Arquivo do dia: 19 de junho de 2009

Poemas encadeados

Manoel de Andrade costuma dizer que não existem coincidências. Tudo estaria mais ou menos encadeado e grande parte dos eventos deste mundo estão programados em outra parte, aguardando apenas que possamos confirmá-los ou modifícar o fado, segundo nosso livre arbítrio. Mas há coincidências significativas, como a que ocorreu hoje.

Ao fazer um comentário sobre o poema Espera-me, de Konstantin Simonov (ver abaixo),  Deborah O’Lins de Barros lembrou que ele combinaria com Unchained Melody (Melodia desencadeada ou desacorrentada) , música de Alex North e letra de Hy Zaret, cantada por Elvis Presley.

E onde está a coincidência? Diz sua biografia: “Em 16 de Agosto de 1977, Elvis chega a Graceland (a casa onde vivia) alguns minutos após a zero hora. No portão há vários fãs, um deles é Robert Call, que tira uma foto de Elvis. A última foto de Elvis em vida. Às 15:30 deste mesmo dia Elvis é declarado morto vitíma de um ataque cardíaco. A necrópsia revelou a ingestão de oito ou mais drogas (entre outras, morfina, valium e valmid), responsáveis por sua morte“.

Mas onde está a coincidência? Primeiro na letra, que se assemelha ao tema de Simonov: um homem apaixonado que se vê distante da amada e lamenta essa distância. Vejam a letra, no inglês original, encadeada à tradução em português.

Elvis

xxxxxxUnchained Melody

xxxxxxxOh, my love, my darling,
xxxxMeu amor, minha querida,
xxxxxxxI’ve hungered for your touch,
xxxxEu tenho ansiado por seu toque,
xxxxxxxA long lonely time.
xxxxUm longo tempo solitário.

xxxxxxxAnd time goes by so slowly,
xxxxE o tempo passa, tão lentamente,
xxxxxxxAnd time can do so much,
xxxxE o tempo pode fazer tanto,
xxxxxxxAre you still mine?
xxxxVocê ainda é minha?

xxxxxxxI need your love,
xxxxEu preciso do seu amor,
xxxxxxxI need your love.
xxxxEu preciso do seu amor.
xxxxxxxGod speed your love to me.
xxxxDeus, mande depressa seu amor para mim.

xxxxxxxLonely rivers flow to the sea, to the sea,
xxxxRios solitários seguem para o mar, para o mar,
xxxxxxxTo the open arms of the sea.
xxxxPara os braços abertos do mar.
xxxxxxxLonely rivers sigh,
xxxxRios solitários suspiram,
xxxxxxxWait for me, wait for me,
xxxxEspere por mim, espere por mim,
xxxxxxxI’ll be coming home, wait for me.
xxxxEstarei chegando em casa, espere por mim.

xxxxxxxOh, my love, my darling,
xxxxMeu amor, minha querida,
xxxxxxxI’ve hungered, hungered for your love,
xxxxEu tenho ansiado, ansiado por seu amor,
xxxxxxxA long lonely time.
xxxxUm longo tempo solitário.

xxxxxxxAnd time goes by, so slowly,
xxxxE o tempo passa, tão lentamente,
xxxxxxxAnd time can do so much,
xxxxE o tempo pode fazer tanto.
xxxxxxxAre you still mine?
xxxxVocê ainda é minha?

xxxxxxxI need your love,
xxxxEu preciso do seu amor,
xxxxxxxI need your love.
xxxx
Eu preciso do seu amor.
xxxxxxxGod speed your love to me.
xxxxDeus, mande depressa seu amor para mim.

Notaram a coincidência do espere por mim, por mim grifada? Segundo, porque foi uma das últimas músicas cantadas por Elvis Presley, em show realizado no dia 21 de junho de 1977. O que quer dizer que, no próximo domingo (21/06/2009), a última apresentação daquele concerto, com Unchained Melody – a mesma lembrada por Deborah – estará completando 22 anos.

Mas, ao contrário do que se divulga na Internet, aquele show não foi o último de Elvis. A última vez que ele pisou em um palco foi em Indianápolis,  no dia 26 de Junho de 1977, no Market Square Garden. Portanto, niver na próxima sexta-feira.

De qualquer maneira, junho é a grande coincidência. Não sei se Deborah lembrou a data (ele devia ser muito pequena, na ocasião), mas não deixa de ser significativa a lembrança da música tão próximo a esses aniversários. Abaixo, o vídeo daquela belíssima composição, que pode, de fato, como sugere Deborah, servir de fundo para Espera-me. A seguir, My Way, outra bela canção cantada por Elvis, também considerada a última apresentação do já mítico cantor. A maneira como Elvis encerra essa apresentação e se despede do público dá a impressão de que se trata, realmente, de uma last song. Vejam que ele repete o gesto de dar o seu cachecol branco para alguém do público. Parecia ser parte do roteiro, pois, na segunda música, um auxiliar de palco põe o cachecol no pescoço de Elvis, quando ele termina de cantar e se prepara para sair.

Convocamos os Sherloques da rede para irem atrás de mais informações.

Mas, como diz a televisão, vale a pena ver de novo, pois são duas belas e poéticas canções. Ah, é bom lembar que Unchained Melody foi composta por Alex North para um filme um tanto obscuro feito 1955 chamado também Unchained. E, em 1990, ressurgiu como tema de Ghost (Do Outro Lado da Vida), dirigido por Jerry Zucker e estrelado por Patrick Swayze, Demi Moore e Whoopi Goldberg.

Poema de amor e guerra

KSimonovKonstantin Simonov, poeta, escritor e dramaturgo russo, nasceu em novembro de 1915 na cidade de São Petersbugo (Petrogrado, de 1914 a 1924, e Leningrado, de 1924 a 1991). Em 1931 a sua família mudou-se para Moscou e  Konstantin começou a trabalhar como mecânico numa fábrica. Os primeiros poemas surgem nessa época, publicados em alguns jornais moscovitas. Entra para o Instituto Gorki de Literatura, interrompendo os estudos para cumprir serviço militar como correspondente de guerra. Escreve peças de teatro, romances, reportagens e livros de poemas inspirados na temática da guerra. Depois da guerra, ocupou alguns cargos importantes que abandonou para se dedicar por inteiro à sua obra. Morreu em Moscou no dia 28 de Agosto de 1979.

serova_1Espera por mim, de sua autoria, é um dos mais conhecidos poemas russos. Foi escrito em 1941, logo após a invasão de Hitler na Rússia. No verão daquele ano, Simonov tinha 25 anos e, apesar das suas origens aristocráticas, já era um bem sucedido poeta e dramaturgo soviético. Ele era apaixonado pela jovem atriz Valentina Serova. Quando Hitler atacou, Simonov recebeu ordens imediatas para avançar para a frente como correspondente de guerra. Valentina esteve com ele na estação.

O comboio da tropa levou-o para oeste, em direção à fronteira, como ele imaginava. Mas as tropas alemãs já haviam penetrado na Rússia e o trem nunca chegou a seu destino. Durante horas, Simonov foi exposto à brutal e caótica realidade da guerra. Simonv pensou que não iria sobreviver.

Simonov casou-se com Valentina em 1943. Mas não foram felizes, como poemas posteriores registraram. A personalidade volúvel de Valentina decepcionou Simonov e eles se separaram em 1957. Seus poemas subsequentes continuaram a história de um jovem homem exposto simultaneamente a todos os perigos da guerra, a uma paixão e, finalmente, a um infeliz caso de amor – e à súbita e dramática elevação como celebridade nacional.

O poema de Konstantin Simonov (em outras versões também intitulado Espera por mim) é aqui publicado por sugestão de nosso amigo e colaborador Manoel de Andrade.

Espera-me

xxxxxxxxxxxxxA Valentina Serova

EsperaPorMim
Espera-me. Até quando, não sei.
Um dia, voltarei.
Espera-me pelas manhãs vazias,
nas tardes longas e nas noites frias,
e, outra vez, quando o calor voltar.
Ai, nunca deixes de me esperar!
Espera-me, ainda que, aos portais,
as minhas cartas já não cheguem mais.
Ainda que o Ontem seja esquecido
e o Amanhã já não tiver sentido.
Espera-me depois que, no meu lar,
todos se cansem de me esperar.
Até que o meu cachorro e o meu jardim
não mais estejam a esperar por mim!

Espera-me. Até quando, não sei.
Um dia, voltarei.
Não dês ouvidos nunca, por favor,
àqueles que te dizem que o amor
não poderá os mortos reviver
e que é chegado o tempo de esquecer.
Espera-me, ainda que os meus pais
acreditem que eu não existo mais.
Deixa que o meu irmão e o meu amigo
lembrem que, um dia, brincaram comigo
e, sentados em frente da lareira,
suponham que acabou a brincadeira…

Deixa-os beberem seus vinhos amargos
e, magoados, sombrios, em gestos largos,
falarem de Heroísmo ou de Glória,
erguendo vivas à minha memória.
Espera-me tranquila, sem sofrer.
Não te sentes, também, para beber!

Espera-me. Até quando, não sei.
Um dia, voltarei.
Esperando-me, tu serás mais forte;
sendo esperado, eu vencerei a morte.
Sei que aqueles que não me esperaram
–  que gastaram o amor e não amaram –
suspirando, talvez digam de mim:
“Pobre soldado! Foi melhor assim!”
esses, que nada sabem esperar,
não poderão jamais imaginar
que das chamas eternas me salvaste
simplesmente porque me esperaste!

Só nós dois sabemos o sentido
de alguém poder morrer sem ter morrido!
Foi porque tu, puríssima criança,
tu me esperaste além da esperança,
para aquilo que eu fui e ainda sou,
como nunca, ninguém, me esperou!

xxxxxxxxxxxxxTradução de Hélio do Soveral

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helio do soveralHélio do Soveral Rodrigues de Oliveira Trigo, mais conhecido como Hélio do Soveral , nasceu em Setúbal, Portugal, em 1918, e faleceu a 21 de março de 2001, em Brasília.Foi radialista e escritor infanto-juvenil brasileiro. Hoje não é lembrado nem reconhecido, mas publicou dezenas de livros que se tornaram muito populares nas décadas de 1970 e 1980. É dele a tradução do poema Espera-me para o Português. Sua versão é provavelmente a melhor publicada em nossa língua.