Arquivo do mês: junho 2009

Dicas de Fernando Pessoa – 04

fernando.pessoaEstTEm junho de 1930, Fernando Pessoa é consultado por um jovem literato, com 23 anos incompletos, sobre um livro que este produzira. A carta do amigo foi respondida com amabilidade, em lições de mestre, com observações claras sobre o que ele interpretava como sensibilidade artística e sua aplicação na obra de arte. Dá conselhos, critica o que ainda crê imaturo e indica caminhos para o amadurecimento. O nome do amigo: Adolfo Rocha, que, mais tarde, adotaria o pseudônimo de Miguel Torga e se tornaria também um dos grandes mestres da literatura portuguesa. Transcrevo parte da carta de FP a Adolfo Rocha, o cerne de seu aconselhamento.

xxxxxxxEm substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus é o seguinte:
xxxxxxx1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;
xxxxxxx2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;
xxxxxxx3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
xxxxxxx4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização direta e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual (prim. versão: tirem da sensação o que não pode ser sensível aos outros e ao mesmo tempo, para compensar, reforçam o que lhes pode ser sensível); b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objetivo – construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
xxxxxxx5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.

xxxxxxxDir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo – isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”.

xxxxxxx(em Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Edições Ática: Lisboa, 1973)

Para o dia de hoje, um duplo soneto a quatro mãos

Há cristãos e não cristãos. Há católicos e não católicos. Há evangélicos, há protestantes, budistas, espíritas, existem os que se dizem ateus, há os agnósticos. Há o islamismo e o judaísmo.

Mas há também a Poesia, uma espécie de religião universal que desvenda segredos da vida, depura sensações, faz da palavra magia. Por isso, neste feriado, onde os católicos se reunem para lembrar a última ceia de Cristo, recolhi em Asamblea de Palabras o poema Corpus Christi – escrito pelos irmãos Antonio e Carlos Murciano, nascidos em Arcos de la Frontera, Cádiz, Espanha,  en 1931 e 1929, respectivamente – e publicado no livro Poemas para orar (Biblioteca de autores cristianos, Madrí, 2004, ed. de Miguel Combarros). É poesia, merece a leitura por todos de todas as crenças. C. de A.

CorpusChristi2009Antonio e Carlos Murciano

Corpus Christi

Todo fue así: tu voz, tu dulce aliento
sobre un trozo de pan que bendijiste
que en humildad partiste y repartiste
haciendo despedida y testamento.

“Así mi cuerpo os doy como alimento…”
¡Qué prodigio de amor! Porque quisiste,
diste tu carne al pan y te nos diste,
Dios, en el trigo para el sacramento.

Y te quedaste aquí, patena viva;
virgen alondra que le nace al alba
de vuelo siempre y sin cesar cautiva.

Hostia de nieve, nube, nardo, fuente;
gota de luna que ilumina y salva.
Y todo ocurrió así, sencillamente.

Sencillamente, como el ave cuando
inaugura, de un vuelo, la mañana;
sencillamente, como la fontana
canta en la roca, agua de luz manando:

sencillamente, como cuando ando,
como cuando Tú andabas la besana,
cuando calmabas sed samaritana
cuando te nos morías perdonando.

Sencillamente. Hora de paz. ¡Qué leves
tus manos para el pan, para el amigo!
Cena de doce y Dios. Noche de Jueves.

Y era en Jerusalén la primavera.
Y era blanco milagro ya aquel trigo.
Sencillamente: “Éste es mi cuerpo”. Y era.

Corpus Christi

Tudo foi assim: tua voz, teu doce alento
sobre um naco de pão que bendissestes
que em humildade partistes e repartistes
fazendo despedida e testamento.

“Assim meu corpo vos dou como alimento…”
Que prodígio de amor! Porque quisestes,
destes tua carne ao pão e ela nos destes,
Deus, dentro do trigo para o sacramento.

E aquí permanecestes, pátena viva;
virgem cotovia que aparece à alva
sempre do voo e sem cessar cativa.

Hóstia de neve, nuvem albescente,
gota de lua que ilumina e salva.
E tudo ocorreu assim, tão simplesmente.

Simples assim, como a ave quando
inaugura, com um voo, a aurora;
simplesmente, como a canora
água na pedra, vida e luz manando.

Simplesmente, como quando ando,
como quando Tu andavas na abesana,
quando pedias água à samaritana
quando agonizavas, já nos perdoando.

Simplesmente. Hora de paz. São teus
o pão, o vinho, o gesto doce e  amigo.
Quinta à noite. Ceia de doze e Deus.

E era em Jerusalém a primavera.
E era alvo milagre já aquele trigo.
Simplesmente: “Este é meu corpo”. E era.

xxxxxxxxxxxxxxTradução: C. de A.

Tudo foi assim: tua voz, teu doce alento

sobre um naco de pão que bendissestes

que em humildade partistes e repartistes

fazendo despedida e testamento.

“Assim meu corpo vos dou como alimento…”

Que prodígio de amor! Porque quisestes,

destes tua carne ao pão e ela nos destes,

Deus, dentro do trigo para o sacramento.

E aquí permanecestes, patena viva;

virgem cotovia que aparece à alva

sempre do voo e sem cessar cativa.

Hóstia de neve, nuvem albescente,

gota de lua que ilumina e salva.

E tudo ocorreu assim, tão simplesmente.

Simples assim, como a ave quando

inaugura, com um voo, a aurora;

simplesmente, como a canora

água na pedra, vida e luz manando:

simplesmente, como quando ando,

como quando Tu andavas na abesana,

quando acalmavas sede samaritana

quando agonizavas, nos perdoando.

Simplesmente. Hora de paz. São teus

o pão, o vinho, o gesto doce e  amigo.

Quinta à noite. Ceia de doze e Deus.

E era em Jerusalem a primavera.

E era alvo milagre já aquele trigo.

Simplesmente: “Este é meu corpo”. E era.

No oriente, um mundo de Sophia

Sophia

Recordo-me de descobrir que num poema era preciso que cada palavra fosse necessária, as palavras não podem ser decorativas, não podiam servir só para ganhar tempo até ao fim do decassílabo, as palavras tinham que estar ali porque eram absolutamente indispensáveis. Isso foi uma descoberta.

Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto a 6 de Novembro de 1919 e faleceu em Lisboa a 2 de Julho de 2004. Da infância aristocrática e feliz passada no Porto ficaram imagens e reminiscências que povoam, de forma explícita ou alusiva, a sua obra poética e ficcional, particularmente os contos para crianças: a casa do Campo Alegre, o jardim, a praia da Granja (sobre a qual escreveria, em 1944, em carta a Miguel Torga: “A Granja é o sítio do mundo de que eu mais gosto. Há aqui qualquer alimento secreto”), os Natais celebrados segundo a tradição nórdica (também evocados por Ruben A. na sua autobiografia O Mundo à Minha Procura) foram lugares e vivências que marcaram de forma determinante o imaginário da autora. Clara Rocha (ler mais no site do Instituto Camões).

São suas obras de poesia:Poesia, Coimbra, ed. Da Autora, 1944; Dia do Mar, Lisboa, Edições Ática, 1947;  Coral, Porto, Livraria Simões Lopes, 1950; No Tempo Dividido, Lisboa, Guimarães Editores, 1954; Mar Novo, Lisboa, Guimarães Editores, 1958; O Cristo Cigano, Lisboa, Minotauro, 1961; Livro Sexto, Lisboa, Livraria Morais Editora, 1962; Geografia, Lisboa, Ática, 1967; Dual, Lisboa, Moraes Editores, 1972; O Nome das Coisas, Lisboa, Moraes Editores, 1977; Navegações, Lisboa, IN-CM, 1983, Ilhas, Lisboa, Texto Editora, 1989; Musa, Lisboa, Editorial Caminho, 1994; O Búzio de Cós e Outros Poemas, Lisboa, Editorial Caminho, 1997.

No poema que publicamos, Sophia sintetiza parte da saga da libertação do Timor Leste, o representante da lusofonia no Oriente.

PoemaTimor

Duas solidões de Francisco Cenamor

cenamor-cuerpo-entero-sentado-2No início deste blog, publiquei três poemas de Francisco Cenamor, poeta espanhol que mantém um site chamado Asamblea de Palabras, no qual o Banco da Poesia já foi citado. Volto ao poeta, escritor e dramaturgo de Leganés (perto de Madrí) com mais dois poemas, com o tema soledad/solidão. Para ver os primeros poemas de Cenamor depositados no Banco, clique aqui.

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primera soledad

al fin aceptar la soledad
la mía
no me pareció tan doloroso
me pareció más bien
de una soledad sonora
yo
frente al oscuro escenario
cuando cae pesadamente el telón
yo
paseando por las calles luminosas de
barcelona cuando aún me resistía a estar solo
yo
mirando desde el tren las imposibles
curvas de una joven imposible
yo
decidiendo cortinas y alfombras
que decoren con gusto mi soledad
yo
comprando ropa juvenil a la par que
elegante para gustarme a mí mismo
yo
riéndome de mis propias tonterías
sobre la manida soledad del artista
yo
escribiéndome versos

primeira solidão

enfim,  aceitar a solidão
a minha
não me pareceu tão doloroso
pareceu-me antes
uma solidão sonora
eu
frente ao escuro cenário
quando cai pesadamente a cortina
eu
passeando pelas ruas luminosas de
barcelona quando ainda resistia estar sozinho
eu
olhando do trem as impossíveis
curvas de uma jovem impossível
eu
decidindo cortinas e tapetes
que decorem com gosto minha solidão
eu
comprando roupa juvenil ao mesmo tempo
elegante para gostar de mim mesmo
eu
rindo-me de minhas próprias besteiras
sobre a batida solidão do artista
eu
escrevendo-me versos

Soledad2

segunda soledad

solo
soledad sorprendente
soledad sonora
soledad rayada de sol
sol bemol sostenido
banda sonora de tanta soledad
sórdida soledad a ratos
arma arrojadiza
contra los que me dejaron solo
soledad ausente y suave
soledad tan desolada
soledad estando solo
estando entre tanta gente
soledad conmigo
soledad contigo
soledad con trigo y avena
soledad con humo y cemento
soledad a ciegas
soledad a oscuras
soledad sin tacto
contacto con la soledad
acepto la soledad
vivo la soledad
ya soy soledad

segunda solidão


solidão surpreendente
solidão sonora
solidão raiada de sol
sol bemol sustenido
trilha sonora de tanta solidão
sórdida solidão às vezes
arma arremessada
contra os que me deixaram só
solidão ausente e suave
solidão tão desolada
solidão por estar só
só entre tanta gente
solidão comigo
solidão contigo
solidão com trigo e aveia
solidão com fumaça e cimento
solidão às cegas
solidão às escuras
solidão sem tato
contato com a solidão
aceito a solidão
vivo a solidão
já sou solidão

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Ilustração e versão ao Português: C. de A.

Barcos de papel: quem não brincou?

Navegar é preciso

Cleto de Assis

NavegarÉpreciso

Na rua, a poça formada pela chuva

virava o oceano dos barquinhos de papel.

Se outro menino chegava

poderiam ocorrer batalhas navais ou regatas

até a água encharcar os cascos ou alguns irem a pique

sob o ribombar de pequenas pedras fingindo balas de canhão.

A chegada de uma bola ou uma historinha nova

levava os barcos ao reino do esquecimento,

mesmo que alguns ainda navegassem,

cheios de sonhos e tripulados por ilusões.

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Quantos terão chegado a seus destinos?

Deborah O’Lins de Barros deposita dois poemas autobiográficos

deborahDeborah O’ Lins de Barros é uma catarinense de Itajaí, nascida no Rio de Janeiro, que mantém o blog Moça deitada na grama.

Ela diz em seu blog, à guisa de resumo biográfico: “Sou a encarnação de Álvares de Azevedo. Sou a personagem da crônica do Drummond (Moça deitada na grama). Sou a amante de Edgar Allan Poe. Sou a irmã mais nova de Pagu. I am Lucy in the grass with diamonds, words and melodies.

Abaixo, dois poemas de Deborah,  juntos porque fazem parte de uma mesma série: Autobiografia. Ela explica: “Poesia pode falar de qualquer coisa. Essas, no caso, falam de mim. São meus sentimentos sem metáforas, são crônicas em verso. Confissões, declarações. Como diria Fred Krueger, bem-vindo ao meu mundo!”.

Bastidores de mim

máscaras
Sinto saudade
Do silêncio de luz
Atrás do palco;
Do breu de palavras
Nas cochias;
Dos contra-regras,
Cenários antigos,
pedaços de figurinos usados,
Espalhados.

Sinto saudade
De odiar o cheiro
Do gelo seco;
E de amar a recepção
Nos camarins.
Olhares parabenizando,
Olhares agradecendo…
Mas eu não nasci para o teatro
E o teatro não nasceu para mim.

…………………..

Não, eu não sou uma atriz… embora ame essa atmosfera, sou egoísta demais para escolher um personagem apenas: a vantagem de escrever é que posso tê-los todos para mim!!

Reminiscência


xxxxxxEm meados de 2007 fiz um curso no SESC
xxxxxxcom a poetisa gaúchaTelma Scherer
xxxxxx(http://www.telmascherer.blogspot.com/).
xxxxxxLi e conheci bastante coisa diferente e, claro,
xxxxxxfui influenciada por essas novas formas.
xxxxxxE que fique para o futuro, para quem um dia
xxxxxxquiser montar uma biografia minha (hehe),
xxxxxxque Telma Scherer foi um divisor de águas
xxxxxxna minha produção em verso. E esse poema
xxxxxxmarca a nova fase. “Reminiscência” me
xxxxxxexorcisou do romantismo da adolescência.
xxxxxxCom ele “adulteci”.

OCorvo-1
Às vezes tenho certeza
quase absolutamente,
de que sou meio louca,
verdadeiramente.
Pois não tenho necessidade
de ácido licérgico
e nem de lítio.
Mas quando vêm reminiscências
de determinados fatos
há muito ocorridos,
me vem uma vontade insana
de ausência.
Ausência de pensamentos,
mas não de sentimentos.
Há uma necessidade
de estar só.
Inclusive a minha própria presença
me incomoda,
quando essas reminiscências
me recordam que
I miss the comfort in being sad.

Acho que relembrar
as mazelas do ontem
é como folhear
um álbum de fotos onde
a trilha sonora escolhida
é a responsável por virar as páginas.
E agora resta a dúvida:
será que remexer lembranças
é como lembrar da dívida
que tenho comigo mesma?
Isso, na verdade,
não importa.
Pois se o Corvo diz Nunca Mais,
não há portas
que abram para eu voltar.
E, pensando bem, parece hilário
pois forjar tristeza
se tornou, nada mais
que recurso literário.
A saudade existe para provar
que o passado não mata
e as reminiscências são só um mote
para entender que o que não mata
nos torna mais fortes.

Encontros com Miguel Torga

JCDefreitas-2A propósito do post sobre Miguel Torga (abaixo), o sociólogo e professor João Correia de Freitas enviou uma crônica sobre o poeta, a quem conheceu quando fazia pós-graduação em Portugal. Como diriam os obaobistas da imprensa, esta é uma exclusiva do Banco da Poesia. Somos gratos, professor Defreitas.

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O Poesta não morre

xxxxxVi Miguel Torga duas vezes.  A primeira em sua casa, em Coimbra, em 1966, quando eu lá estudava, com um grupo de brasileiros. Era uma figura interessante. Torga02Homem de grande porte, rosto rude, com profundos vincos, um nariz enorme que lhe saltava do rosto. Parecia sofrido e machucado pelo tempo. Sua voz pausada e grave lhe saía da boca com muita propriedade. Tinha ele seus 56 anos, com um aspecto mais de agricultor ou de lenhador trasmontano do que de um médico e muito menos de um poeta. Em sua sala, despojada, com móveis de madeira escura, sólidos e sóbrios, nos fez adentrar e sentar. Olhava-nos fixamente com seus olhos fundos, por trás de sobrancelhas espessas.

xxxxxNão sabíamos bem por que o visitávamos. Talvez mais por curiosidade do que por conhecimento de sua obra. Ele parecia sem muita paciência e mostrava-se pouco amistoso, ou melhor, cerimonioso e um pouco distante. Entretanto, depois de servir-nos um porto, perguntar-nos de que lugar do Brasil éramos e o que fazíamos em Coimbra,  aquele homem com cara rude começou a se transfigurar, ao lembrar-se de sua vida de cinco anos no Brasil e de seu reencontro com o país, já poeta.

xxxxxFazia muito frio, naquele dia. Nunca houvera um frio tão intenso em Coimbra como nesse novembro, dizia ele. Se não me engano, até nevou naquele ano. Lembro-me bem que tive a curiosidade de perguntar-lhe de onde viria o nome de “anta”, pois ele havia nascido em  São Martinho de Anta, Trás-os-Montes, terra também de Aquilino Ribeiro. Sabia eu que São Martinho era famoso em Portugal, pois a 11 de novembro, dedicado a ele, era corrente o dito português: “Dia de São Martinho, mata o teu porco e abre o teu vinho”. Explicou-nos Torga que , realmente, novembro era época do “água pé”, vinho fraco e o primeiro a ser aberto; que  Lamego era terra de bom vinho; que a base da alimentação beirôa, onde agora vivia, era de carne de porco, haja vista a Bairrada, próxima dalí, ser a terra dos leitões. Explicou, também, que “anta” era um nome que designaria um grande monte de terra que servia, antigamente, para demarcar a divisa de territórios. Enfim, foi uma conversa muito descontraída e interessante, onde falou-se de tudo, inclusive de poesia, é claro.

xxxxxA segunda e última vez em que ví Miguel Torga, não falamos, não conversamos. Eu e um amigo haviamos saído de uma tasca, numa tarde cinzenta, onde fomos beber um cálice de “aguardente de medronho”, fortíssima, para espantar o frio. Ao longe, numa ponte sobre o Rio Mondego, de onde se via a Igreja de Santa Cara, avistamos o vulto de um homem, que aparentava ser de porte bem alto. Olhava fixamente as águas do Mondego, que passavam calmas por debaixo da ponte, e que fôra motivo de tantos fados imorredouros de Coimbra. Depois, mais de perto, reparamos tratar-se de Torga, com seu pesado capote de frio, com as golas viradas para cima, que a passos pausados afastava-se daquele local. Ficamos ali por uns minutos e notamos que peixes nadavam em baixo da ponte. Pensamos que o rio estava sem poluição, embora hoje, talvez, não se possa dizer o mesmo.

xxxxxFoi assim que conheci Miguel Torga, um grande poeta que tudo tem a ver com Coimbra, com as capas pretas e batinas, com as tricanas de Bernardim, com a Sé, ao pé da qual muitos fados-de-Coimbra escutamos; da Queima das Fitas e do fumo  subindo aos céus. Enfim, hoje leio as obras de Torga e deleito-me com o livro Traço de União, onde ele declara seu profundo amor pelo Brasil.  Em 1995, li a noticia da morte de Miguel Torga. Tenho certeza que Torga vive em suas poesias e tenho certeza , agora mais do que nunca, de que os Poetas não morrem.

Apelo de Marilda Confortin: PROCURA-SE

Mandado de busca e apreensão contra a Poesia

Procura_se

Senhores, minha poesia escafedeu-se.
Procurem nos seguintes locais:

xxxxxNo calo dos dedos dos músicos,
xxxxxNo quadro negro das escolas,
xxxxxNo fascínio quântico dos físicos,
xxxxxNa placa do cego que esmola.

xxxxxProcurem nos diários e discos rígidos,
xxxxxNos papiros, nas lápides dos túmulos,
xxxxxNas paredes dos banheiros públicos,
xxxxxNas gavetas e nos grafites dos muros.

xxxxxProcurem nas pedras das cavernas,
xxxxxNos evangelhos apócrifos e escrituras,
xxxxxNos templos, conventos e tabernas,
xxxxxNas democracias e nas ditaduras

xxxxxProcurem nas celas e nos parreirais,
xxxxxNos campos de girassóis maduros,
xxxxxNos tercetos modernos e haicais,
xxxxxNo passado, presente e no futuro.

xxxxxProcurem nos álbuns de fotografias,
xxxxxNos bares, museus, sebos e alcorões,
xxxxxSe não encontrarem, revirem as livrarias,
xxxxxCostumam escondê-la nos porões.

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Ver Maisrilda, no cofre do Banco da Poesia:

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e em http://iscapoetica.blogspot.com/

Helena Kolody, a indizível alegria de criar

RetratHKHelena Kolody, a consagrada poeta do Paraná, inaugurou em 1941 a série de mulheres haicaístas do país. Dona de uma enorme coleção de adjetivos-virtudes, palavras-emblemas, atribuídos a ela pelo povo paranaense, Helena deixou uma obra que, na qualidade, lembra outra grande poeta: Cecília Meirelles. O amor que ela conquistou pelos poemas, pelos livros, juntou-se à lira de sua poesia feita de canções à vida, de solidariedade,  natureza e inquietude da condição humana. Pode-se brincar dizendo que as letras iniciais do nome da poeta, HK, são as mesmas de quando se grafa hai-kai, como ela o fazia.
………………….
Carlos Drummond de Andrade enviou, em 1980, uma pequena carta à poeta, onde dizia: “Tão simples, tão pura – e tão funda – a poesia de Infinito Presente. Você domina a arte de exprimir o máximo no mínimo, e com que meditativa sensibilidade!”
………………….
Drummond, segundo Kamita, fez um elogio dizendo ter ficado feliz com poemas como esse, “em que à expressão mais simples e discreta se alia uma fina intuição dos imponderáveis poéticos”. (José Marins*)

Helena Kolody (Cruz Machado, 12 de outubro de 1912 — Curitiba, 15 de fevereiro de 2004) foi morar na Mansão dos Poetas Eternos há cinco anos. Sua obra ficou por aqui, a inspirar novos poetas e, principalmente, a insistir que a linguagem poética vê mais longe, nos ensina a olhar as profundezas da vida e as alturas dos ideais humanos.Seus pais foram imigrantes ucranianos que se conheceram no Brasil. Helena passou parte da infância na cidade de Rio Negro, onde fez o curso primário. Estudou piano, pintura e, aos doze anos, fez seus primeiros versos.

Seu primeiro poema publicado foi A Lágrima, aos 16 anos de idade, e a divulgação de seus trabalhos, na época, era através da revista Marinha, de Paranaguá. Aos 20 anos, Helena iniciou a carreira de professora do Ensino Médio e inspetora de escola pública. Lecionou no Instituto de Educação de Curitiba por 23 anos. Helena, segundo o que consta em seu livro Viagem no Espelho, foi professora da Escola de Professores da cidade de Jacarezinho, onde lecionou por vários anos. Seu primeiro livro, publicado em 1941, foi Paisagem Interior, dedicado a seu pai, Miguel Kolody, que faleceu dois meses antes da publicação. (extrato de Wikipédia – http://pt.wikipedia.org/wiki/Helena_Kolody)

O Banco da Poesia fa justa homenagem à poeta paranaense, com três poemas ilustrados, em versão gráfica de C. de A.

FimDeJornada

IlhasPoema

Tempo

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*José Marins é de Curitiba, escritor, poeta. Mestre em Educação pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), haicaísta membro do fórum Haikai-l (http://www.kakinet.com/lista), autor de POEZEN (haicai); Pinha-Pinhão, Pinhão-Pinheiro (renga, juntamente com o haicaísta Sérgio F. Pichorim), Karumi (haicai), e Bico do João-de-Barro (haicai), inéditos.

De Portugal para a eternidade, via Brasil

miguel+torgaOLDMiguel Torga, pseudônimo de Adolfo Correia Rocha, (São Martinho de Anta, Vila Real, 12 de Agosto de 1907 — Coimbra, 17 de Janeiro de 1995) foi um dos mais importantes escritores portugueses do século XX.

Filho de gente humilde do campo do concelho de Sabrosa, no Alto Douro, Portugal, o menino Adolfo vai, aos dez anos, para uma casa apalaçada do Porto, habitada por parentes da família. Com uniforme branco servia de porteiro, moço de recados, regava o jardim, limpava o pó e polia os metais da escadaria nobre, atendia campainhas. Foi despedido um ano depois, devido à constante insubmissão. Em 1918, vai para o Seminário de Lamego, onde viveu um dos anos cruciais da sua vida, tendo melhorado os conhecimentos de português, da geografia, da história, aprendido o latim e adquirido familiaridade com os textos sagrados. No fim das férias comunicou ao pai que não seria padre. Para Miguel Torga, nenhum deus é digno de louvor: na sua condição omnisciente é-lhe muito fácil ser virtuoso, e como ser sobrenatural não se lhe opõe qualquer dificuldade para fazer a Natureza – mas o homem, limitado, finito, condicionado, exposto à doença, à miséria, à desgraça e à morte é também capaz de criar, e é sobretudo capaz de se impor à Natureza, como os trabalhadores rurais trasmontanos impuseram a sua vontade de semear a terra aos penedos bravios das serras. E é essa capacidade de moldar o meio, de verdadeiramente fazer a Natureza mau grado todas as limitações de bicho, de ser humano mortal que, ao ver de Torga, fazem do homem único ser digno de adoração. (extrato da Wikipédia)

CaricaturaMTMiguel Torga considerava o Brasil sua segunda pátria. Aqui viveu boa parte de sua adolescência, antes de voltar a Portugal para fazer seus  estudos superiores. No vídeo que finaliza este post há um relato biográfico do poeta (embora com imagem de pouca resolução), que mostra essa ligação com a terra e a cultura brasileiras. Dizem que ele era uma pessoa dura, quase intratável, mas sua poesia era carregada de imensa sensibilidade, como se pode ver (e sentir) nos exemplos que publicamos abaixo.

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Segredo

ovoSei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar…

Súplica

hand_on_waterAgora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria…
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Livro de Horas

confesso
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

Aos Poetas

Troubadour

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos…
Nós,
Preguiçosos insetos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar…

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.
E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.
Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.
Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

xxxxxxxxxxxxxxde Odes (1946)
Pensamentos
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Caricatura de Miguel Torga: Suso Sanmartin 2007