Arquivo do dia: 7 de junho de 2009

Encontros com Miguel Torga

JCDefreitas-2A propósito do post sobre Miguel Torga (abaixo), o sociólogo e professor João Correia de Freitas enviou uma crônica sobre o poeta, a quem conheceu quando fazia pós-graduação em Portugal. Como diriam os obaobistas da imprensa, esta é uma exclusiva do Banco da Poesia. Somos gratos, professor Defreitas.

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O Poesta não morre

xxxxxVi Miguel Torga duas vezes.  A primeira em sua casa, em Coimbra, em 1966, quando eu lá estudava, com um grupo de brasileiros. Era uma figura interessante. Torga02Homem de grande porte, rosto rude, com profundos vincos, um nariz enorme que lhe saltava do rosto. Parecia sofrido e machucado pelo tempo. Sua voz pausada e grave lhe saía da boca com muita propriedade. Tinha ele seus 56 anos, com um aspecto mais de agricultor ou de lenhador trasmontano do que de um médico e muito menos de um poeta. Em sua sala, despojada, com móveis de madeira escura, sólidos e sóbrios, nos fez adentrar e sentar. Olhava-nos fixamente com seus olhos fundos, por trás de sobrancelhas espessas.

xxxxxNão sabíamos bem por que o visitávamos. Talvez mais por curiosidade do que por conhecimento de sua obra. Ele parecia sem muita paciência e mostrava-se pouco amistoso, ou melhor, cerimonioso e um pouco distante. Entretanto, depois de servir-nos um porto, perguntar-nos de que lugar do Brasil éramos e o que fazíamos em Coimbra,  aquele homem com cara rude começou a se transfigurar, ao lembrar-se de sua vida de cinco anos no Brasil e de seu reencontro com o país, já poeta.

xxxxxFazia muito frio, naquele dia. Nunca houvera um frio tão intenso em Coimbra como nesse novembro, dizia ele. Se não me engano, até nevou naquele ano. Lembro-me bem que tive a curiosidade de perguntar-lhe de onde viria o nome de “anta”, pois ele havia nascido em  São Martinho de Anta, Trás-os-Montes, terra também de Aquilino Ribeiro. Sabia eu que São Martinho era famoso em Portugal, pois a 11 de novembro, dedicado a ele, era corrente o dito português: “Dia de São Martinho, mata o teu porco e abre o teu vinho”. Explicou-nos Torga que , realmente, novembro era época do “água pé”, vinho fraco e o primeiro a ser aberto; que  Lamego era terra de bom vinho; que a base da alimentação beirôa, onde agora vivia, era de carne de porco, haja vista a Bairrada, próxima dalí, ser a terra dos leitões. Explicou, também, que “anta” era um nome que designaria um grande monte de terra que servia, antigamente, para demarcar a divisa de territórios. Enfim, foi uma conversa muito descontraída e interessante, onde falou-se de tudo, inclusive de poesia, é claro.

xxxxxA segunda e última vez em que ví Miguel Torga, não falamos, não conversamos. Eu e um amigo haviamos saído de uma tasca, numa tarde cinzenta, onde fomos beber um cálice de “aguardente de medronho”, fortíssima, para espantar o frio. Ao longe, numa ponte sobre o Rio Mondego, de onde se via a Igreja de Santa Cara, avistamos o vulto de um homem, que aparentava ser de porte bem alto. Olhava fixamente as águas do Mondego, que passavam calmas por debaixo da ponte, e que fôra motivo de tantos fados imorredouros de Coimbra. Depois, mais de perto, reparamos tratar-se de Torga, com seu pesado capote de frio, com as golas viradas para cima, que a passos pausados afastava-se daquele local. Ficamos ali por uns minutos e notamos que peixes nadavam em baixo da ponte. Pensamos que o rio estava sem poluição, embora hoje, talvez, não se possa dizer o mesmo.

xxxxxFoi assim que conheci Miguel Torga, um grande poeta que tudo tem a ver com Coimbra, com as capas pretas e batinas, com as tricanas de Bernardim, com a Sé, ao pé da qual muitos fados-de-Coimbra escutamos; da Queima das Fitas e do fumo  subindo aos céus. Enfim, hoje leio as obras de Torga e deleito-me com o livro Traço de União, onde ele declara seu profundo amor pelo Brasil.  Em 1995, li a noticia da morte de Miguel Torga. Tenho certeza que Torga vive em suas poesias e tenho certeza , agora mais do que nunca, de que os Poetas não morrem.

Apelo de Marilda Confortin: PROCURA-SE

Mandado de busca e apreensão contra a Poesia

Procura_se

Senhores, minha poesia escafedeu-se.
Procurem nos seguintes locais:

xxxxxNo calo dos dedos dos músicos,
xxxxxNo quadro negro das escolas,
xxxxxNo fascínio quântico dos físicos,
xxxxxNa placa do cego que esmola.

xxxxxProcurem nos diários e discos rígidos,
xxxxxNos papiros, nas lápides dos túmulos,
xxxxxNas paredes dos banheiros públicos,
xxxxxNas gavetas e nos grafites dos muros.

xxxxxProcurem nas pedras das cavernas,
xxxxxNos evangelhos apócrifos e escrituras,
xxxxxNos templos, conventos e tabernas,
xxxxxNas democracias e nas ditaduras

xxxxxProcurem nas celas e nos parreirais,
xxxxxNos campos de girassóis maduros,
xxxxxNos tercetos modernos e haicais,
xxxxxNo passado, presente e no futuro.

xxxxxProcurem nos álbuns de fotografias,
xxxxxNos bares, museus, sebos e alcorões,
xxxxxSe não encontrarem, revirem as livrarias,
xxxxxCostumam escondê-la nos porões.

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Ver Maisrilda, no cofre do Banco da Poesia:

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e em http://iscapoetica.blogspot.com/

Helena Kolody, a indizível alegria de criar

RetratHKHelena Kolody, a consagrada poeta do Paraná, inaugurou em 1941 a série de mulheres haicaístas do país. Dona de uma enorme coleção de adjetivos-virtudes, palavras-emblemas, atribuídos a ela pelo povo paranaense, Helena deixou uma obra que, na qualidade, lembra outra grande poeta: Cecília Meirelles. O amor que ela conquistou pelos poemas, pelos livros, juntou-se à lira de sua poesia feita de canções à vida, de solidariedade,  natureza e inquietude da condição humana. Pode-se brincar dizendo que as letras iniciais do nome da poeta, HK, são as mesmas de quando se grafa hai-kai, como ela o fazia.
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Carlos Drummond de Andrade enviou, em 1980, uma pequena carta à poeta, onde dizia: “Tão simples, tão pura – e tão funda – a poesia de Infinito Presente. Você domina a arte de exprimir o máximo no mínimo, e com que meditativa sensibilidade!”
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Drummond, segundo Kamita, fez um elogio dizendo ter ficado feliz com poemas como esse, “em que à expressão mais simples e discreta se alia uma fina intuição dos imponderáveis poéticos”. (José Marins*)

Helena Kolody (Cruz Machado, 12 de outubro de 1912 — Curitiba, 15 de fevereiro de 2004) foi morar na Mansão dos Poetas Eternos há cinco anos. Sua obra ficou por aqui, a inspirar novos poetas e, principalmente, a insistir que a linguagem poética vê mais longe, nos ensina a olhar as profundezas da vida e as alturas dos ideais humanos.Seus pais foram imigrantes ucranianos que se conheceram no Brasil. Helena passou parte da infância na cidade de Rio Negro, onde fez o curso primário. Estudou piano, pintura e, aos doze anos, fez seus primeiros versos.

Seu primeiro poema publicado foi A Lágrima, aos 16 anos de idade, e a divulgação de seus trabalhos, na época, era através da revista Marinha, de Paranaguá. Aos 20 anos, Helena iniciou a carreira de professora do Ensino Médio e inspetora de escola pública. Lecionou no Instituto de Educação de Curitiba por 23 anos. Helena, segundo o que consta em seu livro Viagem no Espelho, foi professora da Escola de Professores da cidade de Jacarezinho, onde lecionou por vários anos. Seu primeiro livro, publicado em 1941, foi Paisagem Interior, dedicado a seu pai, Miguel Kolody, que faleceu dois meses antes da publicação. (extrato de Wikipédia – http://pt.wikipedia.org/wiki/Helena_Kolody)

O Banco da Poesia fa justa homenagem à poeta paranaense, com três poemas ilustrados, em versão gráfica de C. de A.

FimDeJornada

IlhasPoema

Tempo

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*José Marins é de Curitiba, escritor, poeta. Mestre em Educação pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), haicaísta membro do fórum Haikai-l (http://www.kakinet.com/lista), autor de POEZEN (haicai); Pinha-Pinhão, Pinhão-Pinheiro (renga, juntamente com o haicaísta Sérgio F. Pichorim), Karumi (haicai), e Bico do João-de-Barro (haicai), inéditos.

De Portugal para a eternidade, via Brasil

miguel+torgaOLDMiguel Torga, pseudônimo de Adolfo Correia Rocha, (São Martinho de Anta, Vila Real, 12 de Agosto de 1907 — Coimbra, 17 de Janeiro de 1995) foi um dos mais importantes escritores portugueses do século XX.

Filho de gente humilde do campo do concelho de Sabrosa, no Alto Douro, Portugal, o menino Adolfo vai, aos dez anos, para uma casa apalaçada do Porto, habitada por parentes da família. Com uniforme branco servia de porteiro, moço de recados, regava o jardim, limpava o pó e polia os metais da escadaria nobre, atendia campainhas. Foi despedido um ano depois, devido à constante insubmissão. Em 1918, vai para o Seminário de Lamego, onde viveu um dos anos cruciais da sua vida, tendo melhorado os conhecimentos de português, da geografia, da história, aprendido o latim e adquirido familiaridade com os textos sagrados. No fim das férias comunicou ao pai que não seria padre. Para Miguel Torga, nenhum deus é digno de louvor: na sua condição omnisciente é-lhe muito fácil ser virtuoso, e como ser sobrenatural não se lhe opõe qualquer dificuldade para fazer a Natureza – mas o homem, limitado, finito, condicionado, exposto à doença, à miséria, à desgraça e à morte é também capaz de criar, e é sobretudo capaz de se impor à Natureza, como os trabalhadores rurais trasmontanos impuseram a sua vontade de semear a terra aos penedos bravios das serras. E é essa capacidade de moldar o meio, de verdadeiramente fazer a Natureza mau grado todas as limitações de bicho, de ser humano mortal que, ao ver de Torga, fazem do homem único ser digno de adoração. (extrato da Wikipédia)

CaricaturaMTMiguel Torga considerava o Brasil sua segunda pátria. Aqui viveu boa parte de sua adolescência, antes de voltar a Portugal para fazer seus  estudos superiores. No vídeo que finaliza este post há um relato biográfico do poeta (embora com imagem de pouca resolução), que mostra essa ligação com a terra e a cultura brasileiras. Dizem que ele era uma pessoa dura, quase intratável, mas sua poesia era carregada de imensa sensibilidade, como se pode ver (e sentir) nos exemplos que publicamos abaixo.

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Segredo

ovoSei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar…

Súplica

hand_on_waterAgora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria…
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Livro de Horas

confesso
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

Aos Poetas

Troubadour

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos…
Nós,
Preguiçosos insetos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar…

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.
E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.
Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.
Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

xxxxxxxxxxxxxxde Odes (1946)
Pensamentos
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Caricatura de Miguel Torga: Suso Sanmartin 2007