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Perdoem-me, mas é preciso relembrar o pavor e a dor

Em 1945, eu tinha apenas quatro anos. Um menininho, um little boy, como se diz em inglês. Nos Estados Unidos da América do Norte, havia milhares de little boys iguais a mim. E lá no Japão, no outro lado da Terra, também existiam milhares de little boys e little girls. Todos, como eu, germinando para a vida e dispostos a crescer e fazer parte dessa imensa massa de gente a que chamamos humanidade.

Mas eis que alguns pais desses menininhos e menininhas daquele país e do Japão estavam brigando. E o pai de todos os estadunidenses mandou um avião até a Terra do Sol Nascente para jogar uma bomba ironicamente batizada de Little Boy e matar menininhos e menininhas e adultos e idosos de uma só vez. Era o 6 de agosto daquele ano.

Como se não bastasse a horrível carnificina, três dias depois, no dia 9 de agosto, o mesmo paizão mandou mais um avião jogar outra bomba em um cidade próxima à primeira destruída. Dessa vez o artefato bélico foi batizado com outro irônico nome, Fat Man. E matou e aleijou muitos homens gordos, homens magros, mulheres e mais menininhos e menininhas.

Aí os homens da época – que se diziam adultos, inteligentes e sérios – festejaram porque aquela imensa imolação fizera com que a guerra mundial finalmente acabasse, embora outros adultos, também considerados sérios e inteligentes, tenham dito que a guerra iria logo acabar, de qualquer jeito, mesmo que Little Boy e Fat Man não tivessem interpretado o papel sujo  naquela tragédia.

O que os meninos e meninas não conseguiam entender era o porquê daquela briga e de tantas mortes causadas. Os adultos não ensinavam que brigar era coisa feia? Então, por que faziam tanta coisa feia?

Eu, mesmo depois que deixei de ser menino, jamais consegui compreender.

………………………………..

Mas os poetas nos ajudam a não esquecer e a tentar entender. Por isso, pedimos a dois poetas brasileiros – Manoel de Andrade e Vinicius de Moraes – a energia poderosa de suas palavras para homenagear os que sentiram a dor e o pavor de Hiroshima e Nagasaki naqueles dias trágicos, de forma definitiva ou arrastados até os dias finais pelas sequelas físicas e espirituais. Ao final deste post, um dos poemas de Vinicius, musicado por João Apolinário e Gerson Conrad, do grupo Secos & Molhados, com a voz de Ney Matogrosso.

Hiroshima

xxxxxxxxxManoel de Andrade

Hiroshima, Hiroshima
rosa rubra do oriente
fragrância de cerejeira
céu de anil no sol nascente.

Farol de luz no estuário
remanso dos vendavais
porto e escala dos juncos
roteiro dos samurais.

Verão de quarenta e cinco
no dia seis de agosto.
Clareando as águas do delta
a aurora beija o teu rosto.

Surge o Sol, se abre o dia
na luz e no movimento.
Tudo era paz e alegria
e nenhum pressentimento.

Teus colibris revoavam
no fresco azul dos teus ares
eram os casais, eram os ninhos
carícias, trino e cantares.

O arroz na água e na espiga
talo e seiva a palpitar
os rosais desabrochando
e os girassóis a girar.

Vidas… teu rosto eram vidas
nos campos e nos quintais
nos jardins, na verde relva
na algazarra dos pardais.

Folguedos, danças, cantigas
tua infância sem receios
teus escolares em flor
correndo pelos recreios.

As horas cruzavam o dia
os pais e os filhos na praça
o povo cruzava as ruas
cruzava o céu a desgraça.

De repente nos teus ares
a águia do norte, o falcão
e num segundo, em teus lares,
gritos, fogo, turbilhão.

O beijo carbonizando
a luz devorando o dia
a carne viva queimando
na instantânea agonia.
Hiroshima
No céu… um avião se afasta
na voz… a missão cumprida
no chão… a dor que se arrasta
e a cidade destruída.

Quem eras tu, Hiroshima
naquele dia distante…?
Eras sonhos e esperanças
incendiados num instante…

Quantos projetos de vida
mil sonhos acalentados
quantas mil juras de amor
nos lábios dos namorados.

Eras filhote no ninho
eras fruto no pomar
canteiro de brancas rosas
e toda a vida a cantar.

Eras mãe, eras criança
e no útero eras semente
ontem eras a esperança
e agora o braseiro ardente

Por que Hiroshima, por quê…?
o punhal de fogo, a explosão…?
Por que cem mil corações
ardendo sem compaixão…?

Tua inocência cremada
na fogueira do delírio.
Tua imagem retratada
na estampa do martírio.

Teu sangue vive na história
nas cicatrizes ardentes
nas lágrimas, na memória
na dor dos sobreviventes.

Quem previu tua agonia?
Quem explodiu tua paz?
Quem tatuou nos teus lábios
as palavras: nunca mais!?

Comandantes, comandados…
quem são os donos da guerra…?
e em que tribunal se julgam,
os genocídios da Terra…?

Por tanta dor, rogo a Deus
na minha prece tardia
que guarde no seu amor
os mártires daquele dia.

Hiroshima, flor da vida,
semente, ressurreição.
Fênix, face renascida.
PAZ, santuário, canção.

xxxxCuritiba, Julho de 2005.
xxxxDo livro CANTARES, editado por Escrituras

A Bomba Atômica

xxxxxxxxxVinicius de Moraes

xxxxxxxxxxIxxxxx

xxxxxxxxxxxxxxxxxe=mc2xxx

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxEinstein

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
xxxxxxxxxxxxDeusa, visão dos céus que me domina
xxxxxxxxxxxxxx… tu que és mulher e nada mais!

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx “Deusa”, valsa carioca

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
xxxxxxDos céus descendo
xxxxxxMeu Deus eu vejo
xxxxxxDe paraquedas?
xxxxxxUma coisa branca
xxxxxxComo uma forma
xxxxxxDe estatuária
xxxxxxTalvez a forma
xxxxxxDo homem primitivo
xxxxxxA costela branca!
xxxxxxTalvez um seio
xxxxxxDespregado à lua
xxxxxxTalvez o anjo
xxxxxxTutelar cadente
xxxxxxTalvez a Vênus
xxxxxxNua, de clâmide
xxxxxxTalvez a inversa
xxxxxxBranca pirâmide
xxxxxxDo pensamento
xxxxxxTalvez o troço
xxxxxxDe uma coluna
xxxxxxDa eternidade
xxxxxxApaixonado
xxxxxxNão sei indago
xxxxxxDizem-me todos
xxxxxxÉ A BOMBA ATÔMICA.
CogumeloAtômico

xxxxxxVem-me uma angústia.

xxxxxxQuisera tanto
xxxxxxPor um momento
xxxxxxTê-la em meus braços
xxxxxxA coma ao vento
xxxxxxDescendo nua
xxxxxxPelos espaços
xxxxxxDescendo branca
xxxxxxBranca e serena
xxxxxxComo um espasmo
xxxxxxFria e corrupta
xxxxxxDo longo sêmen
xxxxxxDa Via-Láctea
xxxxxxDeusa impoluta
xxxxxxO sexo abrupto
xxxxxxCubo de prata
xxxxxxMulher ao cubo
xxxxxxCaindo aos súcubos
xxxxxxIntemerata
xxxxxxCarne tão rija
xxxxxxDe hormônios vivos
xxxxxxExacerbada
xxxxxxQue o simples toque
xxxxxxPode rompê-la
xxxxxxEm cada átomo
xxxxxxNuma explosão
xxxxxxMilhões de vezes
xxxxxxMaior que a força
xxxxxxContida no ato
xxxxxxOu que a energia
xxxxxxQue expulsa o feto
xxxxxxNa hora do parto.

xxxxxxxxxxII

xxxA bomba atômica é triste
xxxCoisa mais triste não há
xxxQuando cai, cai sem vontade
xxxVem caindo devagar
xxxTão devagar vem caindo
xxxQue dá tempo a um passarinho
xxxDe pousar nela e voar…
xxxCoitada da bomba atômica
xxxQue não gosta de matar!

xxxCoitada da bomba atômica
xxxQue não gosta de matar
xxxMas que ao matar mata tudo
xxxAnimal e vegetal
xxxQue mata a vida da terra
xxxE mata a vida do ar
xxxMas que também mata a guerra…
xxxBomba atômica que aterra!
xxxPomba atônita da paz!

xxxPomba tonta, bomba atômica
xxxTristeza, consolação
xxxFlor puríssima do urânio
xxxDesabrochada no chão
xxxDa cor pálida do hélium
xxxE odor de rádium fatal
xxxLoelia mineral carnívora
xxxRadiosa rosa radical.

xxxNunca mais, oh bomba atômica
xxxNunca, em tempo algum, jamais
xxxSeja preciso que mates
xxxOnde houver morte demais:
xxxFique apenas tua imagem
xxxAterradora miragem
xxxSobre as grandes catedrais:
xxxGuarda de uma nova era
xxxArcanjo insigne da paz!

xxxxxxxxxxIII

Bomba atômica, eu te amo! És pequenina
E branca como a estrela vespertina
E por branca eu te amo, e por donzela
De dois milhões mais bélica e mais bela
Que a donzela de Orleans; eu te amo, deusa
Atroz, visão dos céus que me domina
Da cabeleira loura de platina
E das formas aerodivinais
— Que és mulher, que és mulher e nada mais!
Eu te amo, bomba atômica, que trazes
Numa dança de fogo, envolta em gazes
A desagregação tremenda que espedaça
A matéria em energias materiais!
Oh energia, eu te amo, igual à massa
Pelo quadrado da velocidade
Da luz! Alta e violenta potestade
Serena! Meu amor, desce do espaço
Vem dormir, vem dormir no meu regaço
Para te proteger eu me encouraço
De canções e de estrofes magistrais!
Para te defender, levanto o braço
Paro as radiações espaciais
Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me
Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome
Para te defender, matéria dura
Que és mais linda, mais límpida e mais pura
Que a estrela matutina! Oh bomba atômica
Que emoção não me dá ver-te suspensa
Sobre a massa que vive e se condensa
Sob a luz! Anjo meu, fora preciso
Matar, com tua graça e teu sorriso
Para vencer? Tua enérgica poesia
Fora preciso, oh deslembrada e fria
Para a paz? Tua fragílima epiderme
Em cromáticas brancas de cristais
Rompendo? Oh átomo, oh neutrônio, oh germe
Da união que liberta da miséria!
Oh vida palpitando na matéria
Oh energia que és o que não eras
Quando o primeiro átomo incriado
Fecundou o silêncio das Esferas:
Um olhar de perdão para o passado
Uma anunciação de primaveras!

Rosa de Hiroshima

xxxxxxxxxVinicius de Moraes

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada

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Ilustrações: C. de A.