Tem criança que não gosta de ovo de galinha, mas nunca vi alguém rejeitar ovo de chocolate. E no domingo de Páscoa os adultos também se transformam em crianças gulosas e ajudam a saborear as gostosuras que o Coelhinho traz para todo mundo.
Os povos antigos – muito antes dos Judeus e Cristãos terem transformado a Páscoa em data tradicional de seus respectivos ritos, embora por diferentes motivos – celebravam a chegada da Primavera com homenagem a Eostre ou Ostera, deusa da estação das flores, das plantas renovadas, das árvores mais uma vez enverdecidas e também da época de reprodução de muitos animais. Ela também é conhecida como Eostra, Eostrae, Eastre e Estre. Note-se que Páscoa em inglês é Easter e em alemão Ostern, com certeza palavras derivadas do nome da deusa
Eostre, deusa pagã da Primavera
Eostre tinha sempre em suas mãos um ovo, a simbolizar o início de nova vida. Junto a ela, o coelho, símbolo da fertilidade. As antigas lendas que envolvem a sua história têm explicação para isso.
Seu nome tem origem no advérbio anglo-saxão ostar, que quer dizer sol nascente ou “sol que sobe. Daí sua associação com a aurora e, depois, com a luz radiante da Primavera, estação que trazia alegria para o povo e coisas boas para a mãe Terra.
Os gregos também tiveram uma deusa para a Primavera e seu nome era Eos. E eos, em grego, quer dizer aurora. Também há quem a identifique com Ishtar e Astarte, respetivamente deusas da Primavera da Babilônia e da Fenícia.
As lendas também contam que Eostre nutria predileção por crianças, que a seguiam por onde passasse. A deusa cantava e brincava com elas. Em um desses encontros, um pássaro pousou nas mãos de Eostre. Ela, então, pronunciou palavras mágicas e transformou o pássaro em seu animal favorito, uma lebre. Embora as crianças tivessem se maravilhado com a magia, meses mais tarde notaram que a lebre não se mostrava alegre, já que não podia mais voar ou cantar. Pediram, portanto, que a deusa retirasse o encantamento, mas suas tentativas foram em vão. Explicou às crianças que, como já estavam no Inverno, suas forças mágicas estavam diminuídas. Mas tentaria novamente na próxima Primavera.
Quando a Primavera retornou, Eostre fez com que a lebre voltasse à forma original de pássaro, durante certo tempo. Grato à deusa, o pássaro botou ovos em sua homenagem. E, também em consideração às crianças, que pediram sua liberdade, o pássaro, quando novamente voltou a ser uma lebre, pintou os ovos e os distribuiu em todo o mundo.
E acabou-se o que era doce.
Acabou não, porque amanhã tem mais chocolate.
Voltemos à Poesia
De grão em grão, a galinha enche o papo. E de ovo em ovo, podemos encher cestas de alegria e cornucópias de Poesia, já que estamos falando de fertilidade e fartura. Fui buscar ovos nos ninhos de Calíope, Polímnia, Euterpe e Erato e elas me ofertaram uma preciosiade: um poema talvez inspirado diretamente pelas musas, em seus tempos de mando no Olimpo, em companhia de Apolo. Trata-se do primeiro poema visual da história da Poesia, composto três séculos antes de Cristo, por Símias de Rodes. Abaixo, uma imagem do poema original, com duas dificuldades: é quase ilegível e o texto está escrito em grego antigo. Em seguida, a exímia versão para o Português, feita pelo poeta brasileiro José Paulo Paes. Como a composição de J. P. Paes foi feita, em suas primeiras publicações, em outros sistemas gráficos, utilizei novos programas para “ovalar” melhor o poema. Sobre o tradutor e o tema dos poemas visuais oBanco da Poesiase dedicará, em breve. (C. de A.)
O Ovo, de Símias de Rodes, versão de José Paulo Paes
Em 1945, eu tinha apenas quatro anos. Um menininho, um little boy, como se diz em inglês. Nos Estados Unidos da América do Norte, havia milhares de little boys iguais a mim. E lá no Japão, no outro lado da Terra, também existiam milhares de little boys e little girls. Todos, como eu, germinando para a vida e dispostos a crescer e fazer parte dessa imensa massa de gente a que chamamos humanidade.
Mas eis que alguns pais desses menininhos e menininhas daquele país e do Japão estavam brigando. E o pai de todos os estadunidenses mandou um avião até a Terra do Sol Nascente para jogar uma bomba ironicamente batizada de Little Boy e matar menininhos e menininhas e adultos e idosos de uma só vez. Era o 6 de agosto daquele ano.
Como se não bastasse a horrível carnificina, três dias depois, no dia 9 de agosto, o mesmo paizão mandou mais um avião jogar outra bomba em um cidade próxima à primeira destruída. Dessa vez o artefato bélico foi batizado com outro irônico nome, Fat Man. E matou e aleijou muitos homens gordos, homens magros, mulheres e mais menininhos e menininhas.
Aí os homens da época – que se diziam adultos, inteligentes e sérios – festejaram porque aquela imensa imolação fizera com que a guerra mundial finalmente acabasse, embora outros adultos, também considerados sérios e inteligentes, tenham dito que a guerra iria logo acabar, de qualquer jeito, mesmo que Little Boy e Fat Man não tivessem interpretado o papel sujo naquela tragédia.
O que os meninos e meninas não conseguiam entender era o porquê daquela briga e de tantas mortes causadas. Os adultos não ensinavam que brigar era coisa feia? Então, por que faziam tanta coisa feia?
Eu, mesmo depois que deixei de ser menino, jamais consegui compreender.
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Mas os poetas nos ajudam a não esquecer e a tentar entender. Por isso, pedimos a dois poetas brasileiros – Manoel de Andrade e Vinicius de Moraes – a energia poderosa de suas palavras para homenagear os que sentiram a dor e o pavor de Hiroshima e Nagasaki naqueles dias trágicos, de forma definitiva ou arrastados até os dias finais pelas sequelas físicas e espirituais. Ao final deste post, um dos poemas de Vinicius, musicado por João Apolinário e Gerson Conrad, do grupo Secos & Molhados, com a voz de Ney Matogrosso.
Hiroshima
xxxxxxxxxManoel de Andrade
Hiroshima, Hiroshima
rosa rubra do oriente
fragrância de cerejeira
céu de anil no sol nascente.
Farol de luz no estuário
remanso dos vendavais
porto e escala dos juncos
roteiro dos samurais.
Verão de quarenta e cinco
no dia seis de agosto.
Clareando as águas do delta
a aurora beija o teu rosto.
Surge o Sol, se abre o dia
na luz e no movimento.
Tudo era paz e alegria e nenhum pressentimento.
Teus colibris revoavam
no fresco azul dos teus ares
eram os casais, eram os ninhos
carícias, trino e cantares.
O arroz na água e na espiga
talo e seiva a palpitar
os rosais desabrochando
e os girassóis a girar.
Vidas… teu rosto eram vidas
nos campos e nos quintais
nos jardins, na verde relva
na algazarra dos pardais.
Folguedos, danças, cantigas
tua infância sem receios
teus escolares em flor
correndo pelos recreios.
As horas cruzavam o dia
os pais e os filhos na praça
o povo cruzava as ruas
cruzava o céu a desgraça.
De repente nos teus ares
a águia do norte, o falcão
e num segundo, em teus lares,
gritos, fogo, turbilhão.
O beijo carbonizando
a luz devorando o dia
a carne viva queimando
na instantânea agonia.
No céu… um avião se afasta
na voz… a missão cumprida
no chão… a dor que se arrasta
e a cidade destruída.
Quem eras tu, Hiroshima
naquele dia distante…?
Eras sonhos e esperanças
incendiados num instante…
Quantos projetos de vida
mil sonhos acalentados
quantas mil juras de amor
nos lábios dos namorados.
Eras filhote no ninho
eras fruto no pomar
canteiro de brancas rosas
e toda a vida a cantar.
Eras mãe, eras criança
e no útero eras semente
ontem eras a esperança
e agora o braseiro ardente
Por que Hiroshima, por quê…?
o punhal de fogo, a explosão…?
Por que cem mil corações
ardendo sem compaixão…?
Tua inocência cremada
na fogueira do delírio.
Tua imagem retratada
na estampa do martírio.
Teu sangue vive na história
nas cicatrizes ardentes
nas lágrimas, na memória
na dor dos sobreviventes.
Quem previu tua agonia?
Quem explodiu tua paz?
Quem tatuou nos teus lábios
as palavras: nunca mais!?
Comandantes, comandados…
quem são os donos da guerra…?
e em que tribunal se julgam,
os genocídios da Terra…?
Por tanta dor, rogo a Deus
na minha prece tardia
que guarde no seu amor
os mártires daquele dia.
Hiroshima, flor da vida,
semente, ressurreição.
Fênix, face renascida.
PAZ, santuário, canção.
xxxxCuritiba, Julho de 2005.
xxxxDo livro CANTARES, editado por Escrituras
A Bomba Atômica
xxxxxxxxxVinicius de Moraes
xxxxxxxxxxIxxxxx
xxxxxxxxxxxxxxxxxe=mc2xxx
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxEinstein
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxxxxxxxDeusa, visão dos céus que me domina xxxxxxxxxxxxxx… tu que és mulher e nada mais! xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx “Deusa”, valsa carioca
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx xxxxxxDos céus descendo xxxxxxMeu Deus eu vejo xxxxxxDe paraquedas? xxxxxxUma coisa branca xxxxxxComo uma forma xxxxxxDe estatuária xxxxxxTalvez a forma xxxxxxDo homem primitivo xxxxxxA costela branca! xxxxxxTalvez um seio xxxxxxDespregado à lua xxxxxxTalvez o anjo xxxxxxTutelar cadente xxxxxxTalvez a Vênus xxxxxxNua, de clâmide xxxxxxTalvez a inversa xxxxxxBranca pirâmide xxxxxxDo pensamento xxxxxxTalvez o troço xxxxxxDe uma coluna xxxxxxDa eternidade xxxxxxApaixonado xxxxxxNão sei indago xxxxxxDizem-me todos xxxxxxÉ A BOMBA ATÔMICA.
xxxxxxVem-me uma angústia.
xxxxxxQuisera tanto xxxxxxPor um momento xxxxxxTê-la em meus braços xxxxxxA coma ao vento xxxxxxDescendo nua xxxxxxPelos espaços xxxxxxDescendo branca xxxxxxBranca e serena xxxxxxComo um espasmo xxxxxxFria e corrupta xxxxxxDo longo sêmen xxxxxxDa Via-Láctea xxxxxxDeusa impoluta xxxxxxO sexo abrupto xxxxxxCubo de prata xxxxxxMulher ao cubo xxxxxxCaindo aos súcubos xxxxxxIntemerata xxxxxxCarne tão rija xxxxxxDe hormônios vivos xxxxxxExacerbada xxxxxxQue o simples toque xxxxxxPode rompê-la xxxxxxEm cada átomo xxxxxxNuma explosão xxxxxxMilhões de vezes xxxxxxMaior que a força xxxxxxContida no ato xxxxxxOu que a energia xxxxxxQue expulsa o feto xxxxxxNa hora do parto.
xxxxxxxxxxII
xxxA bomba atômica é triste xxxCoisa mais triste não há xxxQuando cai, cai sem vontade xxxVem caindo devagar xxxTão devagar vem caindo xxxQue dá tempo a um passarinho xxxDe pousar nela e voar… xxxCoitada da bomba atômica xxxQue não gosta de matar!
xxxCoitada da bomba atômica xxxQue não gosta de matar xxxMas que ao matar mata tudo xxxAnimal e vegetal xxxQue mata a vida da terra xxxE mata a vida do ar xxxMas que também mata a guerra… xxxBomba atômica que aterra! xxxPomba atônita da paz!
xxxPomba tonta, bomba atômica xxxTristeza, consolação xxxFlor puríssima do urânio xxxDesabrochada no chão xxxDa cor pálida do hélium xxxE odor de rádium fatal xxxLoelia mineral carnívora xxxRadiosa rosa radical.
xxxNunca mais, oh bomba atômica xxxNunca, em tempo algum, jamais xxxSeja preciso que mates xxxOnde houver morte demais: xxxFique apenas tua imagem xxxAterradora miragem xxxSobre as grandes catedrais: xxxGuarda de uma nova era xxxArcanjo insigne da paz!
xxxxxxxxxxIII
Bomba atômica, eu te amo! És pequenina
E branca como a estrela vespertina
E por branca eu te amo, e por donzela
De dois milhões mais bélica e mais bela
Que a donzela de Orleans; eu te amo, deusa
Atroz, visão dos céus que me domina
Da cabeleira loura de platina
E das formas aerodivinais
— Que és mulher, que és mulher e nada mais!
Eu te amo, bomba atômica, que trazes
Numa dança de fogo, envolta em gazes
A desagregação tremenda que espedaça
A matéria em energias materiais!
Oh energia, eu te amo, igual à massa
Pelo quadrado da velocidade
Da luz! Alta e violenta potestade
Serena! Meu amor, desce do espaço
Vem dormir, vem dormir no meu regaço
Para te proteger eu me encouraço
De canções e de estrofes magistrais!
Para te defender, levanto o braço
Paro as radiações espaciais
Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me
Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome
Para te defender, matéria dura
Que és mais linda, mais límpida e mais pura
Que a estrela matutina! Oh bomba atômica
Que emoção não me dá ver-te suspensa
Sobre a massa que vive e se condensa
Sob a luz! Anjo meu, fora preciso
Matar, com tua graça e teu sorriso
Para vencer? Tua enérgica poesia
Fora preciso, oh deslembrada e fria
Para a paz? Tua fragílima epiderme
Em cromáticas brancas de cristais
Rompendo? Oh átomo, oh neutrônio, oh germe
Da união que liberta da miséria!
Oh vida palpitando na matéria
Oh energia que és o que não eras
Quando o primeiro átomo incriado
Fecundou o silêncio das Esferas:
Um olhar de perdão para o passado
Uma anunciação de primaveras!
Rosa de Hiroshima
xxxxxxxxxVinicius de Moraes
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada