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Hoje é mais um dia de futebol

Pois é. A sonhada Copa do Mundo está em seu final. E prova que, em matéria de reboliço nacional, é mais forte que carnaval e eleição. Pois a festa do real início de ano brasileiro dura apenas quatro ou cinco dias, uma semana para os mais exagerados. E eleição é aquilo que sabemos: entusiasmo pouco, inteligência nenhuma. Já a copa, é um mês inteiro de folga. Quando os nossos Zagalos e Dungas escolhem uma seleção, é um Deus nos acuda. Todo mundo dá palpite, exigindo melhor estrutura. Tira esse, põe aquele, assim o Brasil vai perder, onde já se viu? Mas na copa da democracia (como seria bonito levantar a sua taça, com verdadeiro orgulho nacional, de quatro em quatro anos!) os técnicos da política escolhem quem bem lhes aprouver, aparece jogador que nunca calçou chuteira e nem sabe que uma bola é redonda e cheia de ar, e lá vamos nós às urnas, obrigatoriamente, votar em quem não merece. Puro masoquismo, só para podermos falar mal dos eleitos no próximo quatriênio?

Mas a Copa tem seus efeitos benéficos, pelo menos para o mundo da propaganda, no qual as multinacionais se vestem de verde e amarelo e são mais brasileiras que o Zé da Silva. Nunca se vende tanta bandeira e tanta patriotada. Diz-me a voz: “Miséria enfeitada”. E é isso mesmo, já que a festa futebolística ajuda a esconder nossas mazelas. Jamais perdoaremos um técnico que não leve a seleção ou qualquer time de várzea ao final vitorioso, mas tratamos com leniência os jogadores da Assembléia Legislativa, os juízes corruptos dos tribunais reais, os técnicos que dizem governar para um Brasil de Todos e só se preocupam com o time mais íntimo. Juiz de futebol que apita mal é ladrão e tem mãe de má conduta; governante que realmente rouba… ora, deixa pra lá…

Escrevo isso enquanto o Brasil se prepara para enfrentar a Holanda e tentar chegar à final. Já há menos movimento nas ruas, porque dia de jogo é feriado. Ouvi de um vendedor de telefones que as vendas caíram verticalmente durante a Copa. O dono de uma panificadora me disse que seu movimento baixou em 10%, que é o valor de sua folha de pagamento. Sempre ouvi história sobre a queda de produção na cidade de São Paulo, nas segundas-feiras, quando o Corinthians perde no domingo. No Brasil inteiro é a mesma coisa. Durante a Copa, mesmo ganhando,

brasileiro não trabalha
porque o trabalho atrapalha
toda a efusão do esporte.
E o Brasil, de sul a norte
em todos os seus quadrantes
só faz silêncio em instantes
de gol da outra equipe.
Com chuva e até com gripe
brasileiro vai à luta
mas luta sem produção.
Porque, afinal,
o BRASIL… IL… IL… IL… IL !…
é campeão.

Mas como este blog é de poesia e não de lamúrias políticas ou esportivas, vamos recorrer ao nosso correntista de Quedas do Iguaçu, Solivan Brugnara, para encaixar o futebol no mundo das musas.

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Esportes

Futebol europeu

Solivan Brugnara, Quedas do Iguaçu/PR


O brasileiro Noite
recebeu a bola no peito
dominou com acrobacias.
Correu.
Músculos magníficos
cobertos por uma pele cor do universo.
O pé regeu,
pastoreou a bola.
Samba, ginga de mestre-sala
entre miúras.
E chutou com telecinésia.
O que dividiu a multidão
em agonia e êxtase.

O grito das torcidas orientais


Para atingir a perfeição,
precisamos ter muitos defeitos.

Concentração é uma venda.

Tanto o carcereiro quanto
o cativo são prisioneiros.

Determinação
é uma intransigência maleável.

Verdades absolutas mentem.

De Jornal de Domingo, em Encantador de Serpentes, 2007

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Ilustrações: C. de A., com ajuda da Internet

Lá de Portugal, Vera Lúcia comenta Saramago

O comentário de Vera Kúcia Kalahari está no post abaixo, que noticia a morte do escritor português. Merece destaque.

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Saramago — Caricatura de Sergei

Conheci José Saramago, ainda era ele um simples redator do Diário de Lisboa, e eu de O País, frequentadores das tascas do Bairro Alto, onde o Saramago se sentava, sem dar grande conversa, porque era extraordinàriamente introvertido. Nessa altura, comungando os dois das mesmas ideias políticas, tivemos oportunidade de algumas trocas de impressões, porque, com ele, falava ao sabor das minhas convicções com as quais estávamos sempre ou quase sempre de acordo, exceto quando se versava sobre a religião. Que outro mérito não houvesse, já que neste ponto discordávamos em absoluto, salvava-se a dose de originalidade, que eu não deixava de admirar e até me dava gozo, quanto mais não fosse por lhe proporcionar motivos de azedume que acabavam sempre em grandes risadas…

A vida levou-nos para rumos diferentes. Estive sempre atenta ao seu percurso literário e à sua subida em espiral rumo ao sucesso. Mas da sua imagem permanece a daquele colega zombeteiro, irônico, que se ria dos patriotas encartados, sem a ”honesta” hipocrisia social.

Hoje choro por esse Saramago, por essas horas passadas nas tasquinhas lisboetas, não o Prêmio Nobel, mas o camarada, falando das guerras, ditaduras, revoluções, monstruosas inocências e desenganos, mortos e até de vivos conhecidos que até hoje não sei a que plagas foram dar.

E acalento apenas a ambição de voltarmos um dia, onde quer que seja, a retomarmos essas discussões intermináveis.

Vera Lúcia, 18 de junho de 2010

A Sexta-feira da Paixão de Saramago

Morre José Saramago

Costuma-se dizer que, quando morremos, temos um encontro com Deus. E quem nele não acredita? Será bem recebido pelo que chamamos de Pai de Todos? Ou entrará simplesmente no eco cósmico, integrando-se ao pó das estrelas? Pode ser o caso do escritor português José Saramago, Nobel de Literatura, que encontrou seu ponto final (após abandonar milhões de pontos e vírgulas, à moda de Joyce) nesta sexta-feira, 18 de junho de 2010. Pessoalmente, gosto de alguns de seus textos, embora discordasse de suas posições políticas últimas. Quase reabilitou-se quando reconheceu publicamente que na ilha de Cuba os direitos humanos não são respeitados, notadamente com relação à liberdade de expressão. Teve a coragem, entretanto, de colocar-se contra as tradições religiosas, albergando-se na fé ateísta (existe?). Mas termina sua vida de quase nove décadas, as três últimas com maior dedicação à literatura, recompensada pelo reconhecimento internacional de sua obra. Nós, os ainda sobreviventes, ficamos curiosos: já do outro lado (existe?), Saramago se decepcionou com o que encontrou? Encontrou a resposta final: existe?Ou já estará satisfeito com a imortalidade que construiu na vidinha terrestre? Seguida à notícia de sua morte, publicamos a manifestação poética de nosso correntista Maurício Ferreira, visivelmente surpreso e entristecido com a ocorrência. Para completar a homenagem, o Saramago poeta, que pouca gente conhece. (C. de A.)

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O escritor português e Prêmio Nobel de Literatura José Saramago morreu nesta sexta-feira em sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, aos 87 anos. Segundo a família, a morte ocorreu por volta das 13h no horário local (8h de Brasília), quando o escritor estava em casa, acompanhado da mulher, Pilar del Río.

José Saramago havia passado uma noite tranquila. Após o café da manhã, começou a passar mal e pouco depois morreu, de acordo com informações da família.

Biografia

Prêmio Nobel de Literatura em 1998, primeiro escritor de língua portuguesa a obter a honraria, Saramago mostrou ao longo de sua vida uma paixão duradoura pela literatura.

Seus livros são marcados pelos períodos longos e pela pontuação em muitos momentos quase inexistente. Os artifícios formais são vistos como verdadeira barreira para vários leitores, mas outros se encantam com a fluidez de seus textos, sempre entremeados por reflexões fortemente humanistas.

Nascido em 16 de novembro de 1922, em aldeia do Ribatejo chamada Azinhaga, de família humilde, Saramago só veio a produzir sua primeira obra de sua fase mais madura em 1980, Levantado do Chão.

Dois anos depois, Memorial do Convento o colocou como um dos maiores autores de Portugal, posição confirmada com o lançamento do inventivo O ano da morte de Ricardo Reis, em que narra os dias finais do heterônimo de um dos pilares da literatura de seu país: Fernando Pessoa, em uma criativa mescla de fatos reais e imaginados.

Saramago era um autor prolífico. Além de romances, publicou diários, contos, peças, crônicas e poemas. Ainda em 2009, lançou mais um livro, Caim.

Esta obra retoma um personagem bíblico, subvertendo a versão oficial da Igreja Católica. Em 1991, seu Evangelho segundo Jesus Cristo dispôs de artifício semelhante. A “reescrita” do ateu convicto de esquerda não agradou aos religiosos, provocando grande polêmica em uma nação fortemente católica.

No ano seguinte, o livro foi indicado a um prêmio, mas o governo português vetou a candidatura. Insatisfeito, Saramago partiu para um “exílio voluntário” na espanhola Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde vivia desde 1993.

Outro de seus romances, Ensaio sobre a Cegueira, narra uma epidemia em que os personagens perdem a visão, enquanto uma mulher a mantém. A obra, uma das mais conhecidas do português, foi adaptada para o cinema pelas mãos do diretor brasileiro Fernando Meirelles. O filme foi exibido no Festival de Cannes. (Fonte: IG)

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Pô, Saramago?!

Maurício Ferreira, Jaú

Hoje o mundo ficou menos humano
Morreu o homem da virgula
E só nos restou o ponfo final.

Vontade imensa de chorar olhando sua foto, Saramago….
Você que combateu a vida toda a intolerância de qualquer fé
Era o único que considerava espelho…

Suficientemente humano
prá ao menos TENTAR!
salvar o homem de DEUS.

18 de junho de 2010

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Espaço curvo e finito

José Saramago, Portugal

Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

(De Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Lisboa, 1981. 3ª edição)

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Ilsutrações: C. de A.


Ferreira Gullar vence Prêmio Camões 2010

Prêmio Camões 2010 para Ferreira Gullar

O escritor, natural do Maranhão, é o nono brasileiro a ganhar o prestigiado galardão literário da lusofonia, também já atribuído a nove portugueses.

O escritor brasileiro Ferreira Gullar, atualmente com 79 anos de idade, é o vencedor do Prêmio Camões 2010, um dos mais prestigiados galardões literários da língua portuguesa. Na sua 22ª edição, o juri do prémio foi constituído por membros de Portugal, Brasil, Moçambique e São Tomé e Príncipe. No ano passado a distinção foi para Arménio Vieira, de Cabo Verde.

Ferreira Gullar é o nono brasileiro a ganhar o Prêmio Camões, depois de João Cabral de Mello Neto, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Antônio Cândido, Autran Dourado, Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e João Ubaldo Ribeiro. Assim, o Brasil iguala Portugal em número de vencedores daquele certame cultural.

Em anteriores edições o Prêmio Camões também já distinguiu os portugueses Miguel Torga, Vergílio Ferreira, José Saramago, Eduardo Lourenço, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Maria Velho da Costa, Agustina Bessa-Luís e António Lobo Antunes. Na lista de premiados contam-se ainda o moçambicano José Craveirinha, os angolanos Pepetela e Luandino Vieira e o cabo-verdiano Arménio Vieira.

Na sua última edição o Prêmio Camões entregou a Arménio Vieira um cheque de 100 mil euros, valor acordado entre Portugal e Brasil, os organizadores da iniciativa.

Um maranhense chamado José Ribamar Ferreira

Ferreira Gullar nasceu no dia 10 de setembro de 1930 na cidade de São Luiz do Maranhão. Pseudónimo de José Ribamar Ferreira, é poeta, crítico de arte, biógrafo, tradutor, argumentista de teatro e de televisão, memorialista e ensaísta. Em 1950 mudou-se para o Rio de Janeiro.

Publicou o seu primeiro livro, Um pouco acima do chão, em 1949, editado com recursos próprios. Ferreira Gullar integrou movimentos literários e artísticos, tendo sido nomeado, em 1961, Diretor da Fundação Cultural de Brasília, onde elaborou o projecto do Museu de Arte Popular e lançou a sua construção. Assumiu uma posição política declarada e esteve no exílio (Moscou, Santiago do Chile, Lima e Buenos Aires) de 1971 a 1977. Escreveu Poema sujo em 1975.

Ferreira Gullar já foi agraciado com vários prêmios, entre os quais o Jabuti (em 1999 e em 2007), o Prêmio Alphonsus de Guimarães, bem como o Prêmio Multicultural 2000, do jornal O Estado de São Paulo.

Em 2002, por indicação de nove acadêmicos dos EUA, de Portugal e do Brasil, foi indicado para o Prêmio Nobel de Literatura. (do noticiário de imprensa)

Receita de Poesia

Criação Poética — O poema não tem plano. Escrevo meio cego. É uma descoberta passo a passo, algo que vai sendo revelado a mim mesmo a cada momento. Eu nunca presto atenção no modo como connsumo um poema. O poema, para mim, é a grande aventura de como fazer. Costumo dizer em palestras para estudantes que, quando vou escrever um poema, a página está em branco, e isso significa que todas as possibilidades estão abertas, são infinitas. No momento em que semeio uma palavra, o acaso é menor. Mas não sei o que vai acontecer.

A alegria da escrita — O poema é cura, não doença. Escrevo para ser feliz, para me libertar do sofrimento, não para sofrer. É a alquimia da dor em alegria estética. Mesmo quando a coisa é doida, amarga, naquele momento a transformo no ouro que é o poema.

(Revista Veja,  edeição 2 169, 16 de junho de 2010)

A morte solitária de Wilson Bueno

Um escritor, um poeta, escreve para todos. Semeia palavras, conta histórias, distribui partículas de sua sensibilidade que alcançam a alma de seus leitores. Os escritores, os poetas, os artistas todos, deveriam ser homenageados com o retorno dessa distribuição de felicidade. Deveriam poder partir em paz, anjos que foram ou são em vida, antíteses da maldade e da violência.

Mas a semana começa com uma notícia triste. Wilson Bueno, um desses arcanjos da literatura, foi morto por um covarde ato de violência. E morreu só, vítima da maldade humana, talvez saída de um deconhecido que nunca leu seus versos ou uma linha sequer de seus contos.

Nós, os que ficamos para depois, temos que fazer nossa homenagem pensando em sua recompensa em encontrar gasosa e amorosa nuvem, a receber seu pleno ser, engrandecido em vida por meio de sua obra já imortal.

O Banco da Poesia está abrindo, hoje, uma página especial para Wilson Bueno, que ficará à dispoisção dos leitores e de seus amigos que quiserem ampliá-la com comentários e novos aportes de sua obra.

Que podemos dizer mais? Somente muito obrigado, Wilson Bueno, por tudo de bom que soube construir na sua bela vida literária.

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Homenagem do cartunista Solda a seu amigo

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Amor, sim:
Porque tudo é belo —
A romã, o lábio, a fala, a cisterna.
Amor de amar
A casta flor do chão
E as reentrâncias do muro,
A manhã, a lua, a tarde.
Amor, sim:
Porque a cor do antúrio
Conta uma história serena
E amar o calmo confirma
O ânimo, os deuses que riem
À sombra das árvores
Do jardim de Parmênides.
Amor, sim:
Porque, amorosa, até a nuvem,
Ainda que gasosa acolherá
Meus todos, meus plenos, teus inteiros.

Do livro “35” (poemas de amor)

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Ilustrações: C. de A.

Homenagem de Solda: http://cartunistasolda.blogspot.com/

Walter Bezerra a imaginar com John Lennon e Ayrton Senna

Walter Bezerra, correntista de Maceió que abriu conta recentemente no Banco da Poesia (ver aqui), nos envia mais depósitos. O poema abaixo, inspirado no Imagine, de John Lennon, e uma crônica sobre a chegada de Ayrton Senna no céu e a conversa com seus anfitriões. Leia na página de Crônicas, número 9.

Imagine ( outra versão)

Walter Bezerra, Maceió


Imagine não existir Justiça, ONU, Constituição, Código Penal, presídios,

e mesmo assim fossem  os homens  pacíficos, justos e honestos.

Imagine que não haja muçulmanos, judeus, brancos, negros, amarelos e índios, apenas pessoas.

Imagine não existir Tratados, Concílios e Conferências, apenas consciência e voluntariedade.

Imagine que não exista  São Paulo, Flamengo, Barcelona, Liverpool e Boca, apenas a beleza e a emoção do gol.

Nenhum preconceito ou discriminação, somente respeito.

Imagine não existir  ignorância, devoção, lavagem cerebral, nenhuma idolatria.

Imagine nenhum soldado ou general, nenhum míssil ou bomba nuclear.

Imagine que não exista  Natal, nem papai Noel, e mesmo assim sejam os homens fraternos e solidários.

Imagine que não haja futuro, simplesmente esse instante.

Imagine, Lennon, se existissem no mundo milhões e milhões  de pessoas como você.

Imagine se todos tivessem a doçura e a lucidez de Carlitos.


Manoel de Andrade comenta Florbela Espanca

A propósito do post sobre Florbela Espanca, Manoel de Andrade fez um comentário em forma de soneto que merece ganhar a primeira página.

Florbela


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Obrigado, Cleto amigo
por abrir essa janela
e poder olhar contigo
o coração da Florbela.

Encanto, dor e lirismo
e uma triste biografia.
Amor, chama e pessimismo
ardendo na poesia

Onde ecoa agora o canto
daquela alma inquieta
que o mundo aqui não esquece?

Peço a Deus, nesse recanto,
lhe chegue deste poeta,
seu louvor e sua prece.

Florbela Espanca há 93 anos

Florbela Espanca morreu com 36 anos. Jovem e ainda bela flor. Seu sobrenome raro, herdado de pai natural, que só lhe perfilharia 18 anos após sua morte, poderia mais anunciar as agressões sofridas durante a sua curta vida, que as que dela jamais partiram. Permaneceu durante toda a vida com a terrível marca em sua certidão de nascimento: “filha ilegítima de pai incógnito”. Na realidade, ela teve vida familiar, pois a esposa legal de João Maria Espanca tomou a responsabilidade de, como madrinha, criá-la e educá-la, assim como também ocorreu mais tarde com seu irmão Apeles, gerado por mesmo pai e mesma mãe.

Ela tinha mais poesia e ritmo em seu nome completo: Florbela d’Alma da Conceição Espanca. E descobriu a poesia muito cedo e conheceu as variadas reações da sociedade portuguesa da primeira metade do Séc. XX, a exemplo do que ocorreu com outra poeta sua contemporânea, Virgínia Victorino (ver aqui). Três casamentos, celebridade e decepções prematuras, talvez um sentimento de amor pela morte, à qual não temia, conforme escreveu: “A morte pode vir quando quiser: trago as mãos cheias de rosas e o coração em festa”.

Romântica, buscou o amor em três casamentos e se fala em um quarto romance, já no final da vida, que teria sido uma das causas do encontro premeditado pela morte. Pois ela morreu exatamente quando completava seu 36º aniversário, por meio de uma dose excessiva de Veronal, o primeiro barbitúrico posto à venda por laboratórios, de efeitos sedativos e soníferos.

Mesmo sua morte — embora aparentemente marcada por um ritual quase literário, pela escolha do dia de seu nascimento e de seu primeiro casamento — também foi envolta em mistérios: há quem conteste o suicídio, já que seu último marido era médico e deveria tê-la impedido de estar rodeada de tantas drogas. Além disso, relata-se a visível calma do esposo ao encontrá-la morta e dar a notícia aos familiares. Para tornar ainda mais misterioso o infausto ato, seu atestado de óbito foi assinado por um carpinteiro, apesar da profissão do marido.

E porque estou escrevendo um pouco da história de Florbela? Primeiro, antiga admiração pela poeta portuguesa, também contemporânea do poeta maior Fernando Pessoa. Depois, porque acabei de ler o livro Poemas – Florbela Espanca (Martins Fontes, 2004), edição preparada por Maria Lúcia Dal Farra, igualmente responsável por outros trabalhos sobre a poeta. O livro transcreve as seis principais obras de Florbela  — Trocando Olhares (1913-1917); Livro de Mágoas (1919); Livro de “Sóror Saudade” (1923); Charneca em Flor (prduzida antes de sua morte, mas editada no ano seguinte, 1931); Reliquae (também póstuma, 1931) e Esparsa Seleta (que reúne poemas escritos de 1917 a 1930). Maria Lúcia Dal Farra faz primorosos estudos sobre a poeta e sua obra e nos oferece uma síntese biográfica comentada e a bibliografia de Florbela.

Mas a principal razão deste post é a coincidência de datas. Hoje, 30 de abril, completam-se exatamente 93 anos do término do primeiro manuscrito poético de Florbela Espanca, Trocando Olhares, o último livro a ser publicado, em 1994, também com organização e notas de Maria Lúcia Dal Farra. E terminar um livro é, para o escritores, a decisão de entregá-lo à leitura pública. Portanto, há 93 anos, Florbela d’Alma da Conceição Espanca entrava no reino universal e eterno da Poesia doada à vida e ao mundo.

A festa de aniversário será enfeitada por poemas desse seu primeiro livro. (C. de A.)

Dedicatória

É só teu meu livro; guarda-o bem;
Nele floresce nosso casto amor
Nascido neste dia em que o destino
Uniu o teu olhar à minha dor!

Poetas


Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.

Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!

Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É quem em noites de luar
Pode entender os poetas.

E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho a alma pra sentir
A dos poetas também!

08/01/1916

Mentiras

“Ai quem me dera uma feliz mentira
Que fosse uma verdade para mim!”
Júlio Dantas


Tu julgas que eu não sei que tu me mentes
Quando o teu doce olhar poisa no meu?
Pois julgas que eu não sei o que tu sentes?
Qual a imagem que alberga o peito teu?

Ai, se o sei, meu amor! Eu bem distingo
O bom sonho da feroz realidade…
Não palpita d’amor, um coração
Que anda vogando em ondas de saudade!

Embora mintas bem, não te acredito;
Perpassa nos teus olhos desleais,
O gelo do teu peito de granito…

Mas finjo-me enganada, meu encanto,
Que um engano feliz vale bem mais
Que um desengano que nos custa tanto!

10/03/1916

Maior Tortura

Na vida para mim não há deleite,
Ando a chorar convulsa toda a noite,
E não tenho nem sombra em que me acoite,
E não tenho uma pedra em que me deite!

Ah! Toda eu sou sombras, sou espaços!
Perco-me em mim na dor de ter vivido!
E não tenho a doçura duns abraços
Que me façam sorrir de ter nascido!

Sou como tu um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés,
Sou como tu um riso desgraçado!

Mas a minha tortura inda é maior:
Não sou Poeta assim como tu és
Para concretizar a minha dor.

Com o título de “A Minha Tortura”, e dedicado “A um grande poeta de Portugal”, esse soneto comparece refundido em Livro de Mágoas (Nota de Maria Lúcia Dal Farra)

A Maior Tortura

Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite e dia…
E não tenho uma sombra fugidia
Onde poise a cabeça, onde me deite.

E nem flor de lilás tenho que enfeite
A minha atroz, imensa nostalgia!…
A minha pobre Mãe, tão branca e fria
Deu-me a beber a Mágoa no seu leite!

Poeta, eu sou um cardo dsprezado
A urze que se pisa sob os pés.
Sou, como tu, um riso desgraçado!

Mas a minha tortura inda é maior:
Não ser poeta assim, como tu és,
Para gritar num verso a minha Dor!…

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Ilustrações: C. de A.

Cassiano Ricardo: batismo do Brasil

Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!

Pero Vaz de Caminha, na Carta do Achamento

Depois de um mês perambulando pelas até então desconhecidas águas do Oceano Atlântico, sem ventos fortes que o conduzissem à Calicute almejada, perdendo Vasco de Ataíde com a sua nau (onde estará Vasco Ataíde?), eis que, passados já os primeiros 21 dias de abril, encontra Pedro Álvares Cabral e o que restou de sua frota “muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno” além de topar com “aves a que chamam furabuchos”.

Na história pátria, há divergências sobre essa descoberta. Ou achamento, como diziam na época. Pois o Brasil não foi descoberto, mas achado por aí, já que Cabral havia perdido sua rota e, para consolo de D. Manuel, seu rei e financiador, topara com uma simpática ilha, a que chamou inicialmente de Vera-Cruz. Conta-se, também, que, três meses antes de Cabral, já havia chegado às costas do Ceará o espanhol Vicente Pinzón, companheiro de Colombo na aventura da descoberta da América. Mas, de qualquer maneira, coube a Caminha, como nosso primeiro correio, enviar ao rei de Portugal a boa nova e a ele sugerir a primeira plantação de esperança (semente que seria utilizada milhares ou milhões de vezes pelos políticos brasileiros que viriam, depois de Cabral, a descobrir as riquezas do Brasil): “Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. Não é à toa, portanto, que encontramos no nosso hino, em um dos estribilhos, a permanente súplica — Salve! Salve!

E quem nos salvará? O nosso magnânimo atual monarca prometeu, mas até agora… Apesar de dizer aos quatro cantos do mundo que foi ele que inventou o Brasil. Portanto, não sabemos, como nas novelas de televisão, se somos filhos de portugueses ou de espanhóis, nem exatamente qual a nossa data natalícia. Por enquanto, fiquemos com a história oficial, primeiramente relatada por Pero Vaz de Caminha, que registrou os primeiros sinais de nosso cordão umbilical português, formado por botelhos, rabos-de-asno e furabuchos, a flutuar no fluido amniótico das praias baianas. Para ampliar ainda mais o rol de indecisões quanto ao nosso nascimento, isto é, achamento, sabemos também que tivemos muitos nomes, antes de firmarmos a presente assinatura de Brasil.

Como uma espécie de certidão de nascimento, o poeta Cassiano Ricardo nos deixou um belo poema, que vai abaixo, ilustrado por um quadro de Cândido Portinari.

Cassiano Ricardo Leite foi jornalista, poeta e ensaísta. Nasceu em São José dos Campos, SP, em 26 de julho de 1895, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 14 de janeiro de 1974. Eleito em 9 de setembro de 1937 para a Cadeira nº 31, na sucessão de Paulo Setúbal, foi recebido em 28 de dezembro de 1937 pelo acadêmico Guilherme de Almeida.

Era filho de Francisco Leite Machado e Minervina Ricardo Leite. Fez os primeiros estudos na cidade natal. Aos 16 anosCassiano Ricardo publicava o seu primeiro livro de poesias, Dentro da noite. Iniciou o curso de Direito em São Paulo, concluindo-o no Rio, em 1917. De volta a São Paulo, foi um dos líderes do movimento de reforma literária iniciada na Semana de Arte Moderna da 1922, participando ativamente dos grupos Verde Amarelo e Anta, ao lado de Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Raul Bopp, Cândido Mota Filho e outros. Formaram a fase que Tristão de Athayde classifica de nacionalista.

No jornalismo, Cassiano Ricardo trabalhou no Correio Paulistano (de 1923 a 1930), como redator, e dirigiu A Manhã, do Rio de Janeiro (de 1940 a 1944). Em 1924, fundou a Novíssima, revista literária dedicada à causa dos modernistas e ao intercâmbio cultural pan-americano. Também foi o criador das revistas Planalto (1930) e Invenção (1962).

Em 1937 fundou, com Menotti del Picchia e Mota Filho, a Bandeira, movimento político que se contrapunha ao Integralismo. Dirigiu, àquele tempo, o jornal O Anhanguera, que defendia a ideologia da Bandeira, condensada na fórmula: “Por uma democracia social brasileira, contra as ideologias dissolventes e exóticas.”

Eleito, em 1950, presidente do Clube da Poesia em São Paulo, foi várias vezes reeleito, tendo instituído, em sua gestão, um curso de Poética e iniciado a publicação da coleção Novíssimos, destinada a publicar e apresentar valores representativos daquela fase da poesia brasileira. Entre 1953 e 1954, foi chefe do Escritório Comercial do Brasil em Paris.

Poeta de caráter lírico-sentimental em seu primeiro livro, ligado ao Parnasianismo/Simbolismo, em A flauta de Pã (1917) adota a posição nacionalista do movimento de 1922, revelando-se um modernista ortodoxo até o início da década de 40. As obras Vamos caçar papagaios (1926), Borrões de verde e amarelo (1927) e Martim Cererê (1928) estão entre as mais representativas do Modernismo. Com O sangue das horas (1943), inicia uma nova e surpreendente fase, passando do imagismo cromático ao lirismo introspectivo-filosófico, que se acentua em Um dia depois do outro (1947), obra que a crítica em geral considera o marco divisório da sua carreira literária. Acompanhou de perto as experiências do Concretismo e do Praxismo, movimentos da poesia de
vanguarda nas décadas de 50 e 60. A sua obra Jeremias sem-chorar, de 1964, é bem presentativa desta posição de um poeta experimental que veio de bem longe em sua vivência estética e, nesse livro, está em pleno domínio das técnicas gráfico-visuais vanguardistas.

Se a sua obra poética é tida como uma das mais sérias e importantes da literatura brasileira contemporânea, a de prosador é também relevante. Historiador e ensaísta, Cassiano Ricardo publicou em 1940 um livro de grande repercussão, Marcha para Oeste, em que estuda o movimento das entradas e bandeiras.

Cassiano Ricardo pertenceu ao Conselho Federal de Cultura e à Academia Paulista de Letras. Na Academia Brasileira de Letras, teve atuação viva e constante. Relator da Comissão de Poesia em 1937, redigiu parecer concedendo a láurea ao livro Viagem, de Cecília Meireles. Para a vitória do seu ponto de vista, manteve destemido confronto. Saiu vitorioso, e Viagem foi o primeiro livro da corrente moderna consagrado na Academia. Ao lado de Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima e Múcio Leão, Cassiano Ricardo levou adiante o processo de renovação da Instituição, para garantir o ingresso dos verdadeiros valores. (Fonte: Academia Brasileira de Letras)

Os nomes dados a terra descoberta

Cassiano Ricardo

Cândido Portinari - Descobrimento do Brasil - Óleo sobre tela - 199 x 169cm - Acervo do Banco Central do Brasil

Cândido Portinari - Descobrimento do Brasil - Óleo sobre tela - 199 x 169cm - Acervo do Banco Central do Brasil

Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome
de ilha de Vera-Cruz.
……….Ilha cheia de graça
……….Ilha cheia de pássaros
……….Ilha cheia de luz.

……….Ilha verde onde havia
……….mulheres morenas e nuas
……….anhangás a sonhar com histórias de luas
……….e cantos bárbaros de pajés em poracés batendo os pés.

Depois mudaram-lhe o nome
……….pra terra de Santa Cruz.
……….Terra cheia de graça
……….Terra cheia de pássaros
……….Terra cheia de luz.

A grande terra girassol onde havia guerreiros de tanga e
onças ruivas deitadas à sombra das árvores
mosqueadas de sol

Mas como houvesse em abundância,
certa madeira cor de sangue, cor de brasa
e como o fogo da manhã selvagem
fosse um brasido no carvão noturno da paisagem,
e como a Terra fosse de árvores vermelhas
e se houvesse mostrado assaz gentil,
……….deram-lhe o nome de Brasil.

……….Brasil cheio de graça
……….Brasil cheio de pássaros
……….Brasil cheio de luz.

A Brasília, com um pingo de saudade

Há um ano o Banco da Poesia homenageou Tiradentes, na voz poética de Cecília Meireles. E lembramos todos os homenageados do dia 21 de abril, que são muitos e alguns pouco lembrados.

Só para recordar:

Mas não deixemos de relembrar a história de Tiradentes, em cujo dia também se comemora o Dia da Latinidade (quem lembrou dele? Só o Chávez, quando presenteou o já rançoso livro do Eduardo Galeano ao Barack Obama); o aniversário de Brasília (inaugurada em 21 de abril exatamente porque Juscelino queria homenagear um mineiro ilustre); o aniversário de Roma (que não tem nada a ver com Tiradentes, mas em Brasília, na Praça dos Buritis, bem em frente ao palácio do governo distrital, existe uma réplica da Loba com Remo e Rômulo, presente da capital da Itália à capital brasileira –Brasília e Roma são cidades irmãs, devido à coincidência natalícia); Dia Mundial do Bombeiro, homenagem mais que justa (mas sempre apagada – perdão pelo trocadilho – diante da homenagem ao protomártir da Independência), e, ainda no Brasil, onde habita um povo que adora heróicos feriados retumbantes, o Dia da Polícia Civil, o Dia da Polícia Militar (que, possivelmente, serão os únicos a trabalhar neste feriado),  Dia do Metalúrgico (terá Lula lembrado de seus companheiros de antanho?) e, finalmente, o  Dia do Têxtil (que, de certa forma, colabora com a confecção das bandeiras hasteadas no dia de hoje).

Neste 21 de abril de 2010 temos uma data redondíssima a comemorar — os 50 anos de inauguração de Brasília, nossa Capital Federal, hoje quase transformada em Babilônica apocalíptica, onde transbordam as sem-vergonhices de muitos dos nossos honoráveis representantes, aos quais entregamos, de quatro em quatro anos, cheques em branco impagáveis (termo que se pode entender, na justa eleitoral, em todas as suas acepções léxicas: que não se pode ou não se deve pagar; inestimável; precioso; muito engraçado; hilariante; cômico, excêntrico, ridículo).

Vivi em Brasília por cerca de 14 anos. E confesso que aprendi a amá-la e entendê-la, pois, à moda de Bilac, é preciso saber vê-la e ouvi-la. Aprendi a conhecer as excentricidades da cidade cêntrica, planejada para abrigar preferencialmente o poder. Aprendi a ler seus complicados endereços, nem tão complicados assim depois que conhecemos seus códigos. Aprendi a separar a Brasília dos poderosos da Brasília da gente amigável, que trabalha realmente pensando no bem do enorme panorama brasileiro à sua volta.

Para homenagear seu cinquentenário, procurei poetas que a cantaram. E muitos há. Basta “guglear” Brasília poemas e aparecem coleções de odes elogiosas.  Mas senti que seria infiel se não usasse palavras minhas para conversar com ela no dia de seu importante aniversário. Sem pretender fazer um poema, abri as portas da memória e, apenas passeando por metáforas, desaguei no que vai abaixo, pois, em meio à festa, não posso descuidar, como preocupado brasileiro, do que ocorre por lá, apesar de nossa sentinela avançadíssima afirmar, para espanto quase geral, que nada ouve e nada vê.  E como ela nada escuta e nada enxerga, nada ocorre do que vemos e ouvimos. Pura lógica princepesca…

Para completar a homenagem, dois vídeos. O primeiro, com Vinicius de Moraes e Tom Jobim e a primeira música composta em Brasília, Água de Beber,  sob inspiração do murmurejo de um riacho ao lado do Catetinho, o palácio de madeira construído por Oscar Niemeyer para Juscelino Kubitschek na início da construção de Brasília. No segundo, Juca Chaves, ainda mocinho atrevido, canta Presidente Bossa Nova, uma sátira ao construtor da nova capital. Música, aliás, que chegou a ser temporariamente censurada, apesar do Brasil ter vivido, naqueles tempos, uma era de plena liberdade de expressão. Com meu abraço e (confesso) um pouco de saudade. (Cleto de Assis)

Brasília


Andar por Brasília é como voar:
……………..planar sobre projetos arquitetônicos
……………..mover-se velozmente por planos urbanísticos
……………..brincar de gente grande em um imenso jardim de infância.

Porque Brasília é ainda infante, apesar de cinquentenária:
que são cinquenta aninhos perto dos 510 do jovem Brasil?

No jardim do planalto central,
……………..onde árvores retorcidas do cerrado
……………..deram lugar a templos de cimento armado,
……………..onde se juntaram o sonho de Dom Bosco
……………..aos delírios de Juscelino
……………..e às fantasias temperadas
……………..nos caldeirões de Niemeyer e Lúcio Costa,
plantaram-se esperanças vindas de todas as partes
e nasceu gente nova, candangos do Século XXI.

É verdade que a Brasília igualitária imaginada nas pranchetas
jamais frutificou
— no sopé das caixas de cimento
ainda germinam as diferenças
e  aparecem e desaparecem teimosas favelas
como a dizer: também sou chão brasileiro
feito de pobreza, deseducação e doença.

É verdade que os senadores e ministros e deputados
e sacrossantos magistrados não realizaram o sonho de viver
ao lado dos motoristas e serventes e vigias.

É verdade que Brasília,
para onde se transferiu a forja de leis carioca,
também importou a fluidez e multifácies do poder insensato
e os inefáveis palavreados das tribunas e dos tribunais,
nos quais mudaram as paredes, o ar em torno, mas não o ar interno.

Brasília recebeu suntuosos memoriais
e em cada canto outros vicejam
a guardar reminiscências e a esconder pecados.
……………..Brasília ainda aguarda o Memorial da Incúria
……………..onde, em mil paredes, se exporiam
……………..as miríades de atos impudentes
……………..colhidos na Praça dos Três Poderes
……………..e onde as novas gerações aprenderiam
……………..a ter vergonha na cara
……………..e a respeitar e respeitar e respeitar todas as (re)públicas
……………..e a honrar e honrar e honrar todos os compromissos
……………..e fazer do não roubarás também um pétreo preceito constitucional.

Mas Brasília carrega a sina
de ter se tornado famosa
antes de madurar.
E por mais distante que esteja
é lá que nossas vidinhas e vidões
são lançados à sorte da roleta política
e das decisões destemperadas do Olimpo planaltino.
E segue vivendo sua vida sem esquinas
e com lagos artificiais e artifícios democráticos,
com mil violinos de Chagall
e violões de Dilermando
e cavaquinhos de Waldir Azevedo
a tocar sobre seus tetos,
com milhares de gravatas
transformadas em bandeiras de representação
do Zé Povinho descalço e sem roupas
eterna Capital da Esperança
com chegança sem data marcada.

……………………………..

Um dia, olhando Brasília lá do alto,
ouvi sua prece murmurante
a pedir para não ser transformada na Babilônia apocalíptica,
mãe de todas as prostitutas e abominações da terra.
sentada na Besta escarlate
e destinada a ser destruída por culpa dos pecados de seus príncipes,
que se gloriam com insolência e pronunciam blasfêmias
e reproduzem, de suas cabeças, outras Bestas,
com chifres semelhantes aos do Cordeiro,
mas com vozes troantes de Dragão,
a exercitar todo o poder da primeira Besta na sua presença
e a fazer que todos os habitantes adorem a primeira Besta,
cuja ferida mortal já foi curada,
tal como profetiza o Apocalipse 13.
Eu, então, a consolei, mostrando-lhe que os reis passarão
e ela permanecerá incólume e linda
e um dia se tornará uma das maravilhas do mundo moderno
com suas fontes a jorrar leite e mel e felicidade.

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