Manoel de Andrade nos oferece sua prece natalina

Diz a história — ou histórias que se contam em volta dela — que Albrecht Dürer, pintor alemão (Nurembergue, 1471–1528), quando jovem, era bastante pobre, mas ansiava em se tornar um grande artista, assim como seu amigo, Franz Knigstein, com o qual dividia seus sonhos em direção à arte. Mas, para se sustentarem, tinham que trabalhar em tarefas mais rudes, incompatíveis com os estudos de pintura. Teriam chegado, então, a um acordo: lançariam a sorte e o perdedor continuaria trabalhando para financiar os estudos do outro.

Dürer ganhou e continuou a estudar, enquanto Knigstein permaneceu no trabalho. Um dia (toda história tem um dia importante) o pintor voltou à casa e encontrou-o rezando pelo sucesso do amigo, mesmo que ele, já com as mãos calejadas pelo trabalho bruto, não pudesse mais manipular os instrumentos de pintura. Albrecht Dürer, então, se comoveu com a cena e decidiu rapidamente gravá-la em um esboço que ficou conhecido como Mãos em Prece.

Na verdade, Dürer era filho de um abastado ourives e aprendeu com o pai o ofício, tornando-se também um exímio pintor, gravador e ilustrador. Com quinze anos tornou-se aprendiz do pintor e impressor alemão Michael Wolgemut (1434 – 1519), ao mesmo tempo em que ensaiava as técnicas de gravura em metal e em madeira. Com 31 anos de idade foi nomeado pintor da corte de Maximiliano I, da então Germânia. Após a morte do imperador, em 1520, partiu para a Holanda, onde conviveu com artistas e intelectuais do Renascimento, como Erasmo de Roterdam.

É bastante provável, portanto, que a história de sua obra Mãos em Prece não passe de uma lenda. Em verdade, o desenho é apenas um esboço de mãos, feito por Dürer quando ele recebeu uma encomenda de Jakob Heller (1460-1522), um rico comerciante, prefeito de Frankfurt e membro do conselho da cidade, para pintar um
retábulo com o tema da Assunção e Coroação da Virgem Maria.

Dürer terminou o projeto em detalhes, copiado exatamente pelos pintores encarregados da execução do retábulo. Apenas o painel central, representando a Assunção e Coroação da Virgem, foi executado pelo próprio
Dürer. Ele trabalhou durante 13 meses sobre a pintura final, determinado a torná-la “tão boa e bela, que continuará a ser brilhante e fresca durante quinhentos anos.”

Infelizmente, o painel central do retábulo foi vendido, um século mais tarde, pelos dominicanos ao duque Maximiliano da Baviera e, em 1729, foi destruído por um incêndio. Uma cópia de 1614 da obra, feita por Jobst Harrich de Nuremberg (1580-1617), sobreviveu. Também se salvaram dezoito esboços preliminares preparados por Dürer para a pintura final, entre os quais Mãos em Prece.

Mas, como dizem os italianos, se non é vero, é ben trovato. Afinal, uma oração, feita com boa intenção, só pode ter resultados positivos. Prece é meditação, é introspecção, é reflexão, é momento de concentração interior, é tentativa de contato com outras energias positivas. Assim, as mãos postas de Dürer, desenhadas apenas como um esboço, sem acurácia pictórica, tornaram-se mais conhecidas do que muitas de suas obras primas.

Lembrei-me delas quando li o poema de Manoel de Andrade, Prece da Criatura, um ato de reconhecimento e humildade ante a grandeza da vida, bastante apropriado para esta  época natalina. Ele nos envia seu trabalho como cumprimento a seus amigos e leitores do Banco da Poesia.

A Prece da Criatura

Manoel de Andrade

Eu te agradeço, Senhor,
ser filho do teu amor
e herdeiro do universo.
Ser cantor dessa beleza,
ter um lugar nessa mesa,
pelo sabor do meu verso

Ó Senhor, muito obrigado,
pelos  pais bons e honrados,
e a lição da pobreza.
Pelo café com farinha,
por tudo que eu não tinha,
e que fez minha riqueza

Pelo meu corpo perfeito,
a poesia em meu peito
e os anos da minha idade.
Por todo dever cumprido,
pelo amparo recebido
e pela imortalidade.

Eu te agradeço também
pela semente do bem
plantada no meu pomar.
Pela doçura desse fruto,
não ter me tornado um bruto
e ter aprendido a amar.

Pela água da minha fonte,
pela linha do horizonte
e um sonho de marinheiro.
Pelo meu mar de criança,
e o meu barco de esperança
percorrendo o mundo inteiro.

Pelo pão, pelo abrigo,
pela dádiva de um amigo,
e o abraço imperecível.
Te agradeço com veemência
esta paz na consciência
e a minha fé invencível.

Pela luz que me ilumina
desde a antiga Palestina
na alegria e na dor.
Por quem sou, pelo que sei,
por Moisés trazendo a lei,
por Jesus trazendo o amor.

Eu te agradeço, Senhor,
sobretudo pela dor
quando ensina uma lição.
Ninguém paga sem dever
e a lei obriga a colher
o efeito da nossa ação.

Pela sapiência contida
no pergaminho da vida
e pela civilização.
Te agradeço a minha parte,
pela ciência, pela  arte,
e pela Grécia de Platão.

Por Cabral no rumo certo,
pelo Brasil descoberto,
meu orgulho de cidadão.
Pelo herói da Inconfidência,
o grito da Independência
e a benção da Abolição.

Pelas lições da História,
pelo povo e a sua glória
na busca da liberdade.
E pela humanidade inteira,
quando erguer sua bandeira
pela paz e a verdade.

Grato sou por ter um sonho,
sonhar com um mundo risonho
numa paz contagiante.
Ver este Brasil fecundo
como o coração do mundo
em um porvir deslumbrante.

Te agradeço o bom combate,
e ter encarado esse embate
com o coração despojado.
Com tua luz nos meus passos,
a fraternidade em meus braços
e um sonho partilhado.

Contigo, Senhor, sou forte,
tenho um fanal, tenho um norte,
razão, sensibilidade.
Eu moro na melodia,
na música e na poesia
e no farol da verdade.

Muito obrigado Senhor
pelo trabalho e o suor,
pelo que dei e recebi.
Quando chegar meu momento,
se eu tiver merecimento.
me leva pra junto de ti.

Curitiba, dezembro de 2002

5 Respostas para “Manoel de Andrade nos oferece sua prece natalina

  1. Mais um trabalho deste grande poeta que é o Manoel de Andrade.
    A coisa mais valiosa do mundo é, sem dúvida ,a gratidão.
    E neste poema lindo , cada palavra é, por si só, um hino de amor e gratidão por tudo aquilo que Deus lhe proporcionou
    durante toda a sua vida. E a coisa que mais me encanta, do pouco que conheço da vida deste amigo, é que nem sempre o seu caminho foi um mar de rosas. Mas a grandeza do seu coração conseguiu esquecer todos os seus passos, por vezes sangrando sobre espinhos, para se fixar apenas nas coisas boas, nas dádivas divinas que recebeu dessa Entidade Suprema, de cuja a Bondade e Generosidade nunca pôs em dúvida.
    Obrigado, meu amigo, por esta lição imensa duma alma muito, muito generosa, dum homem que levanta o estandarte da bondade para lhe abrir novos caminhos.
    Se ele tivesse sido um dos Reis Magos, não tenho dúvidas que a sua oferenda ao Menino-Deus seria: a sua lealdade, a sua cumplicidade, e a certeza que o Seu Nome, Jesus,
    seria a bandeira flamejante em todo o seu percurso de vida.
    Obrigado, Manoel de Andrade por este exemplo magnífico,
    por esta lição de um Natal eterno.
    Boas Festas da amiga de sempre
    Vera Lucia

  2. Caro poeta

    Tenho lido os seus poemas que me têm fascinado pela forma simples mas tão profunda como escreve. Através deles consegue transmitir tudo o que o mundo precisa neste momento e no futuro.
    Venho pedir-lhe autorização para publicar este seu poema no meu blogue, visto dar-nos uma lição de vida que nós temos
    que ler e aprender.
    As maiores felicidades e continue a deliciar-me com os seus poemas.
    Sonia

  3. Cara Sônia,
    não sei se pelo teu sobrenome você é quem eu imagino que sejas. Se for você saberá quem te dará meu email para que nosso relacionamento seja mais fraterno.

    Meus poemas, depois que partem para o mundo, já não são mais meus, minha querida. Eles são de todos aqueles cujas almas se abrirem à sua mensagem.

    Obrigado por você me dar essa alegria. A de saber que este poema está cumprindo sua missão.

  4. Bonita prece, Manoel!

  5. Olá!
    Vou levar a tua foto acima para ilustrar um post que vou fazer sobre um poema de Fernando Pessoa, “Prece”. Vou pôr o link de onde tirei a foto, ou seja deste blogue. Agradeço desde já e espero que não te importes.
    Bj
    Mena

    Ah, gostei muito da tua prece!

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