Em junho de 1930, Fernando Pessoa é consultado por um jovem literato, com 23 anos incompletos, sobre um livro que este produzira. A carta do amigo foi respondida com amabilidade, em lições de mestre, com observações claras sobre o que ele interpretava como sensibilidade artística e sua aplicação na obra de arte. Dá conselhos, critica o que ainda crê imaturo e indica caminhos para o amadurecimento. O nome do amigo: Adolfo Rocha, que, mais tarde, adotaria o pseudônimo de Miguel Torga e se tornaria também um dos grandes mestres da literatura portuguesa. Transcrevo parte da carta de FP a Adolfo Rocha, o cerne de seu aconselhamento.
xxxxxxxEm substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus é o seguinte:
xxxxxxx1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;
xxxxxxx2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;
xxxxxxx3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
xxxxxxx4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização direta e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual (prim. versão: tirem da sensação o que não pode ser sensível aos outros e ao mesmo tempo, para compensar, reforçam o que lhes pode ser sensível); b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objetivo – construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
xxxxxxx5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.
xxxxxxxDir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo – isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”.
xxxxxxx(em Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Edições Ática: Lisboa, 1973)