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Eu, direto ao ponto

Metapoética

Cleto de Assis, Curitiba

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, em Ficções do Interlúdio


Por que metáforas, se a palavra real é mais objetiva?
Por que a ilusão de ouvir o céu a cantar,
se sabemos que nuvens ou o distante firmamento
só têm cores para mostrar e não sons maviosos?
Se sabemos que a metáfora faz a transposição de uma palavra para outra
por pura analogia de sensações,
por que não ficamos com a primeira, que é mais exata
e dimensiona de modo simples nossos sentimentos?
Ou serão a metáfora e a metonímia, além de figuras de linguagem
escapismos dos tímidos que não ousam enfrentar a palavra real
e por isso inventam figuras de linguagem?

Perdi em mim a criança que fui
e com ela foi embora a coragem de dizer que ainda sou criança
apesar dos visíveis sinais do tempo.
Mas isso não é metáfora, é puro cumprimento do ciclo vital
somado à vaidade de ser considerado um homem respeitável,
porque um homem respeitável não pode ser criança
a não ser por metonímia.
Uma música me diz que morremos um pouquinho em cada despedida,
e isso não é metáfora, é pura realidade
porque sempre estamos morrendo um pouquinho a cada momento,
diante de adeuses ou reencontros
e é preciso viver a vida
e ver sua beleza através da córnea
e da luz que ela filtra até a retina
e não com supostos olhos da alma.
Tivesse olhos a alma
e tivéssemos alma com olhos
para que carregaríamos
o magnífico par de olhos que fazem a luz convergir
e mostrar ao nosso cérebro que podemos enxergar a realidade
sem artifícios poéticos e com cores mais vivas?

Estendo a mão para que a alcance outra mão:
não preciso de palavras
nem enfeitá-las com metáforas
para dizer o que quero.

Curitiba, julho de 2010

Mais um clique de Lina Faria

Prometi, há algum tempo, a reprodução, no Banco da Poesia, de algumas das admiráveis fotos de Lina Faria, acrescentando uma pitada de poesia nas imagens que dela já são feitas. Hoje publico mais uma, retirada de seu blog Não Lugar.

Janela quebrada

Lina Faria + Cleto de Assis

Quem matou essa janela?
Foi o tempo, foi o tempo
e a pontaria de pedras
a criar buracos negros.
Quem reviveu a janela?
Foi a Lina, foi a Lina,
sua lente curiosa
e visão miraculosa
feito creme de mulher
que promete juventude
a pele já ressequida
e também à própria vida.
E o que mostra a janela?
A ruína, a ruína
a gastura da cidade
e mais três vidros intatos
tornados mágico espelho
a refletir bem no meio
a artesã de retratos.

A Brasília, com um pingo de saudade

Há um ano o Banco da Poesia homenageou Tiradentes, na voz poética de Cecília Meireles. E lembramos todos os homenageados do dia 21 de abril, que são muitos e alguns pouco lembrados.

Só para recordar:

Mas não deixemos de relembrar a história de Tiradentes, em cujo dia também se comemora o Dia da Latinidade (quem lembrou dele? Só o Chávez, quando presenteou o já rançoso livro do Eduardo Galeano ao Barack Obama); o aniversário de Brasília (inaugurada em 21 de abril exatamente porque Juscelino queria homenagear um mineiro ilustre); o aniversário de Roma (que não tem nada a ver com Tiradentes, mas em Brasília, na Praça dos Buritis, bem em frente ao palácio do governo distrital, existe uma réplica da Loba com Remo e Rômulo, presente da capital da Itália à capital brasileira –Brasília e Roma são cidades irmãs, devido à coincidência natalícia); Dia Mundial do Bombeiro, homenagem mais que justa (mas sempre apagada – perdão pelo trocadilho – diante da homenagem ao protomártir da Independência), e, ainda no Brasil, onde habita um povo que adora heróicos feriados retumbantes, o Dia da Polícia Civil, o Dia da Polícia Militar (que, possivelmente, serão os únicos a trabalhar neste feriado),  Dia do Metalúrgico (terá Lula lembrado de seus companheiros de antanho?) e, finalmente, o  Dia do Têxtil (que, de certa forma, colabora com a confecção das bandeiras hasteadas no dia de hoje).

Neste 21 de abril de 2010 temos uma data redondíssima a comemorar — os 50 anos de inauguração de Brasília, nossa Capital Federal, hoje quase transformada em Babilônica apocalíptica, onde transbordam as sem-vergonhices de muitos dos nossos honoráveis representantes, aos quais entregamos, de quatro em quatro anos, cheques em branco impagáveis (termo que se pode entender, na justa eleitoral, em todas as suas acepções léxicas: que não se pode ou não se deve pagar; inestimável; precioso; muito engraçado; hilariante; cômico, excêntrico, ridículo).

Vivi em Brasília por cerca de 14 anos. E confesso que aprendi a amá-la e entendê-la, pois, à moda de Bilac, é preciso saber vê-la e ouvi-la. Aprendi a conhecer as excentricidades da cidade cêntrica, planejada para abrigar preferencialmente o poder. Aprendi a ler seus complicados endereços, nem tão complicados assim depois que conhecemos seus códigos. Aprendi a separar a Brasília dos poderosos da Brasília da gente amigável, que trabalha realmente pensando no bem do enorme panorama brasileiro à sua volta.

Para homenagear seu cinquentenário, procurei poetas que a cantaram. E muitos há. Basta “guglear” Brasília poemas e aparecem coleções de odes elogiosas.  Mas senti que seria infiel se não usasse palavras minhas para conversar com ela no dia de seu importante aniversário. Sem pretender fazer um poema, abri as portas da memória e, apenas passeando por metáforas, desaguei no que vai abaixo, pois, em meio à festa, não posso descuidar, como preocupado brasileiro, do que ocorre por lá, apesar de nossa sentinela avançadíssima afirmar, para espanto quase geral, que nada ouve e nada vê.  E como ela nada escuta e nada enxerga, nada ocorre do que vemos e ouvimos. Pura lógica princepesca…

Para completar a homenagem, dois vídeos. O primeiro, com Vinicius de Moraes e Tom Jobim e a primeira música composta em Brasília, Água de Beber,  sob inspiração do murmurejo de um riacho ao lado do Catetinho, o palácio de madeira construído por Oscar Niemeyer para Juscelino Kubitschek na início da construção de Brasília. No segundo, Juca Chaves, ainda mocinho atrevido, canta Presidente Bossa Nova, uma sátira ao construtor da nova capital. Música, aliás, que chegou a ser temporariamente censurada, apesar do Brasil ter vivido, naqueles tempos, uma era de plena liberdade de expressão. Com meu abraço e (confesso) um pouco de saudade. (Cleto de Assis)

Brasília


Andar por Brasília é como voar:
……………..planar sobre projetos arquitetônicos
……………..mover-se velozmente por planos urbanísticos
……………..brincar de gente grande em um imenso jardim de infância.

Porque Brasília é ainda infante, apesar de cinquentenária:
que são cinquenta aninhos perto dos 510 do jovem Brasil?

No jardim do planalto central,
……………..onde árvores retorcidas do cerrado
……………..deram lugar a templos de cimento armado,
……………..onde se juntaram o sonho de Dom Bosco
……………..aos delírios de Juscelino
……………..e às fantasias temperadas
……………..nos caldeirões de Niemeyer e Lúcio Costa,
plantaram-se esperanças vindas de todas as partes
e nasceu gente nova, candangos do Século XXI.

É verdade que a Brasília igualitária imaginada nas pranchetas
jamais frutificou
— no sopé das caixas de cimento
ainda germinam as diferenças
e  aparecem e desaparecem teimosas favelas
como a dizer: também sou chão brasileiro
feito de pobreza, deseducação e doença.

É verdade que os senadores e ministros e deputados
e sacrossantos magistrados não realizaram o sonho de viver
ao lado dos motoristas e serventes e vigias.

É verdade que Brasília,
para onde se transferiu a forja de leis carioca,
também importou a fluidez e multifácies do poder insensato
e os inefáveis palavreados das tribunas e dos tribunais,
nos quais mudaram as paredes, o ar em torno, mas não o ar interno.

Brasília recebeu suntuosos memoriais
e em cada canto outros vicejam
a guardar reminiscências e a esconder pecados.
……………..Brasília ainda aguarda o Memorial da Incúria
……………..onde, em mil paredes, se exporiam
……………..as miríades de atos impudentes
……………..colhidos na Praça dos Três Poderes
……………..e onde as novas gerações aprenderiam
……………..a ter vergonha na cara
……………..e a respeitar e respeitar e respeitar todas as (re)públicas
……………..e a honrar e honrar e honrar todos os compromissos
……………..e fazer do não roubarás também um pétreo preceito constitucional.

Mas Brasília carrega a sina
de ter se tornado famosa
antes de madurar.
E por mais distante que esteja
é lá que nossas vidinhas e vidões
são lançados à sorte da roleta política
e das decisões destemperadas do Olimpo planaltino.
E segue vivendo sua vida sem esquinas
e com lagos artificiais e artifícios democráticos,
com mil violinos de Chagall
e violões de Dilermando
e cavaquinhos de Waldir Azevedo
a tocar sobre seus tetos,
com milhares de gravatas
transformadas em bandeiras de representação
do Zé Povinho descalço e sem roupas
eterna Capital da Esperança
com chegança sem data marcada.

……………………………..

Um dia, olhando Brasília lá do alto,
ouvi sua prece murmurante
a pedir para não ser transformada na Babilônia apocalíptica,
mãe de todas as prostitutas e abominações da terra.
sentada na Besta escarlate
e destinada a ser destruída por culpa dos pecados de seus príncipes,
que se gloriam com insolência e pronunciam blasfêmias
e reproduzem, de suas cabeças, outras Bestas,
com chifres semelhantes aos do Cordeiro,
mas com vozes troantes de Dragão,
a exercitar todo o poder da primeira Besta na sua presença
e a fazer que todos os habitantes adorem a primeira Besta,
cuja ferida mortal já foi curada,
tal como profetiza o Apocalipse 13.
Eu, então, a consolei, mostrando-lhe que os reis passarão
e ela permanecerá incólume e linda
e um dia se tornará uma das maravilhas do mundo moderno
com suas fontes a jorrar leite e mel e felicidade.

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Minas pede a palavra: fala o poeta Flávio Otávio Ferreira

Flávio Otávio Ferreira nasceu em outubro de 1980, em João Monlevade. Mas ele se considera um belavistano (de Bela Vista, também MG). É graduado em Letras pelo Centro Universitário de Araxá, cidade na qual reside atualmente. Tem  poemas publicados em várias antologias. Em 2005, lançou, pela Litteris Editora, o seu livro de estreia Cata-ventos, o destino de uma poesia, que participou da 12ª Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Em 2007, foi contemplado com a 2ª colocação no I Prêmio Solar de Literatura João Monlevade 43 anos, com o texto Poema Insano. Ainda em 2007, obteve a 3ª colocação no 7º Concurso Estadual de Contos promovido pelo Clesi – Clube dos Escritores de Ipatinga, com o conto  A Mutação.  Em 2009, publicou o livro Itinerário Fragmentado, pelo selo Quártica Premium da Litteris Editora, lançado na 14ª Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Seus textos podem ser lidos nos blogs Misantropia , Manufatura (todo dia 7 do mês) e Poema Dia (todo dia 19 do mês).

Nossas boas vindas ao novo correntista do Banco da Poesia.

Recado ao Poeta

Flávio Otávio Ferreira

A morte me assombra o sono,
Deveras, ainda vivo em sonho.
No peito entreaberto
Mal cabe o coração palpitante.
A alma, em frangalhos,
Se vê partida por mil adagas
E, em desespero,
choro em um quarto escuro.

Pobre poeta!
Por que te envenenas em versos?
Quais os objetos de tuas conjecturas?
Que olhos? Que boca? Que sorrisos?
Há na distância das noites estelares
O brilho que se apaga nas horas escuras?
Há na ausência que te move
O tato a tocar de leve em nuvens?

Pobre poeta!
Por que não mergulhas no Ganges,
No Sena, no Reno, no Tietê, no Piracicaba?
Se joga do alto da ponte
Submerge nas águas turvas
E some, consome esses versos
Leva embora estes sonhos que te sufocam.
Por que se perder em amores vãos
Se tens mais a viver para ti?
Exorciza em teu pobre peito
O que o tempo, inexpressivo,
Não pode apagar.
Arranca-lhe o coração
E joga às aves de rapina
Que te espreitam ao longe.

Pobre poeta!
Escolhestes o lado errado da estrada!
Escolhestes o pior dos desertos!
Enquanto buscares na poesia o teu consolo
Terás apenas o desfavor dos versos
Que se amontoam em escombros.
Ruínas que se erguem vertiginosamente
Em teu peito enfurecido.
Logrará, contigo, pobre destino
E, talvez, um dia, tuas próprias mãos
Consigam limpar o sangue
Que jorra em torrentes
Nestas pautas encardidas.

Loucura e silêncio

Não fosse esta loucura
serias mais que abstração nesta linguagem de ícones
que se movem como formigas gigantescas
a carregar consigo as lembranças.
Não fosse este silêncio
regressarias de tuas viagens, mesmo com ressaca de viver
ou tédio a corroer tuas esperanças que em vão
se movem como ratos a remexer latas na dispensa.
Não fosse esta loucura
estarias presente em meu cubículo a bater-me na cara,
coagindo-me a dizer mentiras que te agradam,
apenas para salvar-te da névoa que encobre teu rosto.
Não fosse este silêncio
viria possuir-me o teu espírito em noites sem lua
em tempos de mistério e sombra, simplesmente
pra fazer gracejos e brincar sobre meu corpo quente.
Não fosse esta loucura
não serias só palavras rabiscadas por mãos trêmulas
em muros carcomidos, onde a alvura da cal
não esconde os desfavores do tempo.
Não fosse este silêncio
não terias ido embora pra longe destes olhos
deixando a este louco apenas o consolo
de versos obscenos no espelho do banheiro.
Mas, terias me libertado.
Desatando os nós que nos envolvem;
quebrando este silêncio que devora
as entranhas sufocando em nós o ânimo.
Quebraria este espelho que revela
a nossos olhos as misérias
a que nos condenamos;
Romperia o cordão que injeta em nós venenos.
Abortaria, pois, este desvanecimento
que nos rouba lentamente um do outro,
tornando loucura a tudo que um dia
dissemos querer da vida.

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Ilustrações: Cleto de Assis

Veredas de Alfonsina

Tu dulzura

Alfonsina Stormi

Camino lentamente por la senda de acacias,
me perfuman las manos sus pétalos de nieve,
mis cabellos se inquietan bajo céfiro leve
y el alma es como espuma de las aristocracias.

Genio bueno: este día conmigo te congracias,
apenas un suspiro me torna eterna y breve…
¿Voy a volar acaso ya que el alma se mueve?
En mis pies cobran alas y danzan las tres Gracias.

Es que anoche tus manos, en mis manos de fuego,
dieron tantas dulzuras a mi sangre, que luego,
llenóseme la boca de mieles perfumadas.

Tan frescas que en la limpia madrugada de Estío
mucho temo volverme corriendo al caserío
prendidas en mis labios mariposas doradas.

Tua doçura

Lentamente caminho por sendas de flores,
me perfumam as mãos suas pétalas de neve,
meus cabelos se inquietam sob zéfiro leve
e a alma se enleva, sem dor, sem temores.

Gênio bom: este dia comigo congraças,
apenas um suspiro me faz eterna e breve…
Vou voar acaso já com a alma tão leve?
Em meus pés nascem asas e dançam as três Graças.

É que ontem tuas mãos, em minhas mãos de fogo,
deram tantas doçuras a meu sangue, que logo
senti em minha boca delícias perfumadas.

Tão frescas que na limpa madrugada de Estio
muito temo voltar correndo ao casario
presas em meus lábios borboletas douradas.

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Versão/ilustração: Cleto de Assis

Leia mais Alfonsina aqui

Ainda matando a sede

No domingo, enquanto preparava o post sobre o Dia da Água (ver abaixo), senti vapores de inspiração e me imaginei navegando por meu ser aquático, que já deve estar na proporção de 50%, se estiverem corretos os estudos hidrológicos do corpo humano. Terminado o trabalho mais importante, continuei no computador e as palavras seguintes verteram na tela, quase em caudal. Graças aos poetas que me acompanharm por toda a tarde.

Sou água

Cleto de Assis


Sou água impura
sem cura,
em busca da transparência.
xxxxSou água escura
xxxxsem resplendência.

Mas tenho a vontade de ser
água potável ofertada
aos que têm sede, golada,
sorvida, transfigurada.

Sou a água na parede
Lacrimejante do inverno.
Sou água em vapor no inferno
a tentar fuga sem rumo.
Sou água do fio de prumo
buscando o nível da vida.
Eis-me água estremecida
pela brisa sussurante
que o espelho desalisa.
Sou água que catalisa
A energia semovente.
Sou essa água corrente
em busca do mar sem fim.
Sou chuva de tempestade,
sou garoa da cidade,
sou a gota do rocio,
sou goteira, sou o rio,
rios que tenho em mim.

Curitiba – 21.mar.2010

A ti, Haiti

Soa o rumor fatídico dos ventos,
Anunciando desmoronamentos
De mil lajedos sobre mil lajedos…
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!

Augusto do Anjos,

em A Ilha de Cipango, do livro Eu, 1912



Nós, brasileiros, já estamos acostumados com as águas de dezembro e janeiro. Casas e gente soterradas pela lama dos barrancos, inundações a afogar cidades. Perto delas, as águas de março são mera poesia, como aproveitou Jobim (o compositor). As notícias dão conta que os poderes administrativos não fiscalizam e as pessoas, em busca de um lugar para viver, constroem onde não se pode construir e jogam lixo onde não devem.

Neste ano tivemos algo diferente. Já não foram apenas os pobres da favelas que sofreram com os desbarrancamentos, mas a classe média também foi atingida, em Angra dos Reis. Já não foram só os anônimos da desgraça, mas gente com nome, profissão e planos concretos para o presente e o futuro desapareceu durante os cataclismos. Desgraça pior? Não, foi gente que se foi sem precisar ter ido, vítimas da incúria administrativa de um país que quer traçar políticas de meio ambiente e direitos humanos, mas não sabe como escrever simples posturas municipais e fazê-las cumprir. Seja em Brasília, no Rio de Janeiro, São Paulo ou em Quixeramobim.

Quando morei em Brasília, em um belo apartamento recém-construído na Asa Norte, vi uma favela nascer e se desenvolver ao lado de um lixão, este formado em terras semiabandonadas da Universidade de Brasília. Foram poucos meses entre o primeiro barraco levantado ao lado do monte de lixo e as dezenas, talvez centenas de casas de compensado, papelão e lona plástica. Contaram-me que muitas das famílias que para ali se transferiram vinham de outra favela formada em um vale coberto de vegetação e que escondia dos olhos da classe média burocrata a sua pobreza.

E a favela da superquadra, ao começar a incomodar o cartão postal da Capital Federal, foi desmontada em um só dia, por ação da polícia militar, a mando das autoridades que não viram nem preveniram a sua construção. E, no Congresso Nacional, boa parte dos representantes nordestinos, conterrâneos de grande parte dos então favelados de Brasília, continuava a exibir seus relógios de ouro e, como dizia Stanislaw Ponte Preta, seus ternos mais brilhantes que a própria inteligência.

Mas janeiro de 2010, que encerra a primeira década do Século XXI, foi ainda mais trágico que os janeiros anteriores, literalmente derrubando o Haiti e tornando-o ainda mais pobre. Perdemos gente brasileira por lá. Militares e civis. Entre eles, a nossa Zilda Arns, que queria levar a sua Pastoral da Criança para proteger a infância daquela ilha desafortunada. Aí volta o outro Jobim, este descompositor da esperança, a dizer que não era hora de cuidar de eufemismos e já devíamos contar como mortos os militares ainda dados como desaparecidos. Palavras que parecem ser retiradas do tal PNDH III, contra o qual o ministro da nossa defesa se manifestou.

Enfim, coisas de mais um janeiro convulsivo, no qual Gaia mostra que ninguém manda nela e, apesar de nossa presunção em poder controlá-la, é ela que nos comanda e nos envia avisos, de quando em quando.

Na volta das pequenas férias, de onde fui enxotado pelas águas de janeiro, fui em busca de informações. Pesquisei sobre a poesia haitiana e descobri que, como sua história, ela é melancólica e terrivelmente profética. Abaixo vão dois exemplos.

Também descobri que Augusto dos Anjos, o poeta brasileiro que contradizia seu nome, também lembrou, há quase cem anos, a ilha caribenha apegada à dor. Igualmente o transcrevo. Mas não pude deixar de reunir letras para testemunhar a minha compaixão por aquela ilha que tem tudo para ser um paraíso, mas que se tornou hospedaria da desgraça, desde que Cristóvão Colombo a descobriu, em 1492. (C. de A.)

À ti, haiti, meu ai

Cleto de Assis

Quisqueya, mãe de todas as terras,
foste amaldiçoada por Colombo,
que te acreditava Cipango,
quando engoliste a nau Santa Maria
e mataste os 39 marinheiros
dados a ti de presente no dia de Natal.
Tu, que fizeste ruir o sonho
da primeira construção americana.
Tu, Hispaniola, Española, Espanhola,
Tu, à esquerda de Santo Domingo repartida,
Terra Montanhosa,
Ahti, guiada por Guacanagarí,
que também renegaste por ter sido o primeiro amigo.

E serias hostil por tempo quase eterno.
Teu Porto Príncipe depois se afrancesaria,
povoado por gente arrancada da Guiné
sem as mesuras gaulesas
e com sangue caribe transvasado de tuas praias e montanhas,
a vingar o povo de África e a bramir contra o branco.
“Ê! Ê! Bomba! Heu! Heu! Canga, bafio te! Canga, mauné delé!
Canga, do ki lá! Canga, Li!”

Preferias a morte
se não houveras tomado a vida do branco e tudo o que ele possuía.
E a morte encontraste muitas vezes
pela mão do branco,
pelas mãos de teus adotados filhos
e pela mão de Gaia
sem proteção dos L’whas.

Haiti, tens o grito de dor no teu ventre
e na pobreza de tua gente.
Conseguiste fazer a enorme revolução negra
mas ainda não encontraste a liberdade
no imenso quilombo em que te transformaste
e precisaste mostrar a face da aflição
para receberes gestos de fraternidade.

Haiti, usina de restavecs violadas,
tu, que tens fome de paz,
mas não consegues a paz porque tens fome.
Tu, abandonada nas águas turmalinas do Caribe
trocaste o bafejo da sorte pelo hálito feroz do tufões
e não encontras o socorro nem de tua padroeira.

Haiti, terra amontoada pelo Senhor dos Infernos,
Terra Escombrosa, Poeirenta,
com cheiro da morte, com sede de água e de ternura,
és o retrato do abandono do homem pelo homem.

Chegarão a ti, Haiti, os Senhores da Fortuna,
a retirar das algibeiras abarrotadas alguns trocados,
sem exigir em troca crianças abandonadas
e o açúcar que tiras da terra, já pouco para teus próprios filhos.

Mas cuida-te, Haiti, e recusa ofertas por tua alma combalida.
Retira o pó da gente descolorida pela desgraça
e recria a Nova Fênix Caribe que deverá surgir das cinzas.

Sê novamente Quisqueya com tua própria vontade
e com tuas própria mãos,
sem a opressão de teu passado de dor.

Emmelie Prophète

Emmelie Prophète nasceu em Porto Príncipe, no Haiti, a 15 de junho de 1971, onde estudou Direito e Literatura Moderna. Fez cursos de Comunicação na Jackson State University, no Mississippi, E.U.A.. Ela apresentou, por oito anos, uim programa de difusão de Jazz na Rádio Haiti. Trabalhado em Educação e na diplomacia, como adida cultural do Haiti em Genebra. Colabora em várias revistas, Chemins Critiques, Boutures, Casa de las Americas, Cultura, La Nouvelle Revue Française.

É autora de duas coletâneas de poemas, Des marges à remplir (2000) e Sur parure d’ombre (2004). Em 2007, ele lançou sua primeira narrativa, Le Testament des solitudes, em Montreal.

Emmelie Prophète escreve para salvar sua pele. Sua literatura é simples, fluída e argentina. Ela nos conduz de acaso a acaso e nos segura em torno de palavras generosas, muitas vezes íntimas, que dizem que há beleza mesmo com mau tempo.

Seu trabalho é como um espelho que reflete as ligações exploradas e acessíveis das estações conhecidas. Solidão, melancolia, fraturas, o canto da terra natal perdida e reencontrada, o desejo a céu aberto, as chagas saindo de todas as suas páginas como segredos cochichados. Emmelie Prophète é uma voz que nos conta coisas em palavras simples. É uma voz que se revela e nos revela.

Desde 2006 ela é responsável pela Divisão Nacional do Livro, ligada ao Ministério da Cultura no Haiti.

Fonte: http://www.lehman.cuny.edu/ile.en.ile/paroles/prophete_emmelie.html

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Un jour

Un jour rappelle-toi
cette ville dépécée
entre le bruit la bêtise et la douleur.
On a créé l’infidélité,
le bleu des trottoirs d’un autre continent.
La folie est devenue utile.
Nous nous appliquons à dessiner
des portes de sortie

Depuis tes yeux
le vide est à réinventer.

Écoute la prière de nos sexes
étouffée par le poids des mots
le trou de votre blue jean
est la seule fenêtre
qui donne sur l’espoir

On rêve tous de trottoirs.
Les cris de notre nudité
sont sans issue
comme vos silences.

Em fotografia de 4 de setembro de 2008, menino resgata carrinho de casa inundada depois da tempestade tropical Hannah, que atingiu Gonaives, no Haiti. A imagem é do fotógrafo Patrick Farrell, do Miami Herald. (Foto: Patrick Farrell/ Miami Herald/ AP)

Um dia

Um dia, lembra-te
desta cidade despedaçada
entre o ruído a estupidez e a dor.
Criamos a infidelidade,
o azul das calçadas de um outro continente.
A loucura tornou-se útil.
Nos esforçamos para desenhar
as portas de saída

Desde teus olhos
o vazio se reinventará.

Ouvi as orações do nosso sexo
sufocada pelo peso das palavras
o buraco no vosso jeans azul
é a única janela
que leva à esperança.

Nós sonhamos todos com as calçadas.
Os gritos de nossa nudez
são inúteis
Como vossos silêncios.

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Rodney Saint-Eloi

Rodney Saint-Eloi nasceu em 27 de agosto de 1963, em Cavaillon, no sul do Haiti. Ele é escritor, editor e acadêmico. Em 1991, fundou, em Porto Príncipe, a Éditions Mémoire, editora que publica escritores haitianos que vivem dentro e fora do país. A editora privilegia o trabalho de jovens escritores ainda não conhecidos devidamente.

O poeta Georges Castera se juntou à editora Mémoire, em 1999, e se tornou seu editor literário. Com Castera, Saint-Eloi fundou uma revista semestral de arte e da literatura, denominada Boutures (Estacas).

Saint-Eloi começou a escrever com a idade de 13 anos. Ele publicou uma dúzia de coleções de poemas, ensaios sobre literatura e pintura. Algumas de suas obras foram traduzidas para o Inglês, o Espanhol e o Japonês. Sua obra é uma lenta travessia de cidades, rios e rostos.

Saint-Eloi mora em Montreal desde 2001. Em março de 2003, ele fundou e dirige a versão canadense da editora Mémoire, que publica obras de autores de diferentes comunidades culturais – África, Caribe e Oceano Índico.

Considerado um dos pontos fortes das comunidades culturais no Canadá, a editora Mémoire retoma obras do patrimônio haitiano com a coleção Anthologie secrète (Carl Brouard, Davertige, Frankétienne) e a série Poèsie (Roussan Camille, Roger Dorsinville, Yanick Jean, Leon Laleau, Anthony Lespes …).

Em Rodney Saint-Eloi é tudo compromisso: redação e edição. Compromisso com o social, compromisso com a literatura, compromisso, finalmente, com tudo que liberação. “O que alimenta os meus escritos” – argumenta ele – “é a cólera contra a estupidez, contra qualquer coisa que nos impede de crescer e de reunir o humano em nós. Contra tudo que se assemelhe a segregação e racismo. Enfim, contra qualquer coisa que impeça o homem de desfrutar plenamente o seu estatuto de homem Minha paixão é o humano e o livro, este objeto sereno que testemunha a presença lúcida das mulheres e dos homens sobre a terra”.

Fonte: http://www.lehman.cuny.edu/ile.en.ile/paroles/saint-eloi.html

Ma Ville

Ma ville est morte, c’est peut-être hier, elle l’étrangère que je connais à peine m’a téléphoné de sa prison et m’a dit trois mots comme l’annonce d’une tragédie: ville mort soudaine. Je me rappelle pas du tout sinon le claquement de cette voix à l1autre bout étouffé, j’en suis gêné de ne pouvoir vous dire la date exacte, c’était, autant que je me rappelle, un matin des années cinquante; et ma ville amnésique est morte comme hier, sans histoire, sans échouage, au pied d’une mer mourante dans la grisaille du vent.

Ma ville est morte hier comme l’ammnandier brun qui me fut ami, sans géographe ni postulant, morte sans sacrement, sans sentiments, dans le labyrinthe des couleurs, avec una tache de sang sur sa paupière gauche, et je me rappellel pas trop le nom des assassins, c’est peut-être trop et c’est peut-être moi, car les murs de nos silences construisent une cathédrale de souvenirs, et chacun pleure en la mort de cette ville sa mort de poche dans un miroir ovale.

Minha Cidade

Minha cidade está morta, talvez ontem, ela a estrangeira que eu conheci na prisão me ligou e disse três palavras, como o anúncio de uma tragédia: Cidade morte súbita. Eu não me lembro a todos que a quebra de sua voz embargada de final l1autre, não tenho vergonha de dizer a data exata era, tanto quanto me lembro, uma de manhã dos anos cinqüenta, e minha cidade amnésica está morta como ontem, sem história, sem encalhar, ao pé de um mar moribundo na pátina cinza do vento.

Minha cidade morreu ontem como a amendoeira parda que me foi amiga, sem geógrafo nem postulante, morte sem sacramentos, num labirinto de cores, com uma mancha de sangue em sua pálpebra esquerda, e eu não lembro mais o nome dos assassinos, isto pode ser demais e pode ser eu, porque o muro de nossos silêncios construiu uma catedral de memórias, e todo mundo chora na morte desta cidade sua morte imediata em um espelho oval.
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A ilha de Cipango

Augusto dos Anjos

Estou sozinho! A estrada se desdobra
Como uma imensa e rutilante cobra
De epiderme finíssima de areia…
E por essa finíssima epiderme
Eis-me passeando como um grande verme
Que, ao sol, em plena podridão, passeia!

A agonia do sol vai ter começo!
Caio de joelhos, trêmulo… Ofereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o Ocaso que nas águas se retrata
Nitidamente reproduz, exata,
A saudade interior que há no meu peito…

Tenho alucinações de toda a sorte…
Impressionado sem cessar com a Morte
E sentindo o que um lázaro não sente,
Em negras nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.

Os olhos volvo para o céu divino
E observo-me pigmeu e pequenino
Através de minúsculos espelhos.
Assim, quem diante duma cordilheira,
Para, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cair de joelhos!

Soa o rumor fatídico dos ventos,
Anunciando desmoronamentos
De mil lajedos sobre mil lajedos…
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!

Mas de repente, num enleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cipango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha
A árvore da perpétua maravilha,
A cuja sombra descansou Colombo!

Foi nessa ilha encantada de Cipango,
Verde, afetando a forma de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extinto
E como sucedeu a Afonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!

Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio…
Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
E em cada rocha um cristalino veio.

Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos
E finalmente me cobri de flores…
Mas veio o vento que a desgraça espalha
E cobriu-me com o pano da mortalha,
Que estou cosendo para os meus amores!

Desde então para cá fiquei sombrio!
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade.
E a grandes golpes arrancou as raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!

Invoco os Deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!…
A luz descreve ziguezagues tortos
Enviando à terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dous realejos
Estão chorando meus amores mortos!

E a treva ocupa toda a estrada longa…
O Firmamento é uma caverna oblonga
Em cujo fundo a Via – Láctea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!

Do livro Eu, 1912

Paz natalina

Hoje, domingo, 20 de dezembro de 2009, fez um belo domingo em Curitiba. Sol e cheiro do Natal que se aproxima.

O Banco da Poesia recebeu duas contribuições apropriadas à época natalina (ver abaixo). Manoel de Andrade relembra um poema de 2002, no qual dirige seus agradecimentos pelos presentes que a vida lhe reservou. Já Vera Lúcia Kalahari imagina, lá de Portugal, todo mundo reunido junto ao presépio cristão e faz um desafio inquietante. Aproveitei a onda e postei uma croniqueta, onde reflito sobre a possibilidade — utópica, é claro — de todos os dias poderem ser dias de Natal.

Tudo para reiterar nossos votos de um ótimo Natal e um ano de 2010 (gente, já estamos vencendo a décima parcela deste Século XXI!) bastante positivo para toda a sociedade humana e, evidentemente, para a grande Gaia que nos abriga.

Para ilustrar, uma foto do Natal do HSBC, tradição iniciada por seu antecessor Bamerindus, a nota máxima do Natal curitibano. Para quem não conhece o evento: imagine uma criança em cada janela do antigo Palácio Avenida, a compor um maravilhoso coral natalino. Cleto de Assis

Idos de 1989: e o Muro foi ao chão

O Muro

Cleto de Assis

Berlim, 9 de novembro de 1989 – Aos brados de “Wie Sind ein Volk – Nós somos um só povo” – berlinenses do Leste e do Oeste derrubaram a vergonhosa barreira que, durante 28 anos, separou as famílias alemãs.

Queda do Muro

O Muro aparta e afasta
o irmão do próprio irmão.
O Muro, dura concretude,
vergonha suntuosa
da segregação.

O Muro divide cérebros
e cria fossas abismais onde vermificam as idéias unitárias,
malcheirosas, corrosivas, infectantes.
E os cérebros, necessariamente bilaterais,
dividem-se em hemisférios esquerdo e direito irreconciliáveis.

Oh, Muro sem qualquer estética,
Feito de pedras amontoadas às pressas pela ira e pelo medo,
de concreto armado pela tecnologia fratricida,
de arames coroados de espinhos lacerantes!

Oh, Muro estático, bélico, fanático,
ereto monumento da estupidez!
Oh, Muro que, uma vez construído, destróis e desconstróis…

Ah, muros nacionais do desentendimento,
muros internacionais a toda hora germinados,
Muro da Cisjordânia, Muro do México, Muro do Paralelo 38,
o projetado Muro das favelas cariocas,
filhos todos da parvoíce politicante,
não tendes direito a orações nem boas-vindas
porque, embora linhas inertes,
dividis, isolais, amedrontais e matais a vida e a liberdade.

Muro de Berlim, pai e mãe de todas as vergonhas,
ainda gerador de filhotes desavergonhados,
The Wall, Le Mur, Die Berliner Mauer,
poliglota e polinéscio, bendizemos a tua queda
e saudamos, com festas e más lembranças, a tua morte vintenária.
Pena que, uma vez no chão,
desfeito em cacos de memória,
transformado em preciosos souvenirs,
não calaste nos corações humanos
a energia do fraterno congresso.
Pena que o esforço gasto em tua construção
e na de teus bastardos filhos
não tenha sido usado para a ereção de templos do saber
e das idéias sem barreiras.
…………………………………………………………………….
Um dia, o martelo afastou-se da foice e desmantelou a rocha insensata.
Caiu o Muro. Mudou o Rumo?

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Nota histórica A queda do Muro de Berlim, como chegou à memória de nosso tempo, não foi um ato inesperado de demolição das paredes da vergonha. Já enfraquecida politicamente diante do governo soviético, à época governado pelo primeiro-ministro Mikhail Gorbachev, a República Democrática Alemã. Depois da passagem, por Berlim oriental, de Gorbachev, que deixou seu recado de abandono do protecionismo da Rússia à RDA, muitos alemães passaram a refugiar-se nas embaixadas da Alemanha ocidental em vários países do bloco soviético e a manifestar-se ostensivamente nas ruas de Berlim, exigindo livre passagem pelas rígidas barreiras construídas já havia mais de duas décadas. Mas a real queda do muro foi causada por um erro de comunicação de um membro do Politburo da RDA, Günter Schabowski, que, na tarde do dia 9 de Novembro de 1989, reuniu a imprensa para uma entrevista e anunciou a decisão do conselho de ministros de abolir de imediato as restrições de viagens ao Oeste. A entrevista, assistida pela televisão por milhares de habitantes de Berlim oriental, antes que a decisão fosse regulamentada, provocou uma corrida, naquela mesma noite, de milhares de berlinenses do Leste às fronteiras, principalmente ao posto da rua Bornholmer, a pedir a abertura dos portões onde nem as unidades militares, nem o pessoal de controle de passaportes haviam sido instruídos.

Formou-se o tumulto e muitos cidadãos rasgaram seus passaportes, em sinal de protesto. Outros pontos da fronteira também foram assediados e, diante das manifestações, os atônitos guardas tiveram que deixar passar as multidões.

Registra a história: “Os cidadãos da RDA foram recebidos com grande euforia em Berlim Ocidental. Muitas boates perto do Muro espontaneamente serviram cerveja gratuita, houve uma grande celebração na rua Kurfürstendamm, e pessoas que nunca se tinham visto antes cumprimentavam-se. Cidadãos de Berlim Ocidental subiram no muro e passaram para as Portas de Brandenburgo, que até então não eram acessíveis a eles. O Bundestag interrompeu as discussões sobre o orçamento e os deputados espontaneamente cantaram o hino nacional da Alemanha”.

O Muro havia caído. A sua demolição final, que prosseguiu, nos dias seguintes, em meio a festas de reencontro entre tantos alemães separados por força da estultícia política, foi um grande ato simbólico de um dos episódios mais marcantes do Séc. XX. Talvez o verdadeiro fim da segunda Guerra Mundial, pois a divisão de Berlim havia sido resultado da pilhagem dos vencedores do conflito mundial que, mais tarde, iriam separar-se em dois grandes blocos conflitantes e protagonistas da chamada Guerra Fria, também aniquilada com a derrubada do muro.

Momentos da História

A Queda do Muro de Berlim

Mais um achado arqueológico de Lina Faria

Em seu blog Não lugar,  Lina Faria postou uma foto incomum, quase sem perspectiva. Ela informa que se trata de um trabalho “da série de cicatrizes de casas que já se foram, mas mantiveram sua silhueta impregnada na parede do lado. Prova de que a forma supera a utilidade das coisas”.

Roubei a foto de lá (deixando a original, é claro) e pago com um comentário poematizado. Como prometi que faria (sem trocadilho) sobre fotos de Lina.

Fatia do Passado

Cleto de Assis, sobre foto de Lina Faria

ParedeFatia

A velha casa se foi
transformada em cacos,
talvez em restos de depósito de demolição,
talvez em entulho de construção
talvez em saudade de alguém que lá viveu.

A velha casa partiu
e logo, logo nem restará
a fatia impressa na parede lateral que virou muro
e alguém recolherá as esmolas nela encostadas,
a ex-porta, a ex-janela, a ex-parede de madeira
a centena de tijolos desgastados
e quem sabe os ladrilhos brancos do ex-banheiro.

A ordem e o progresso urbanos retirarão de cena
o quadro mondriânico amarelo-branco-preto
dividido em áurea proporção
onde alguém grafitou um homem deitado
e um (talvez) rabo de galo.

Ainda bem que Lina passou por ali
e seu olho mágico tornou imortais os restos mortais da velha casa.