Soa o rumor fatídico dos ventos,
Anunciando desmoronamentos
De mil lajedos sobre mil lajedos…
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!
Augusto do Anjos,
em A Ilha de Cipango, do livro Eu, 1912
Nós, brasileiros, já estamos acostumados com as águas de dezembro e janeiro. Casas e gente soterradas pela lama dos barrancos, inundações a afogar cidades. Perto delas, as águas de março são mera poesia, como aproveitou Jobim (o compositor). As notícias dão conta que os poderes administrativos não fiscalizam e as pessoas, em busca de um lugar para viver, constroem onde não se pode construir e jogam lixo onde não devem.
Neste ano tivemos algo diferente. Já não foram apenas os pobres da favelas que sofreram com os desbarrancamentos, mas a classe média também foi atingida, em Angra dos Reis. Já não foram só os anônimos da desgraça, mas gente com nome, profissão e planos concretos para o presente e o futuro desapareceu durante os cataclismos. Desgraça pior? Não, foi gente que se foi sem precisar ter ido, vítimas da incúria administrativa de um país que quer traçar políticas de meio ambiente e direitos humanos, mas não sabe como escrever simples posturas municipais e fazê-las cumprir. Seja em Brasília, no Rio de Janeiro, São Paulo ou em Quixeramobim.
Quando morei em Brasília, em um belo apartamento recém-construído na Asa Norte, vi uma favela nascer e se desenvolver ao lado de um lixão, este formado em terras semiabandonadas da Universidade de Brasília. Foram poucos meses entre o primeiro barraco levantado ao lado do monte de lixo e as dezenas, talvez centenas de casas de compensado, papelão e lona plástica. Contaram-me que muitas das famílias que para ali se transferiram vinham de outra favela formada em um vale coberto de vegetação e que escondia dos olhos da classe média burocrata a sua pobreza.
E a favela da superquadra, ao começar a incomodar o cartão postal da Capital Federal, foi desmontada em um só dia, por ação da polícia militar, a mando das autoridades que não viram nem preveniram a sua construção. E, no Congresso Nacional, boa parte dos representantes nordestinos, conterrâneos de grande parte dos então favelados de Brasília, continuava a exibir seus relógios de ouro e, como dizia Stanislaw Ponte Preta, seus ternos mais brilhantes que a própria inteligência.
Mas janeiro de 2010, que encerra a primeira década do Século XXI, foi ainda mais trágico que os janeiros anteriores, literalmente derrubando o Haiti e tornando-o ainda mais pobre. Perdemos gente brasileira por lá. Militares e civis. Entre eles, a nossa Zilda Arns, que queria levar a sua Pastoral da Criança para proteger a infância daquela ilha desafortunada. Aí volta o outro Jobim, este descompositor da esperança, a dizer que não era hora de cuidar de eufemismos e já devíamos contar como mortos os militares ainda dados como desaparecidos. Palavras que parecem ser retiradas do tal PNDH III, contra o qual o ministro da nossa defesa se manifestou.
Enfim, coisas de mais um janeiro convulsivo, no qual Gaia mostra que ninguém manda nela e, apesar de nossa presunção em poder controlá-la, é ela que nos comanda e nos envia avisos, de quando em quando.
Na volta das pequenas férias, de onde fui enxotado pelas águas de janeiro, fui em busca de informações. Pesquisei sobre a poesia haitiana e descobri que, como sua história, ela é melancólica e terrivelmente profética. Abaixo vão dois exemplos.
Também descobri que Augusto dos Anjos, o poeta brasileiro que contradizia seu nome, também lembrou, há quase cem anos, a ilha caribenha apegada à dor. Igualmente o transcrevo. Mas não pude deixar de reunir letras para testemunhar a minha compaixão por aquela ilha que tem tudo para ser um paraíso, mas que se tornou hospedaria da desgraça, desde que Cristóvão Colombo a descobriu, em 1492. (C. de A.)
À ti, haiti, meu ai
Cleto de Assis
Quisqueya, mãe de todas as terras,
foste amaldiçoada por Colombo,
que te acreditava Cipango,
quando engoliste a nau Santa Maria
e mataste os 39 marinheiros
dados a ti de presente no dia de Natal.
Tu, que fizeste ruir o sonho
da primeira construção americana.
Tu, Hispaniola, Española, Espanhola,
Tu, à esquerda de Santo Domingo repartida,
Terra Montanhosa,
Ahti, guiada por Guacanagarí,
que também renegaste por ter sido o primeiro amigo.
E serias hostil por tempo quase eterno.
Teu Porto Príncipe depois se afrancesaria,
povoado por gente arrancada da Guiné
sem as mesuras gaulesas
e com sangue caribe transvasado de tuas praias e montanhas,
a vingar o povo de África e a bramir contra o branco.
“Ê! Ê! Bomba! Heu! Heu! Canga, bafio te! Canga, mauné delé!
Canga, do ki lá! Canga, Li!”
Preferias a morte
se não houveras tomado a vida do branco e tudo o que ele possuía.
E a morte encontraste muitas vezes
pela mão do branco,
pelas mãos de teus adotados filhos
e pela mão de Gaia
sem proteção dos L’whas.
Haiti, tens o grito de dor no teu ventre
e na pobreza de tua gente.
Conseguiste fazer a enorme revolução negra
mas ainda não encontraste a liberdade
no imenso quilombo em que te transformaste
e precisaste mostrar a face da aflição
para receberes gestos de fraternidade.
Haiti, usina de restavecs violadas,
tu, que tens fome de paz,
mas não consegues a paz porque tens fome.
Tu, abandonada nas águas turmalinas do Caribe
trocaste o bafejo da sorte pelo hálito feroz do tufões
e não encontras o socorro nem de tua padroeira.
Haiti, terra amontoada pelo Senhor dos Infernos,
Terra Escombrosa, Poeirenta,
com cheiro da morte, com sede de água e de ternura,
és o retrato do abandono do homem pelo homem.
Chegarão a ti, Haiti, os Senhores da Fortuna,
a retirar das algibeiras abarrotadas alguns trocados,
sem exigir em troca crianças abandonadas
e o açúcar que tiras da terra, já pouco para teus próprios filhos.
Mas cuida-te, Haiti, e recusa ofertas por tua alma combalida.
Retira o pó da gente descolorida pela desgraça
e recria a Nova Fênix Caribe que deverá surgir das cinzas.
Sê novamente Quisqueya com tua própria vontade
e com tuas própria mãos,
sem a opressão de teu passado de dor.
Emmelie Prophète
Emmelie Prophète nasceu em Porto Príncipe, no Haiti, a 15 de junho de 1971, onde estudou Direito e Literatura Moderna. Fez cursos de Comunicação na Jackson State University, no Mississippi, E.U.A.. Ela apresentou, por oito anos, uim programa de difusão de Jazz na Rádio Haiti. Trabalhado em Educação e na diplomacia, como adida cultural do Haiti em Genebra. Colabora em várias revistas, Chemins Critiques, Boutures, Casa de las Americas, Cultura, La Nouvelle Revue Française.
É autora de duas coletâneas de poemas, Des marges à remplir (2000) e Sur parure d’ombre (2004). Em 2007, ele lançou sua primeira narrativa, Le Testament des solitudes, em Montreal.
Emmelie Prophète escreve para salvar sua pele. Sua literatura é simples, fluída e argentina. Ela nos conduz de acaso a acaso e nos segura em torno de palavras generosas, muitas vezes íntimas, que dizem que há beleza mesmo com mau tempo.
Seu trabalho é como um espelho que reflete as ligações exploradas e acessíveis das estações conhecidas. Solidão, melancolia, fraturas, o canto da terra natal perdida e reencontrada, o desejo a céu aberto, as chagas saindo de todas as suas páginas como segredos cochichados. Emmelie Prophète é uma voz que nos conta coisas em palavras simples. É uma voz que se revela e nos revela.
Desde 2006 ela é responsável pela Divisão Nacional do Livro, ligada ao Ministério da Cultura no Haiti.
Fonte: http://www.lehman.cuny.edu/ile.en.ile/paroles/prophete_emmelie.html
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Un jour
Un jour rappelle-toi
cette ville dépécée
entre le bruit la bêtise et la douleur.
On a créé l’infidélité,
le bleu des trottoirs d’un autre continent.
La folie est devenue utile.
Nous nous appliquons à dessiner
des portes de sortie
Depuis tes yeux
le vide est à réinventer.
Écoute la prière de nos sexes
étouffée par le poids des mots
le trou de votre blue jean
est la seule fenêtre
qui donne sur l’espoir
On rêve tous de trottoirs.
Les cris de notre nudité
sont sans issue
comme vos silences.

Em fotografia de 4 de setembro de 2008, menino resgata carrinho de casa inundada depois da tempestade tropical Hannah, que atingiu Gonaives, no Haiti. A imagem é do fotógrafo Patrick Farrell, do Miami Herald. (Foto: Patrick Farrell/ Miami Herald/ AP)
Um dia
Um dia, lembra-te
desta cidade despedaçada
entre o ruído a estupidez e a dor.
Criamos a infidelidade,
o azul das calçadas de um outro continente.
A loucura tornou-se útil.
Nos esforçamos para desenhar
as portas de saída
Desde teus olhos
o vazio se reinventará.
Ouvi as orações do nosso sexo
sufocada pelo peso das palavras
o buraco no vosso jeans azul
é a única janela
que leva à esperança.
Nós sonhamos todos com as calçadas.
Os gritos de nossa nudez
são inúteis
Como vossos silêncios.
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Rodney Saint-Eloi
Rodney Saint-Eloi nasceu em 27 de agosto de 1963, em Cavaillon, no sul do Haiti. Ele é escritor, editor e acadêmico. Em 1991, fundou, em Porto Príncipe, a Éditions Mémoire, editora que publica escritores haitianos que vivem dentro e fora do país. A editora privilegia o trabalho de jovens escritores ainda não conhecidos devidamente.
O poeta Georges Castera se juntou à editora Mémoire, em 1999, e se tornou seu editor literário. Com Castera, Saint-Eloi fundou uma revista semestral de arte e da literatura, denominada Boutures (Estacas).
Saint-Eloi começou a escrever com a idade de 13 anos. Ele publicou uma dúzia de coleções de poemas, ensaios sobre literatura e pintura. Algumas de suas obras foram traduzidas para o Inglês, o Espanhol e o Japonês. Sua obra é uma lenta travessia de cidades, rios e rostos.
Saint-Eloi mora em Montreal desde 2001. Em março de 2003, ele fundou e dirige a versão canadense da editora Mémoire, que publica obras de autores de diferentes comunidades culturais – África, Caribe e Oceano Índico.
Considerado um dos pontos fortes das comunidades culturais no Canadá, a editora Mémoire retoma obras do patrimônio haitiano com a coleção Anthologie secrète (Carl Brouard, Davertige, Frankétienne) e a série Poèsie (Roussan Camille, Roger Dorsinville, Yanick Jean, Leon Laleau, Anthony Lespes …).
Em Rodney Saint-Eloi é tudo compromisso: redação e edição. Compromisso com o social, compromisso com a literatura, compromisso, finalmente, com tudo que liberação. “O que alimenta os meus escritos” – argumenta ele – “é a cólera contra a estupidez, contra qualquer coisa que nos impede de crescer e de reunir o humano em nós. Contra tudo que se assemelhe a segregação e racismo. Enfim, contra qualquer coisa que impeça o homem de desfrutar plenamente o seu estatuto de homem Minha paixão é o humano e o livro, este objeto sereno que testemunha a presença lúcida das mulheres e dos homens sobre a terra”.
Fonte: http://www.lehman.cuny.edu/ile.en.ile/paroles/saint-eloi.html
Ma Ville
Ma ville est morte, c’est peut-être hier, elle l’étrangère que je connais à peine m’a téléphoné de sa prison et m’a dit trois mots comme l’annonce d’une tragédie: ville mort soudaine. Je me rappelle pas du tout sinon le claquement de cette voix à l1autre bout étouffé, j’en suis gêné de ne pouvoir vous dire la date exacte, c’était, autant que je me rappelle, un matin des années cinquante; et ma ville amnésique est morte comme hier, sans histoire, sans échouage, au pied d’une mer mourante dans la grisaille du vent.
Ma ville est morte hier comme l’ammnandier brun qui me fut ami, sans géographe ni postulant, morte sans sacrement, sans sentiments, dans le labyrinthe des couleurs, avec una tache de sang sur sa paupière gauche, et je me rappellel pas trop le nom des assassins, c’est peut-être trop et c’est peut-être moi, car les murs de nos silences construisent une cathédrale de souvenirs, et chacun pleure en la mort de cette ville sa mort de poche dans un miroir ovale.

Minha Cidade
Minha cidade está morta, talvez ontem, ela a estrangeira que eu conheci na prisão me ligou e disse três palavras, como o anúncio de uma tragédia: Cidade morte súbita. Eu não me lembro a todos que a quebra de sua voz embargada de final l1autre, não tenho vergonha de dizer a data exata era, tanto quanto me lembro, uma de manhã dos anos cinqüenta, e minha cidade amnésica está morta como ontem, sem história, sem encalhar, ao pé de um mar moribundo na pátina cinza do vento.
Minha cidade morreu ontem como a amendoeira parda que me foi amiga, sem geógrafo nem postulante, morte sem sacramentos, num labirinto de cores, com uma mancha de sangue em sua pálpebra esquerda, e eu não lembro mais o nome dos assassinos, isto pode ser demais e pode ser eu, porque o muro de nossos silêncios construiu uma catedral de memórias, e todo mundo chora na morte desta cidade sua morte imediata em um espelho oval.
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A ilha de Cipango
Augusto dos Anjos
Estou sozinho! A estrada se desdobra
Como uma imensa e rutilante cobra
De epiderme finíssima de areia…
E por essa finíssima epiderme
Eis-me passeando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!
A agonia do sol vai ter começo!
Caio de joelhos, trêmulo… Ofereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o Ocaso que nas águas se retrata
Nitidamente reproduz, exata,
A saudade interior que há no meu peito…
Tenho alucinações de toda a sorte…
Impressionado sem cessar com a Morte
E sentindo o que um lázaro não sente,
Em negras nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.
Os olhos volvo para o céu divino
E observo-me pigmeu e pequenino
Através de minúsculos espelhos.
Assim, quem diante duma cordilheira,
Para, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cair de joelhos!
Soa o rumor fatídico dos ventos,
Anunciando desmoronamentos
De mil lajedos sobre mil lajedos…
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!
Mas de repente, num enleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cipango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha
A árvore da perpétua maravilha,
A cuja sombra descansou Colombo!
Foi nessa ilha encantada de Cipango,
Verde, afetando a forma de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extinto
E como sucedeu a Afonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!
Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio…
Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
E em cada rocha um cristalino veio.
Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos
E finalmente me cobri de flores…
Mas veio o vento que a desgraça espalha
E cobriu-me com o pano da mortalha,
Que estou cosendo para os meus amores!
Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade.
E a grandes golpes arrancou as raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!
Invoco os Deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!…
A luz descreve ziguezagues tortos
Enviando à terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dous realejos
Estão chorando meus amores mortos!
E a treva ocupa toda a estrada longa…
O Firmamento é uma caverna oblonga
Em cujo fundo a Via – Láctea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!
Do livro Eu, 1912