significado sexual; provavelmente o autor se referia a sua recusa a um modernismo mais ousado. Nas primeiras estrofes da quadra, ele aceita a beleza da arte e afirma que, na estética de seu tempo e de sua arte, abandonou os velhos conceitos do poetas renascentistas, como a simbolizar sua ruptura com artistas mais antigos. Mas nem tão modernista assim, ele se opõe à cosmética de seu tempo, provavelmente se manifestando contra os artifícios de linguagem então usados pelos mais modernos. E o gay-trinar seria o canto belo, alegre, mas sem conteúdo.
- Miguel Mañara, filantropo nascido em Sevilha (1627- 1679), filho de destacada família local.
- Marquez de Bradomín, figura mítica da literatura espanhola, era um refinado e decadente Don Juan
A tradução deste poema magnífico, nada deve ao original. Caro Cleto, o seu receio de desvalorizar os versos magníficos do grande poeta que foi o espanhol António Machado, não tinham, na verdade, nenhuma razão de ser.
De qualquer forma, devo recordar-lhe que a poesia é universal. E afinal, esta tradução parte dum poeta, dum grande profissional da escrita que domina a pena com a inspiração que já todos reconhecem.
Parabéns pelo seu trabalho. Parabéns por ser quem é , um divulgador da cultura.
Uma leitura maravilhosa, este poema auto-biográfico que me deu a oportunidade de conhecer e desfrutar.
Um abraço grande
Vera Lucia
Que bela aplicada Antônio Machado meu caro.
Gostei e muito.
Abração.
Caro Cleto!
Teu atrevimento como tradutor tem glorificado a memória de grandes poetas e nos tem trazido a beleza quase materna dos seus versos. Realmente amigo, traduzir poesia é uma missão impossível. Quão difícil é transmitir a cidadania literária de um idioma, pressentir a misteriosa gestação de um poema e seu nascimento no ventre do poeta, e resignar-se que sua expressão escrita somente pode ser plenamente saboreada pelo paladar da consanguinidade cultural.
Conheço bem teu íntimo parentesco com o castelhano, não só pelo teu convívio diário com Teresa — que além de esposa, trouxe da Colômbia, uma sólida formação acadêmica para brindar os brasileiros com seus dotes de educadora e escritora de livros sobre a gramática da língua de Cervantes — mas também pela excelência da tua tradução de “ Os Espaços Cálidos”, do premiado poeta venezuelano Vicente Gerbasi, com quem você privou uma invejável amizade em Brasília e em Caracas.
Estas três matérias que você publicou aqui sobre Antônio Machado compõem um pequeno ensaio sobre o poeta de Sevilha. Sobre tua tradução do poema já não me surpreendo mais porque vivo te pedindo ajuda em minhas traduções do espanhol, apesar dos meus quatro anos de América Latina e ter escritos, nesse idioma, parte dos meus “Poemas para a Liberdade”.
Métrica e rima impecável neste poema traduzido de Machado, cujo primeiro verso ficou marcado em minha memória por recordarem também o meu pátio dos recreios e a praça principal da minha infância
Se o comentário que te fiz há algum tempo, sobre a beleza original deste poema, resultou nesta excelente matéria, sugiro ao teu incansável espírito de pesquisador o nome de outro grande poeta espanhol, que morreu ainda infante, aos 32 anos, mas deixou o canto e o encanto que tem marcado a poesia espanhola em todos os tempos. Trata-se de MIGUEL HERNANDEZ, sobre o qual, por certo, irá se festejar, na Espanha, em 10 de outubro deste ano, o centenário do seu nascimento. Está longe ainda, mas o ensejo me provoca esta antecipada sugestão.
Cleto,a sua tradução se junta as poucas traduções de Antonio Machado e nos ajuda a conhecer melhor sua obra.
Cleto
Gostaria de fazer um pequeno reparo na tradução do poema “Retrato” onde se lê “Desdenho as romanças…”, penso que resultaria melhor ” Desdenho os Cânticos” uma vez que o poema nesta estrofe incorpora metafóricamente o mundo da musica, como os Cânticos fazem parte do género literário Epopéia,
na minha opinião resultaria melhor. Continue pois foi de grande ajuda a sua modesta análise.
Rosa