De Portugal para a eternidade, via Brasil

miguel+torgaOLDMiguel Torga, pseudônimo de Adolfo Correia Rocha, (São Martinho de Anta, Vila Real, 12 de Agosto de 1907 — Coimbra, 17 de Janeiro de 1995) foi um dos mais importantes escritores portugueses do século XX.

Filho de gente humilde do campo do concelho de Sabrosa, no Alto Douro, Portugal, o menino Adolfo vai, aos dez anos, para uma casa apalaçada do Porto, habitada por parentes da família. Com uniforme branco servia de porteiro, moço de recados, regava o jardim, limpava o pó e polia os metais da escadaria nobre, atendia campainhas. Foi despedido um ano depois, devido à constante insubmissão. Em 1918, vai para o Seminário de Lamego, onde viveu um dos anos cruciais da sua vida, tendo melhorado os conhecimentos de português, da geografia, da história, aprendido o latim e adquirido familiaridade com os textos sagrados. No fim das férias comunicou ao pai que não seria padre. Para Miguel Torga, nenhum deus é digno de louvor: na sua condição omnisciente é-lhe muito fácil ser virtuoso, e como ser sobrenatural não se lhe opõe qualquer dificuldade para fazer a Natureza – mas o homem, limitado, finito, condicionado, exposto à doença, à miséria, à desgraça e à morte é também capaz de criar, e é sobretudo capaz de se impor à Natureza, como os trabalhadores rurais trasmontanos impuseram a sua vontade de semear a terra aos penedos bravios das serras. E é essa capacidade de moldar o meio, de verdadeiramente fazer a Natureza mau grado todas as limitações de bicho, de ser humano mortal que, ao ver de Torga, fazem do homem único ser digno de adoração. (extrato da Wikipédia)

CaricaturaMTMiguel Torga considerava o Brasil sua segunda pátria. Aqui viveu boa parte de sua adolescência, antes de voltar a Portugal para fazer seus  estudos superiores. No vídeo que finaliza este post há um relato biográfico do poeta (embora com imagem de pouca resolução), que mostra essa ligação com a terra e a cultura brasileiras. Dizem que ele era uma pessoa dura, quase intratável, mas sua poesia era carregada de imensa sensibilidade, como se pode ver (e sentir) nos exemplos que publicamos abaixo.

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Segredo

ovoSei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar…

Súplica

hand_on_waterAgora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.

Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria…
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.

Livro de Horas

confesso
Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

Aos Poetas

Troubadour

Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos…
Nós,
Preguiçosos insetos perseguidos.

Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar…

Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.

Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.
E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.
Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.
Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.

xxxxxxxxxxxxxxde Odes (1946)
Pensamentos
________________
Caricatura de Miguel Torga: Suso Sanmartin 2007

Uma resposta para “De Portugal para a eternidade, via Brasil

  1. Parabéns , adorei.

    Abraço

    Talina

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